Análise | o 14º Olhar de Cinema e seus tipos de cinema
- Vinicius Oliveira
- 23 de jun.
- 6 min de leitura
Atualizado: 23 de jun.
Como conversam entre si os filmes exibidos no festival neste ano?

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Eu não lembro quando exatamente comecei a querer ser jornalista cultural e crítico de cinema, mas são duas áreas que estão presentes desde cedo em minha vida. Ainda criança, gostava de folhear as edições da Veja apenas para ler as críticas da Isabela Boscov, e ainda me recordo da primeira edição do Oscar que acompanhei: a de 2008, quando Onde os Fracos Não Têm Vez ganhou. Desde então, minha relação com o cinema, crítica e jornalismo foi se aprofundando, até culminar com meu presente trabalho com o Oxente Pipoca, trabalho este que passou a me abrir muitas portas – a mais significativa certamente sendo a possibilidade de fazer a cobertura do Olhar de Cinema, em Curitiba, nesses últimos dias.
Assim que a confirmação da minha credencial saiu, tratei de montar minha programação para o festival. Não seria fácil: com cerca de 90 filmes a serem exibidos em diferentes mostras e sessões, eu sabia que grande parte teria de ficar de fora. Ainda assim mantive um número sólido: entre 20 a 25 filmes, em sua maioria longas-metragens, mas também alguns curtas. Especial atenção foi dada aos filmes da Mostra Competitiva Brasileira de Longas-Metragens, que compunham a nata do festival: seriam as últimas obras exibidas no dia, contando com a participação das equipes de produção, as quais também estariam presentes nas coletivas de imprensa nas manhãs seguintes. Essa atenção se justifica pela ênfase dada aqui no Oxente Pipoca ao cinema nacional, e também às possibilidades de entrevista com as equipes.
Tendo sido esse o primeiro festival que acompanho na vida, é natural que houvessem muitas expectativas, mesmo com todos os relatos de colegas que já participaram de festivais como Cannes, Veneza, Berlim, Mostra de SP, Festival do Rio, Cine PE, o próprio Olhar de Cinema e etc. Mas foi interessante perceber, lá no segundo dia, uma fala de uma das curadoras da Mostra Competitiva sobre as subjetividades presentes nas escolhas das curadorias para os filmes da programação. Imagino o quão árduo é esse processo: foram mais de 1500 longas submetidos, se não estou enganado, para se ter apenas oito na seleção final desta Mostra em específico. O que faz com que esses filmes em específico cheguem até o final? O que os une e ao mesmo tempo os distingue?
À medida que assistia os filmes da Mostra Competitiva (e outros espalhados pelas demais mostras e sessões especiais), percebia de fato certos elos em comum e alguns pontos a serem destacados. Entre eles: 1) a ênfase nas imagens de arquivo (ou contra-arquivo); 2) multiplicidades de um cinema documental no que se refere ao contato com seus personagens, ou à produção de registros autobiográficos; 3) as longas gestações dos filmes, muitas vezes reflexo das tensões da produção e distribuição do nosso audiovisual; 4) diferentes retratos do universo evangélico no cinema brasileiro contemporâneo; 5) um tímido, mas crescente espaço para o cinema de gênero no nosso audiovisual.
O primeiro ponto não chega a ser uma surpresa, já que foi um dos tópicos principais estabelecidos para atravessarem a programação do festival: um dos seminários realizados em paralelo às exibições do filme foi intitulado “Arquivos Desobedientes: O Cinema e as Rasuras da História”. O conceito do contra-arquivo, no sentido de desafiar os arquivos que corroborem narrativas oficiais, foi a tônica de muitas obras exibidas, como a sessão dupla de Quarup Sete Quedas e Desapropriado, ambos documentários do diretor paranaense Francisco Fullgraf sobre o processo de alagamento das terras paranaenses para a construção da Usina de Itaipu e a desapropriação dos agricultores que lá moravam. Também esteve presente em Paraíso, de Ana Rieper, Aoquic Iez in Mexico! O México Não Existirá Mais, de Annalisa Quagliata Blanco, ou até nas abordagens mais ficcionais (mas ancoradas na linguagem documental) de Glória e Liberdade, de Letícia Simões. Tratam-se de obras que lançam luz sobre eventos muitas vezes invisibilizados ou que buscam reescrever a escrita hegemônica da história.
O espaço significativo dado ao cinema documental ou às docuficções também não pôde ser ignorado. Com isso, o que se viu foram múltiplas possibilidades de se fazer documentário, mas certamente os aspectos que mais se sobressaíram foram as diferentes formas de contato desses(as) realizadores(as) com seus personagens, ou até o lugar destes como os protagonistas de suas próprias histórias. Em A Voz de Deus, o diretor Miguel Antunes Ramos nunca se coloca em cena, mas sua aproximação com os protagonistas é inequívoca; já em Explode São Paulo, Gil, a câmera de Maria Clara Escobar é mais incerta na maneira como a própria diretora se insere em cena a partir da amizade com sua protagonista. Enquanto isso, Aurora e Cais se distinguem por terem seus respectivos diretores, João Vieira Torres e Safira Moreira, como seus próprios protagonistas, mas surgindo como pontos de partida para outras figuras e discussões (as mulheres da família de João e a mãe de Safira).
No decorrer das exibições, alguns dos comentários mais recorrentes por parte de realizadores(as) e as equipes foram os longos processos de produção destes filmes: pelo menos três deles, A Voz de Deus, Explode São Paulo, Gil e Glória e Liberdade foram gestados ao longo de períodos de cerca de 10 anos. Obviamente muitas questões apareciam a partir das falas dessas equipes: questões particulares, relações com os personagens, pandemia e outros; mas a problemática do financiamento também veio à tona. Num país que ainda carece de uma indústria audiovisual, onde editais públicos e leis de fomento à cultura muitas vezes são os únicos recursos para que filmes saiam do papel, é sintomático ver numa mesma mostra filmes tão diferentes entre si mas que passaram por problemas semelhantes.

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Assim como não pareceu ter sido previsto que filmes de produções tão longas fossem aglutinados, o mesmo tipo de coincidência apareceu nas diferentes maneiras como o universo evangélico foi retratado nestes filmes. Como já comentei em minha crítica de A Voz de Deus, um dos meus aspectos favoritos do filme foi dar conta deste universo sem cair na abordagem paternalista, acusatória ou condescendente, mas se preocupando em abordar as complexidades, contradições e tensões com um olhar muito humano. O mesmo pôde ser visto em Aurora, já que a diversidade religiosa da família de João Vieira Torres é integral para a jornada que ele percorre em nome de si próprio e de suas parentes mulheres. Por outro lado, Paraíso intenta partir de três pontos de vista distintos sobre o que é o Brasil atual – uma família negra, um líder indígena e um casal de pastores evangélicos –, mas toda a retratação destes últimos não deixa de partir da visão já consolidada por uma parcela da esquerda brasileira, que trata este casal como a única forma possível de ser evangélico num país que sempre foi definido por suas pluralidades.
Por fim, se houve uma ênfase ao documentário e a um cinema tão pessoal quanto político ao longo do festival, a ficção também encontrou um pequeno espaço para se firmar dentro dos mais variados gêneros, exibindo outras formas de se tratar de questões políticas, sociais e culturais sem apelar para discursos tão diretos ou mesmo rasos. Apenas Coisas Boas, de Daniel Nolasco, e Salomé, de André Antônio, são obras marcadas por uma transgressão assumidamente queer – o primeiro a partir do faroeste (mas com uma radical virada de gênero na segunda metade) e o segundo a partir do romance e do horror. Já Cloud, de Kiyoshi Kurosawa, e Verde-Oliva, de Wellington Sari (respectivamente os filmes de abertura e encerramento do festival) exploraram o thriller com toques cômicos e farsescos tanto para discutir a realidade socioeconômica do Japão quanto o caos político-ideológico do Brasil. Houve até espaço para a comédia romântica (sob um prisma LGBTQIA+) no longa paranaense Nem Toda História de Amor Acaba em Morte.
É difícil dizer se essas abordagens se manifestaram nas edições anteriores do Olhar de Cinema ou se repetirão nos próximos anos. Mas, dentro da minha primeira experiência de um festival, é possível notar esses diferentes olhares (sim, o trocadilho foi intencional) que ilustram algumas das muitas maneiras pelas quais o nosso audiovisual – e o de outros países – vem atuando, mesmo que obviamente se entenda que se tratam de recortes dentro de uma produção muito mais vasta e plural. Mesmo que o saldo final seja de resultados variados (houveram filmes que amei, outros que detestei e outros que caíram no meio termo), é satisfatório poder ver sua paixão por cinema sendo compartilhada por tantos outros e outras, ideias sendo trocadas, debates sendo levantados, possibilidades sendo apresentadas. Se tem uma coisa que o Olhar de Cinema me mostrou é que, mesmo com a rotina louca que é exigida, é impossível não querer mais dela. Que venham outros Olhares, outros festivais e muitos outros filmes!