O cotidiano dos vilões, visto de longe
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Um filme tem um tempo limitado, usualmente não mais que 150 minutos, para nos contar (ou mostrar) toda uma história, do começo ao fim, passando pelo clímax e apresentando seus diversos personagens e cenários. É muita coisa para pouco tempo. Para otimizar cada segundo, o cinema se apropriou de um recurso conhecido da literatura: a alusão, isto é, a referência a algo externo ao filme. Ora, não se pode perder preciosos frames explicando algo que assume-se que o espectador já saiba. Imagina se todo filme natalino precisasse explicar o motivo cristão para a celebração do aniversário de Jesus. Não dá, né? Põe logo uma árvore iluminada no meio da sala e já entendemos do que se trata.
É isso que pensou Jonathan Glazer, diretor e roteirista de Zona de Interesse. Só que ao invés de natal, é o holocausto, e no lugar da árvore, uniformes com suásticas e gritos de desespero. Sua intenção não é mostrar o sofrimento imensurável dos judeus, tampouco as atitudes perversas e covardes de Hitler e seus apoiadores. Ele sabe que já ouvimos e vimos essa história antes. Seu interesse é por algo que sequer passou pela nossa cabeça quando pensamos nesse período: o ordinário, o dia a dia de uma aparentemente comum família alemã.
A maior parte do filme se passa na casa dos Höss. Em momento nenhum somos informados que atrás daqueles muros estão os campos de concentração de Auschwitz, mas sua presença é sentida – não importa o quando Hedwig (Sandra Hüller), esposa do comandante Rudolf (Christian Friedel), tente cuidar de sua casa e seu jardim para fazê-los aconchegante. Em uma passagem, ela chega a mencionar que está deixando crescer as plantas para que tapem as chaminés e suas fumaças, mas entendemos ser mais por uma questão estética que moral.
Essa é a vida que o casal sempre sonhou. Rudolf tem um bom posto no exército, Hedwig conquistou o lar dos sonhos para criar seus cinco filhos. Dispõem de babás e empregadas domésticas, piscina, cavalo e até um barco novo. Nas folga, vão todos ao lago mais próximo. Uma vida bucólica, nem tão feliz nem tão triste. Perfeitamente normal.
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É na quebra dessa trivialidade que está o mérito do filme. Enquanto a esposa toma chá e fofoca com as amigas, o marido conversa no cômodo seguinte sobre a forma mais eficiente de queimar centenas de milhares de seres humanos. Numa brincadeira entre irmãos, o mais velho aprisiona o mais novo na estufa de plantas e faz barulho de gás. Hedwig entra em seu quarto com um novíssimo casaco de pele… que por algum motivo tinha em seu bolso um batom usado.
Não há culpa ou remorso. É o que é. Quando, ao caminho da escola, as crianças passam por fábricas de extermínio, é porque chegou-se num nível de cegueira moral difícil de compreender. Nos recusamos a aceitar que alguém pudesse banalizar o terror porque temos medo que possa acontecer com a gente. É nessa ferida que Zona de Interesse mexe, e continuará mexendo por muito tempo após os créditos rolarem.
Quando optou por adaptar para as telonas uma das várias perspectivas trazidas no livro homônimo de Martin Amis, Glazer quis inovar não apenas na abordagem do tema: buscando se aproximar de uma estética do que chamam de “filme de arte”, toma decisões pouco convencionais na linguagem fílmica. A montagem é propositalmente lenta, passando exatamente a sensação de cotidiano que se pretende. As longas sequências são construídas por longas cenas de longos takes, quase sempre em planos médios ou gerais, meio como imagens de câmeras de segurança. Chuto que essa escolha se dá para evitar uma eventual identificação entre público e personagem, algo que estamos tão acostumados a fazer que talvez acontecesse instintivamente. Faz sentido na teoria, mas não tanto na prática. A todo tempo tinha a impressão de que, míope que sou, tinha ido ao cinema sem óculos, sem poder ver a riqueza de detalhes na construção do cenário que buscou reproduzir a casa da verdadeira família Höss, e menos ainda as nuances das atuações (que, portanto, não consigo qualificar adequadamente). Sequer sou capaz de dizer a cor dos olhos de um dos protagonistas. O mal estar visual agrava-se com a edição de cores lavadas na fotografia de Lukasz Zal.
O design de som, por outro lado, é um primor. Contradiz tudo que nossos olhos nos informam, embalando a banalidade com um terror sonoro inquietante, por vezes interrompido por gritos de personagens desconhecidos. Nem barulhento demais a ponto de nos tirar a atenção, nem simples demais a ponto de nos deixarmos acostumados com o incômodo (como os moradores de Auschwitz), a união da trilha sonora de Mica Levi e da edição de som de Maximilian Behrens é um trabalho sofisticado, daqueles que se deve levar para as aulas de cinema.
Pode ser o desagrado visual falando, mas a verdade é que, depois de um primeiro momento em que entendi, me surpreendi e amei a originalidade da abordagem do filme, fiquei esperando um grande evento que justificasse os meus próximos 100 preciosos minutos naquela poltrona vermelha. Não veio.
Me lembrei de quando vi Boyhood (Olha! Também sei fazer alusão!) e questionei por que assistir a uma vida corriqueira se, ordinária por ordinária, já vivo a minha. Claro, não é como se o cotidiano dos Höss tivesse qualquer semelhança com o meu. Só que a intenção do diretor foi justamente criar essa banalidade ao horror logo no início do filme, e, para bem ou para mal, o faz perfeitamente, deixando os demais atos um tanto quanto monótonos – adjetivo que jamais deveria ser usado num filme sobre o tema.
Nota: 3/5
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