Crítica | The Pitt (1ª temporada)
- Aianne Amado
- 12 de abr.
- 5 min de leitura
Sem medo do realismo, 'The Pitt' faz mais que sobreviver ao plantão: dá aula de resiliência ao gênero.

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Já dizia o grande Gil: o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Reinventando o drama médico procedural, The Pitt — série da Max cuja primeira temporada terminou nesta quinta-feira (10/04) — leva essa máxima ao extremo.
“Aqui”, porque a série se desenrola quase inteiramente (com exceção das cenas inicial e final) no mesmo cenário: o fictício Pittsburgh Trauma Medical Hospital, carinhosa e ironicamente apelidado de The Pitt – mais precisamente, a história se passa entre a ala de emergência e a triagem. Sabemos que, lá fora, há uma perseguição policial e um festival de música, crianças deixadas desacompanhadas e jovens usando substâncias ilícitas para turbinar os estudos, mas nada disso é mostrado.
O que poderia facilmente se transformar num exercício claustrofóbico, redundante ou cansativo acaba se tornando um dos mais belos trabalhos de roteiro da TV atual. Comandado por Valerie Chu e R. Scott Gemmill, o texto se resolve nas ações e diálogos e, para isso, se vale do formato de ensemble (quando múltiplos personagens principais compartilham a narrativa). Sob a liderança de Dr. Robby (Noah Wyle), acompanhamos diversos profissionais de saúde durante vários casos, de diferentes gravidades, que entram e saem daquele plantão. Cada situação revela novas camadas dos personagens, que, inevitavelmente, deixam escapar traços de suas histórias pessoais, afinal, como manter uma postura estritamente profissional diante da dor de pais que acabaram de perder um filho ou de filhos que acabam de perder um pai?
Pouco a pouco, a carga emocional da profissão nos oferece as peças para montar o quebra-cabeça humano que são esses personagens: uma médica que sonha engravidar após um aborto voluntário; uma mãe que, depois de ser presa defendendo o filho, busca recomeçar na carreira; um médico que vive para o trabalho, mas não conseguiu salvar seu mentor na pandemia; um jovem prodígio que, tentando conciliar vida pessoal e profissional, cai nas mesmas armadilhas do vício que combate todos os dias; uma residente amarga, mas apaixonada pelo que faz; uma enfermeira-chefe veterana, exaurida pela rotina massacrante. E por aí vai.
Mas nem o roteiro mais refinado sustentaria sozinho essa salada de personagens sem um elenco à altura – até porque, inevitavelmente boa parte dos diálogos se baseiam em termos altamente nichados no universo hospitalar, não fazendo o menor sentido para a audiência não especializada na área da saúde. A série preza pelo realismo constante, e a naturalidade das atuações é essencial para nos inserir na seriedade da profissão retratada.
Na tentativa de destacar as atuações que mais chamam atenção, estaria fadada a listar mais da metade dos atores e atrizes encontrados no IMDB da série. Me atenho, então, ao protagonista: Wyle entende exatamente sua função enquanto líder, roubando a cena na maioria das vezes, mas, vez ou outra, deixando espaço para seus colegas se destacarem. Na missão de dar vida ao médico, líder e professor da equipe, consegue balancear uma postura imponente e um olhar vulnerável, transmitindo, apenas com um levantar de sobrancelhas ou uma passada de mãos no rosto, exatamente o dilema “profissional x humano” que a série propõe. Em algumas das cenas, quando tenta encorajar sua equipe, Dr. Robby diz precisamente o oposto do que está sentindo, e cabe a Wyle todos os louros por fazer isso de forma tão convincente. Muitos atores de maior prestígio não conseguiriam a maestria que ele obteve.

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O “agora” se materializa no formato temporal da série: o tempo diegético acompanha o tempo de exibição. Ou seja, os quinze episódios de cerca de uma hora correspondem a quinze horas seguidas na vida dos personagens. Essa escolha, acertadíssima, não é inédita na televisão (os mais experientes certamente lembrarão de Jack Bauer e suas 24 horas — a série que imortalizou o formato em tempo real na televisão), sendo ideal para representar a adrenalina da medicina de emergência e contribuir para o realismo da obra.
O número de episódios, embora quase o dobro do padrão atual nas séries de streaming, é ideal para desenvolver a trama sem pressa ou excesso: o suficiente para nos familiarizarmos (e, em alguns casos, apegarmos) aos personagens, sem exagerar na dose de quantos eventos e reviravoltas podem acontecer em uma só temporada – e, por consequência, em um só plantão. O primeiro episódio marca a troca de turnos entre os plantonistas da noite e os do dia, dentre os quais estão os residentes Melissa King (Taylor Dearden), Trinity Santos (Isa Briones), Dennis Whitaker (Gerran Howell) e Victoria Javadi (Shabana Azeez), em seu primeiro dia no hospital. Eles servem como nossos representantes em tela, descobrindo, junto da audiência, o funcionamento daquele caos organizado. A adaptação deles (e nossa) é essencial para manter o fôlego da narrativa, garantindo que o formato de tempo contínuo não se torne repetitivo ou exaustivo.
Diferenciando-se das tendências atuais, a montagem da série é cautelosa ao evitar cortes excessivamente rápidos, mesmo nas cenas mais agitadas. Para transmitir a tensão, a produção se apoia em movimentos de câmera dinâmicos e ângulos inusitados, capturando um cenário iluminado pela luz branca refletida em paredes ainda mais brancas, apenas contrastados com o azul e verde das roupas dos plantonistas e, por vezes, o vermelho sangue. Por sinal, em obras que buscam o realismo, a direção de arte tende a passar despercebida, seguindo a lógica do “se não chamar atenção, o trabalho foi bem feito”. Mas, especialmente em The Pitt, não se pode ignorar o rigor primordial da equipe de maquiagem e efeitos especiais, que trazem alguns dos planos mais verossímeis já vistos na ficção hospitalar.
Por fim, o “melhor” se justifica pois se trata da modernização e aperfeiçoamento de um gênero de televisão seriada que parecia saturado e fadado às reexibições de séries já produzidas. Ao trazer o drama médico procedural para a década de 2020, The Pitt oferece frescor não pela inovação absoluta, mas por uma releitura bem executada. E faz isso deixando uma clara mensagem política, se posicionando criticamente contra o sistema de saúde estadunidense e à disseminação de desinformação, o que é feito organicamente ao longo da trama.
A série retrata tão bem a seriedade da temática que se torna sua própria inimiga ao tentar emplacar um romance puro e juvenil entre Javadi e o enfermeiro Mateo Diaz (Jalen Thomas Brooks), destoando totalmente do restante das cenas. Os elementos de leveza em meio ao drama são satisfatoriamente preenchidos nas relações causais entre equipe e pacientes, não necessitando dessa muleta narrativa para prender ainda mais a atenção do público – e, em contraste, esse plot causa exatamente o oposto. A relação entre Dr. Robby e Drª. Collins (Tracy Ifeachor), mais madura e complexa, já seria o bastante para preencher a cota de ship da série.
Esse entrave narrativo, porém, não elimina todos os outros acertos. Diante da excelente recepção do público — que só cresceu com o formato de lançamentos semanais —, a Max confirmou novas temporadas antes mesmo do encerramento da primeira. Sorte dos fictícios pacientes de Pittsburgh, que estão nas mãos de uma equipe médica de primeira. E sorte nossa, espectadores, que ainda podemos contar com mais uma dose de televisão de qualidade.
Nota: 5/5
Incrível a forma natural que o roteiro se cria, nada é expositivo, cada informação que se revela dos personagens é encaixada de maneira sútil nos diálogos e olhares dos personagens, um primor de narrativa. Espero que não só mantenham esse nível nas próximas temporadas como busquem inovar também, principalmente em explorar outros núcleos do hospital que não tiveram tanto destaque nessa temporada, como o turno da noite com o Dr Jack Abbott (O MELHOR PERSONAGEM)