Entrevista | Fábio Flecha fala sobre “Do Sul, a Vingança”, primeira longa inteiramente produzido no Mato Grosso do Sul a estrear no circuito comercial de cinemas
- Vinicius Oliveira
- 20 de mai.
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Atualizado: 22 de mai.
Em entrevista ao Oxente Pipoca, o diretor falou sobre as temáticas e influências do filme, bem como sua importância para a produção cinematográfica do estado.

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Lançado no dia 15, Do Sul, a Vingança fez história como o primeiro longa de ficção inteiramente produzido no Mato Grosso do Sul a estrear no circuito comercial dos cinemas brasileiros. O longa, dirigido por Fábio Flecha, conta a história escritor Lauriano (Felipe Lourenço), que parte para a conturbada fronteira entre Mato Grosso do Sul, Paraguai e Bolívia em busca de material para seu próximo livro e se vê envolvido em uma trama tão perigosa quanto cômica, onde sobreviver é o seu maior desafio.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Fábio, que falou a respeito das influências trazidas para o filme, as maneiras pela qual se abordou a temática dos crimes praticados na fronteira e como o longa representa um marco para a produção cinematográfica sul-mato-grossense. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): "Do Sul, a Vingança" tem a distinção de ser o primeiro filme produzido inteiramente no Mato Grosso do Sul a chegar ao circuito comercial de cinemas. Como você definiria a importância de ter um filme feito no estado e que trata de questões tão específicas dessa região?
Fábio Flecha: Mato Grosso do Sul é um estado novo, que não tem mais de 50 anos. E em termos de significado, eu acho que a gente começa a abrir mais portas e mais janelas pro cinema, pra produção. Porque produzir cinema no Brasil já é um desafio muito grande, seja em qualquer local, e produzir numa região que não tem tradição de produção do cinema, ser o primeiro a colocar um filme nos cinemas, nossa, faz uma diferença muito grande para as pessoas aqui no nosso estado, para os órgãos de cultura. Até mesmo a Fundação de Turismo estava nos apoiando, porque é necessário mostrar um pouco do que está aqui, falar sobre o que a gente faz aqui, e eu acredito que isso vai incentivar mais a produção.
A gente usa um conceito de trabalho aqui que é o seguinte: quando você fala de uma história local, ela passa a ser uma história global, ou seja, falamos o termo “glocal”. Acho que por isso que o filme teve uma boa aceitação em festivais fora do Brasil, porque conta uma história de uma realidade diferente, embora existam conversões. Quando você fala, por exemplo, de fronteira, a gente vai convergir para outros locais no mundo que tem situações semelhantes, mas com culturas diferentes, com detalhes e singularidades em cada região.
Então quando a gente conta alguma coisa baseada no que e como a gente vive, mesmo sendo uma história de ficção, mostramos um pouco de como lidamos com determinadas situações, e como os problemas que nos afetam também afetam outros lugares do mundo. Mas por estarmos em um lugar diferente, temos uma maneira diferente de encarar as coisas que acontecem conosco. Então, falar de uma história local para o mundo é muito legal, e eu acho que isso está sendo um divisor de águas aqui para nossa região.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Aproveitando sua fala sobre fronteira, o filme lida com a questão do tráfico e do crime nessa região. Teve situações particulares que te inspiraram a escrever a trama? Ou você trabalhou com uma ideia mais geral a respeito do tema?
Fábio Flecha: Primeiro a gente começou a contar essa história no geral, porque a primeira fronteira que aconteceu aqui foi quando ainda era só o Mato Grosso, e os conflitos eram entre os povos originários aqui da região e os europeus. Isso aconteceu durante o século XVII, século XVIII, e foi constante por aqui nessa região. E a Espanha tinha um acordo que assegurava que grande parte dessa região em que a gente vive aqui no Mato Grosso do Sul era para ser dela, portanto, não era para ser Brasil. Então, essa região vive em conflito desde quando ela foi criada.
Mato Grosso do Sul tem 1.100 km de fronteira só com o Paraguai, mais 400 km com a Bolívia. Então é muito difícil controlar essa fronteira. Isso é uma situação que a gente sabe, qualquer um que que mora aqui começa a perceber essas coisas. Por exemplo, nós somos uma fonte de notícia constante, com apreensões de drogas, de contrabando que passam por aqui. Aí a gente costuma brincar muito, falando: "Não, isso é só o que pegou”. Então, a gente primeiro usou esse macro para contar, até no filme eu faço questão de colocar umas cenas abertas no começo para todo mundo ver o quanto grande é o estado e como não tem nada. Você olha, vê quilômetros e quilômetros e não tem uma cidade. Isso é a realidade da fronteira.
Depois a gente começou a pegar o que eu chamo muito de mitologia de fronteira, porque, por exemplo, existiu um chefão na fronteira durante muito tempo. Não vou entrar em nomes porque até eu me complico nessa história, mas coisas que a gente fala no filme são inspiradas em situações que aconteceram de verdade. Por exemplo, o personagem de Jacaré [Espedito Di Montebranco] fala sobre uma emboscada com uma arma de guerra, e isso aconteceu de verdade na fronteira.
Além do Jacaré, que é o protagonista da história, teve também o justiceiro [Coronel Massada, vivido por David Cardoso], que é inspirado numa figura pública muito famosa aqui da região, que viveu na década de 60 e 70. Para você ter uma ideia, esse personagem, na vida real, ele foi enviado para uma determinada região muito perigosa da fronteira, e quando voltou para se reportar para o chefe, lá em Cuiabá, este falou: "Nossa, você voltou? Você tá vivo?". Então, era esse tipo de coisa que acontecia aqui, porque as pessoas não esperavam, porque era tão longe de um controle governamental que era dominada por facções, por criminosos e tal. Hoje não é assim mais, isso já mudou; a disputa continua, mas nos anos 60 e 70 aqui era um lugar muito ermo.

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Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): O filme mescla vários gêneros cinematográficos, como o faroeste, a ação e até a comédia. Teve filmes e/ou diretores que te inspiraram?
Fábio Flecha: Eu fui muito influenciado pelo cinema dos anos 90, então diretores como Robert Rodriguez, Quentin Tarantino, Guy Ritchie, foi o que eu assisti nessa época. Mas de uma certa forma, eu busquei mais o Robert Rodriguez pelo primeiro trabalho dele, O Mariachi, que é um filme que ele diz que fez com 5 mil dólares. Eu falei: "Bom, como a gente não tem dinheiro, a gente tem que se inspirar nas pessoas que conseguiram fazer sem grande né?”, então, nesse sentido, tem muito dele.
Mas de certa forma, depois que você termina [o filme] tem pessoas que fazem uma análise melhor do que a gente pensa. Às vezes você colocou alguma coisa lá que nem notou, mas como foi muito bem observado por várias pessoas que fizeram críticas, a gente cai um pouco no Glauber com Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Sobre a comédia, ela foi uma opção muito minha, pois gosto de tratar assuntos que são sérios, mas não com tanta seriedade. Depois que as pessoas que moram aqui assistiram o filme aqui elas falaram: "Nossa, você falou de algumas coisas ali que são pesadas, mas o jeito que você falou, a gente pode comentar depois sem ter que ter medo de falar sobre isso". Porque no Brasil, é difícil né, você observar o jornal somente com relação à violência, é um assunto pesado. E eu não tenho a intenção de tratar isso com a sala de cinema, não quero dar a sensação de que a gente voltou de novo para aquele noticiário. Eu defendo que a gente tem a função de entreter também. A pessoa que entrou numa sala de cinema veio para se desprender um pouco da vida dela, ela quer entrar num outro universo naquela tela gigante ali. Então a proposta do filme era essa, falar de coisas sérias, mas não com tanta seriedade.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca gostamos de pedir aos nossos entrevistados que indiquem filmes nacionais que achem que o público deve assistir. Quais seriam suas indicações?
Fábio Flecha: É difícil produzir filmes que têm ação, que tenham contexto nesse sentido, mas eu acho que Bacurau é um filme que as pessoas que não foram ver no cinema têm que procurar o streaming e têm que assistir. É uma história de ação, mas ele colocou num contexto regional. Eu acho isso muito legal, me inspirei em algumas coisas também no filme, não tanto quanto outras obras que eu comentei, mas acho que é um filme para quem gosta de ação. Até porque eu acho que ele abriu um caminho pra gente que está falando um filme de um cinema de gênero. Teve algumas pesquisas, alguns anos atrás, sobre preferência do público brasileiro no geral, e o público pede por aventura, comédia, ação. Então, quando o Bacurau estreou, eu falei: "Pô, isso é ótimo, você tá abrindo uma porta gigante aí para um para um filme que tem conteúdo, mas também tem um pouco de ação que as pessoas querem ver”. Então eu indico muito Bacurau para quem acha que o cinema brasileiro não produz filme de ação ou de aventura.