As várias faces de uma história sórdida protagonizada pela hipocrisia moral
Divulgação: Globoplay
Três anos após mais um crime que parou o Brasil, o Globoplay e O Globo unem-se à Boutique Filmes, e trazem ao streaming a série-documentário sobre o assassinato do Pastor Anderson do Carmo e o envolvimento de sua esposa e ex deputada-federal Flordelis. Os seis episódios são nomeados após passagens bíblicas marcantes (mesmo recurso utilizado em Missa da Meia-Noite), que fornecem o background necessário para a identificação do simbolismo e a relação com o desenrolar dos acontecimentos. A narrativa não-linear para construir o mosaico das histórias de Flordelis, Anderson, e das outras pessoas intrincadas não confunde tanto quanto os múltiplos nomes, apelidos e rostos dispostos na história; além de delegados, peritos, e todo o corpo técnico de profissionais envolvidos ao longo do extenso processo. Mas não há motivos para desistir de assistir, como em toda boa trama, alguns acontecimentos são deixados pelo caminho para a explicação posterior, e quando isto acontece, a sensação é de que mais uma chave de compreensão foi entregue.
“Uma deusa, uma louca, uma feiticeira?”
A produção não economiza na tentativa de sintetizar a mulher e a persona Flordelis, e obtêm êxito quando, através da numerosa contraposição de depoimentos, abre espaço para que quem assiste possa também agrupar opiniões sobre ela. Interessante perceber que esse julgamento pode ser uma armadilha perigosa, já que a lógica dicotômica surge rapidamente em função de simplificar uma figura tão complexa como a da ex-deputada. Quem é a mulher que surge na favela do Jacarezinho, acolhendo crianças dentro de casa, com um sonho de igualdade e melhores oportunidades para seus “filhos”? É um chamado glorioso, divino?
A mulher mítica, a imagem da super-mãe que enfrenta todos os obstáculos, desafia autoridades – em dado momento conta-se, pelas vozes de Anderson e Flor, o dia em que ela contraria uma ordem do então juiz da vara da Infância, face a face, clamando pela intervenção da autoridade divina–, que progressivamente, desponta na mídia sempre incansável por justiça, emprestando a voz às composições que tocam o coração de milhares de fiéis com canções que buscam devolver a autoestima dos que creem nas promessas do deus cristão; a mulher negra, pobre, favelada, torna-se símbolo da ascensão social, que neste âmbito, também significa ascensão espiritual, é desnudada. Enquanto mostra-se frágil e quebrável, inapta para estar só, e carente da onipresença do marido, é também a mandante de um crime cruel, e manipuladora; Patrona de uma residência cuja estrutura perversa de castas priva o acesso de alguns membros vistos apenas como serviçais, a serva de Deus, cujo espírito veio do Sétimo Céu, a mulher irredutível, numa posição autoritária, “masculina” – visto que questiona algumas concepções pré-estabelecidas de gênero engendradas na estrutura do Evangelicalismo no Brasil. Mostra-se sacerdotisa, confiável pela comunidade enquanto é fraude e farsa para outros. Mas em nenhuma hipótese, uma mulher que não atrai atenção, e que não sabe portar-se diante do escrutínio da sociedade.
“O profundo e o escondido”
No ano de 2018, com a eleição do futuro ex-presidente Jair Bolsonaro e a explosão do Evangelicalismo no Poder Público, o ideal de Brasil Cristão alastrou-se junto à onda conservadora que já vinha dando sinais de crescimento ao redor do mundo. A nítida debandada de líderes religiosos para o Congresso Nacional como representantes ou apoiadores de pautas mais à direita, que intercedesse pela tal “família tradicional brasileira” (alguém sabe do que eles estão falando?), pelo livre exercício de expressão religiosa – desde que seja apenas da fé cristã –, e claro, do homem vestindo azul e da menina vestindo rosa. É neste delírio em forma de projeto de nação, combinada à fraqueza e inaptidão do Estado Nacional em políticas de emprego, renda, fome, e saúde pública, que as lideranças religiosas pentecostais e neopentecostais ganham força em projetos que resgatam a humanidade de pessoas desassistidas (e estes esforços devem ser reconhecidos), pelo caríssimo preço da lealdade aos supostos “servos de Deus” na política. É neste cenário que surge o cavalo azarão, Flordelis, a quinta deputada mais votada do Rio de Janeiro, com quase 200 mil votos e uma promessa: vamos cuidar das crianças do Brasil.
As ligações políticas com nomes proeminentes do conservadorismo político brasileiro foram se multiplicando proporcionalmente à fama do trabalho com a Igreja, o trabalho musical, e o trabalho social que visava “desburocratizar a adoção no país”, contando com o apoio da ministra Damares Alves. A fama de Flordelis não servia a ela, apenas. No auge que estava antes do crime, quem compartilhasse dos caminhos e acordos fornecidos por ela, certamente estaria em bons lençóis. A série é perspicaz quando ressalta isto: Flordelis foi um fenômeno criado e mantido também pelo storytelling da mídia, dos seus investidores, que ganhavam dinheiro e capital social ao partilhar das ligações proporcionadas pela proximidade com a “diva” gospel. Mas, como toda casa dividida não subsiste, ao primeiro sinal de instabilidade, os apoios foram retirados, e as entranhas, expostas.
Os segredos internos: da casa, dos filhos e netos, dos relacionamentos e jogos de poder entre filhos biológicos e adotados; e externos, em forma de planos megalomaníacos pela busca do maior poder de demanda e cumprimento de exigências pessoais através da máquina pública, são colocados no display. Curioso perceber como a casa, de forte apelo imagético por ser a única da vizinhança com cor externa vibrante que destoa do padrão bucólico do bairro de classe média-alta, funciona como uma miniatura do funcionamento das relações gerais estabelecidas ao redor da matriarca: uma relação de dependência em quereres. Muitos queriam ascender socialmente (dentro e fora da casa, até mesmo Anderson e Flordelis, que supostamente passaram por algum momento de dificuldade financeira), desfrutar de benesses e acessos. A partir do terceiro episódio o turning point é intrigante, e o “Por Que?” ecoa durante a descoberta dos passos traçados por cada membro chave envolvido no complô que resultou na morte do Pastor. Confesso que diversas vezes pensei “não era mais fácil se separar?”. Que deus é este que vira o rosto para um assassinato, mas se enfurece com um divórcio?
Farsa, infâmia, calúnia ou justiça divina? Ao final do último episódio, os testemunhos imponentes do casal à bradar por verdade, justiça, clareza durante pregações, vociferando perguntas sobre integridade e retidão moral numa alusão não-intencional ao versículo que se tornou mote do governo vigente cravam-se no ar como uma resposta indireta e silenciosa.
Nota: 4,5/5
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