Entrevista | “Acho que o cinema sempre foi um espaço para a fantasia, para o surreal, para sair das quatro linhas do cotidiano”: Gustavo Spolidoro fala sobre seu filme “Os Dragões” e fazer audiovisual
- Ana Beatriz Andrade
- 3 de jun.
- 8 min de leitura
“Os Dragões”, drama adolescente de fantasia, chega aos cinemas de 26 cidades brasileiras.

Dirigido por Gustavo Spolidoro e inspirado na obra de Murilo Rubião, Os Dragões teve sua estreia oficial e exclusiva no Rio Grande do Sul no dia 22 de maio. Agora, amplia seu alcance com sessões em salas de cinema de 26 cidades do país, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Boa Vista, Cuiabá, Curitiba e Manaus.
A história do longa-metragem acompanha cinco jovens de Cotiporã, uma pequena cidade com uma comunidade conservadora que, ao passarem por transformações físicas inexplicáveis, enfrentam o dilema entre seguir as regras ou assumir sua verdadeira natureza.
O Oxente Pipoca conversou com o diretor Gustavo Spolidoro, que contou como o projeto começou, quais as expectativas para o gênero fantástico no Brasil e a importância de políticas de fomento ao audiovisual no país.
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Primeiramente, Gustavo, queria perguntar como o projeto veio a acontecer. Qual foi o início de “Os Dragões”?
Gustavo Spolidoro: Então… Senta que lá vem história! Eu já tinha uma admiração muito grande pelo Murilo Rubião, que é um autor mineiro de realismo mágico, expoente do realismo mágico aqui no Brasil. E essa admiração veio muito por filmes que eu vi de amigos, mineiros também. Fui conhecer a obra dele, que é uma obra enxuta, são 33 contos que ele escreveu, e o jeito que ele escreveu durante muito tempo, eu reescrevia. Tanto que o conto original de “Os Dragões" não é o mesmo que está no projeto atual. Eu já tinha feito um filme em Cotiporã, no caso chama-se “Morro do Céu”, esse documentário, que é a cidade em que a minha avó nasceu. Eu tinha vontade de voltar e continuar filmando lá, mas eu queria passar pra uma ficção.
E aí foi, acho que, bem natural, eu reler essas obras, em algum momento. O Rubião já com a vontade também, já que eu tive a oportunidade, em vezes anteriores, de fazer algo sobre ele. E eu queria enxergar em alguns desses contos paisagens e histórias que poderiam ser contadas em Cotiporã, principalmente nessa ideia adolescente.
É um filme feito com, para e sobre esse público adolescente. Isso porque também hoje eu tenho uma filha que está com 18, mas quando o projeto surgiu ela deveria ter uns 12 anos, digamos assim. E aí encontrei em Cotiporã essas histórias que se pareciam também com as histórias dos meus amigos da minha adolescência. São as descobertas, a valorização da liberdade, que é muito importante para uma cidade de apenas 4.500 habitantes. Aquela galera dava valor pra liberdade, que era um tema que, para mim, por morar em Porto Alegre e não ter, digamos, cobranças, eu não tinha a compreensão do que é dar valor pra liberdade. Então eu consegui enxergar nesses meus amigos da adolescência os personagens que estão principalmente nos contos “Os Dragões”, porque são quatro contos adaptados. Então achei bacana juntar essas reminiscências: a obra do Rubião, a cidade de Cotiporã e o assunto da adolescência.
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): “Os Dragões” é um drama de fantasia que aborda temas como o amadurecimento e as transformações que acompanham o passar do tempo. Qual foi o maior desafio em, ao mesmo tempo, fazer um filme sobre fantasia e trazer questões reais que muita gente se identifica?
Gustavo Spolidoro: Eu me identifico com esses personagens, porque são inspirados em histórias que eu vivi com os meus amigos de Cotiporã, que hoje estão todos com a minha idade também. Não é tão difícil compreender a adolescência quando você já foi adolescente, é difícil quando você está passando por isso. Quando você passou por esse medo, e eu passei por muitos. Na época eu já era punk, usava o cabelo moicano (risos), nos anos 80, então era tudo assustador. A gente não sabia o que estava por vir.
A gente trouxe pro filme essa frase do Rubião: “É preciso conspirar”. Essa frase está no conto “A Cidade”, que fala sobre um cara que é preso por fazer perguntas demais. Então a gente trouxe essa citação no filme, na cena da delegacia em que a jovem é presa por fazer muitas perguntas. Então, o desafio era fazer um filme que pudesse ser compreendido por essa parcela de jovens – eu diria que são os jovens que sentam no fundo da sala. É um filme para aquela galera que eu, e uma boa parcela de brasileiros, se identifica, que sentava no fundão. A galera que questiona, que não aceita tudo como está sendo colocado. São os jovens e jovens-adultos que fazem as revoluções do mundo. Eu, quando jovem, também tentei fazer as minhas revoluções.
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Por falar em jovens, queria te perguntar como foi o processo de gravação com o elenco. Como foram as gravações no set?
Gustavo Spolidoro: A gente teve a parceria da Companhia Arte In Cena, que é uma companhia de teatro de Cotiporã. Então imagine manter uma companhia de teatro em uma cidade de 4.500 habitantes, pequena, mas que tem o seu teatro e faz as suas apresentações na região e, às vezes, fora do estado também.
Foi uma parceria desde o início do projeto, e a única exigência da professora Adriana Titton Balotin foi: “Precisamos colocar os 23 atores da companhia no filme.” E todos estão lá, com falas. Também tivemos o Marcos Breda, ator renomado, que já fez muita coisa. Interpretou, inclusive, o Mário do Marcelo Rubens Paiva no filme “Feliz Ano Velho”, de 1987. O pai dele é de Cotiporã, então chamar o Breda, que é um amigo, foi muito bom também.
E claro, muitos figurantes da cidade. A cidade praticamente toda se mobilizou para a realização do filme. Parentes meus também aparecem em cena. Então foi um trabalho bem longo com o grupo. Porque, no primeiro momento, o grupo ensaiou uma peça de teatro chamada “Os Dragões”, mas no fim decidimos que não ia fazer tanto sentido para o roteiro. Então, fiz o teste com os jovens já colocando nos personagens parte da personalidade dos atores que eu já estava conhecendo. Isso principalmente para o personagem do Jacó, que é o Paulo Reginatto, e da Isa, que é a personagem da Larissa Tres.
Também contei com a preparadora de elenco Larissa Sanguiné, de Porto Alegre, que me ajudou em cenas muito importantes. Ela ajudou muito na preparação de atores que estavam inseguros. Porque muitos ali são atores, mas têm a sua vida, outra faculdade, outros processos. Então, foi bem natural chamar a Larissa, com quem eu já tinha trabalhado, para ajudar com a preparação desse elenco.
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): A fantasia brasileira ainda é um gênero em desenvolvimento no cinema nacional. Você enxerga um crescimento recente nessa área? Quais caminhos acredita que o gênero pode seguir nos próximos anos?
Gustavo Spolidoro: Acho que o cinema sempre foi um espaço para a fantasia, para o surreal, para sair das quatro linhas do cotidiano. Acho que o cinema não é um mero reprodutor da realidade, porque a gente vê muito isso no jornalismo, por exemplo. Às vezes, me incomoda quando um filme tenta ser apenas moralista ou mostrar o que a gente vê todo dia ou o que a gente já sabe. Eu acho que o cinema tem um papel muito maior de transformar através da arte. Então, mesmo trazendo temas da adolescência e sobre questionar, a gente tentou fazer isso de uma forma que dialogasse com o realismo mágico, que é uma marca do Rubião.
Eu acho que o cinema brasileiro transita bem por isso. Já o cinema europeu e o americano não tanto, já que eles são mais cartesianos. A África trouxe muito para o Brasil essa marca. Os escritores beberam muito dessa fonte, das religiões de matrizes afro-brasileiras e afro-latinas, e trouxeram isso para o cinema brasileiro e a literatura.
Claro que, no filme, alguém pode estranhar a situação, por talvez não ter muito contexto sobre o realismo mágico ou a obra do Rubião. Então alguém pode ficar pensando “como isso pode estar acontecendo?”. Afinal, os jovens soltam fogo no filme. Porém, ninguém questiona que eles soltam fogo, mas sim que eles estão “tumultuando” a cidade. Isso é realismo mágico, né?
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Durante minha pesquisa sobre o filme, vi que ele tem uma distribuição feita por um edital de comercialização, o Prodecine 03. Então, Gustavo, eu queria perguntar sobre a importância dessas iniciativas de fomento para produtores e cineastas e como tem sido a sua experiência?
Gustavo Spolidoro: Eu acho que o Brasil amadureceu as suas políticas de audiovisual. As políticas estão cada vez mais descentralizadoras, trabalhando com pautas afirmativas. Então os editais e as políticas funcionam, o Fundo Setorial do Audiovisual funciona. O problema maior é a questão da relação entre distribuição e exibição.
Você está lidando com um meio comercial, que é a exibição, e um meio que transita entre o autoral dos cineastas brasileiros e o comercial, que é a distribuição. Nem sempre é fácil. Existem, então, os editais, como o Prodecine 03, para isso. Infelizmente, tivemos uma paralisia momentânea no fomento do cinema brasileiro há alguns anos. Isso atrasou também o nosso filme. A gente só está conseguindo distribuir o filme agora, já que ele dependia de um edital. Às vezes, dependendo da linha de fomento que você entra, você já tem o recurso previsto para distribuição, porém não foi o caso e tivemos que aguardar.
Recurso esse que, para quem não sabe, parte dele vem do Fundo Setorial do Audiovisual, alimentado pelos realizadores de audiovisual no Brasil, que são as TVs e as telefônicas que exibem esse conteúdo audiovisual. Infelizmente, o streaming não está regulamentado no Brasil ainda, então eles não pagam nem contribuem para o fomento da indústria audiovisual brasileira. A não ser quando eles fazem individualmente as produções brasileiras, que costumam fazer por conta própria.
Então, essas políticas são importantes por isso, e ainda há um caminho a se percorrer em relação a questões de distribuição e exibição.
Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Por fim, essa pergunta já é clássica do Oxente Pipoca: vou pedir pra você recomendar três filmes brasileiros para os nossos leitores.
Gustavo Spolidoro: Primeiro, vou recomendar o meu filme brasileiro favorito de todos os tempos, que é “O Bandido da Luz Vermelha”, um filme do Rogério Sganzerla que é um dos mais marcantes da minha vida. Tive o prazer de conhecer o Rogério ainda vivo, em Porto Alegre. Também conheci a esposa dele, Helena Ignez, atriz e cineasta. Uma pessoa muito querida e amiga, com quem eventualmente falo.
Recomendarei um filme recente e gaúcho, que transita dentro do realismo mágico e que, pra mim, está no Top 5 dos filmes feitos no Rio Grande do Sul, que se chama “Despedida”. Um filme infantil e pré-adolescente, para um público um pouco mais jovem do que “Os Dragões”. Ele bebe de “Alice no País das Maravilhas” e outras propostas que fogem desse lugar-comum. Foi feito pela Luciana Mazeto e com o roteiro do Vinícius Lopes, que foram meus alunos, e é um longa-metragem que gosto muito.
E um terceiro filme que eu indicaria, esse foi bastante revolucionário na chamada retomada do cinema brasileiro, após o baque do governo Collor. Houve cineastas que surgiram numa época em que era muito difícil fazer filme e captar dinheiro, já que não havia editais e leis. Então, esse cineasta, Beto Brant, fez o filme chamado “Os Matadores”, uma adaptação do Marcelo Aquino. Um filme que foi um marco no cinema brasileiro, que tem uma proposta contemporânea, ousada, com fontes e referências interessantes, mas com muita autoria do Beto Brant também.