Um espetáculo de excelência negra para uma história que merece ser recontada
Foto: Divulgação/ Warner Bros. Pictures Brasil
Produzido por Oprah Winfrey, Steven Spielberg, Scott Sanders e Quincy Jones, A Cor Púrpura é uma nova e ousada versão da clássica história de amor e resiliência, adaptada do adorado romance e do premiado musical da Broadway. Separada da irmã e dos filhos, Celie (Fantasia Barrino) é uma jovem negra nos EUA no início dos anos 1900 que enfrenta muitas dificuldades em sua vida, mas encontra força na extraordinária fraternidade de três mulheres que compartilham um vínculo indissolúvel.
Discutir adaptação é uma conversa para dias à fio. Em seu livro A Literatura Através do Cinema: Realismo, Magia e a Arte da Adaptação o professor e pesquisador afirma que o simples fato da mudança de um meio faz com que nenhuma adaptação seja completamente fiel à obra-base, e isso vale inclusive para traduções. E, portanto, fidelidade ao produto original não obrigatoriamente qualifica uma adaptação, isso vai dos parâmetros e das limitações de cada consumidor. Mas também não quero e nem vou transformar esse texto num artigo acadêmico com citações, referências e definições de adaptação, transmídia e derivados, mas também achei importante abrir com essa discussão para tentar construir um texto com o mínimo de comparações possível.
Falo isso como alguém que leu o romance fazendo comparações entre o inglês e o português, assistiu à versão de Steven Spielberg e já viu algumas versões da peça de teatro musical. Essa é, de fato, uma adaptação que traz em sua essência as outras versões, então, acredite, é um filme que mesmo assim consegue se impor como novo, afinal, a abordagem da peça e desse filme pesam de forma diferente do que o material original. E é importante que haja um mínimo esforço para separar as adaptações, afinal o fluxo livro-filme-teatro musical-filme vem se mostrando tendência, aconteceu também em 2022 com Matilda, e 2024 com Meninas Malvadas e Wicked.
Foto: Divulgação/ Warner Bros. Pictures Brasil
E na perspectiva dessa produção o enredo se torna mais leve e encorajador com a inserção de momentos imagéticos que abrandam e, porque não, enfeitam um texto que é denso por natureza. No cinema, o diretor Bob Fosse popularizou essa ferramenta de usar esse espaço exterior ao real como o lugar para os números musicais. Não há o que dizer dos quesitos técnicos que estruturam o longa. A produção é toda deslumbrante, mas nada brilha tanto quanto o elenco.
Fantasia – ganhadora da terceira edição do American Idol – já viveu Celie numa das primeiras montagens da peça. E neste filme ela justifica o porquê, mesmo tendo passado duas décadas, ainda é a escolha ideal para o papel. Fantasia atua com uma verdade no olhar e canta com uma lágrima na voz de quem já teve sua cota de sofrimento na vida. Danielle Brooks, que também já interpretou sua personagem Sofia no teatro, devora os momentos em que aparece e converge a toda a atenção para ela. Da mesma forma, Taraji P. Henson também não desaparece em meio às duas já conhecidas do roteiro da peça. Os coadjuvantes masculinos Colman Domingo e Corey Hawkins também estão no tom ideal para seus personagens que, no sentido mais literal, são apenas pontos de apoio para as mulheres em cena.
Existe, porém, algumas pedras no sapato da fluidez do filme que são: o excesso de cortes não só nos números musicais como também em cenas mais estáticas de diálogos simples; a mistura de tonalidades e propostas nos mais diversos momentos; e a cadência da filmagem que parece começar bem energética e compassada, e nos instantes finais precisa apressar para ter fôlego para os importantes instantes finais. E dá pra entender e quase sentir a urgência e o entusiasmo do diretor ganês Blitz Bazawule em filmar essa história. Esse é apenas o segundo longa-metragem do talentoso – que tem no currículo a codireção do musical Black is King da cantora Beyoncé – mas ele já apresenta que sabe conduzir visualmente uma narrativa antes de qualquer outra coisa (assistiam ao poético O Enterro de Kojo). Mas sinceramente a mensagem é tão poderosa que perpassa e suaviza qualquer excesso e falha do meio.
Foto: Divulgação/ Warner Bros. Pictures Brasil
Hollywood sabe montar um espetáculo como ninguém, doa a quem doer. E ver negros à frente das câmeras (e também por trás delas) conduzindo um espetáculo desse porte, brilhando e contando uma história poderosa, e que impressiona através do canto, da dança, de matizes, de sombras, de texturas e de várias camadas transforma A Cor Púrpura em um filme obrigatório. É daqueles onde sentimento perpassa a técnica. É coisa de pele. É coisa da cor.
Nota: 4/5
Comments