Entrevista | Letícia Simões e Esaú Pereira discutem as diferentes realidades brasileiras propostas em “Glória e Liberdade”
- Vinicius Oliveira
- 17 de jun.
- 9 min de leitura
Em entrevista ao Oxente Pipoca, diretora e diretor de animação do longa falaram a respeito do processo de produção e as diversas influências para a obra.

Exibido na 14º edição do Olhar de Cinema, em Curitiba, o longa-metragem cearense Glória e Liberdade acompanha uma versão alternativa do território brasileiro onde o Norte e o Nordeste do país deram lugar a quatro países diferentes, originados a partir de revoltas – Cabanagem, Balaiada, Praieira e Sabinada – que, nesta linha do tempo, foram bem-sucedidas, mas com consequências muito distintas entre si. Protagonizado por Azul (Larissa Góes), que embarca numa jornada por esses países, o filme emprega diferentes técnicas de animação para conferir uma identidade própria a cada um deles, ao mesmo tempo em que usa essa realidade alternativa para discutir o passado e o presente do Brasil.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Letícia Simões, diretora do filme, e Esaú Pereira, um dos dois diretores de animação, durante o festival. A dupla discutiu a escolha por essas revoltas em específico dentre as várias ocorridas no período pós-independência do país, a gama de influências que se fazem presentes na obra e como foi construída a coesão interna desta. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira [Oxente Pipoca]: Minha primeira pergunta é sobre como foi pensar e conceber esses quatro países distintos que a gente vê no filme. A gente sabe também pela nossa história que houveram diversas revoltas naquele período ali pós-independência, então porque essas quatro revoltas em específico? Como foi pensar esses quatro países e como eles dialogam com o Brasil real?
Letícia Simões: Foi um trabalho de curadoria de revoltas bastante desafiador, porque hoje em dia os historiadores situam entre 20 e 30 revoltas, ainda mapeadas. E talvez um pouco o que guiou a escolha dessas específicas revoltas foi a diferença de caracterizações das propostas. Então, por exemplo, no caso da Bahia, inúmeras revoltas existiram, inclusive de caráter mais popular, muito mais do que a Sabinada, que foi uma revolta de caráter burguês. Mas me interessava muito pensar o que seria uma sociedade e no caso da Bahia que tem uma marca contemporânea de desigualdade social extrema.
Eu nasci em Salvador e me lembro de uns dados assim da década de 1990 que era do tipo “80% da população de Salvador não vive não vive com mais de um salário mínimo”. E teve um dado também que foi muito marcante na minha passagem de infância para adolescência em Salvador, que era o fato de que no início da década de 1990 80% da população ou até mais se autodeclarava negra, e depois foi decaindo até chegar perto de uns 56% nos anos 2000. A população continua a mesma, mas por que essa autodeclaração mudou, e aí hoje em dia tá numa retomada de curva ascendente? Então, me interessava muito pensar isso no caso específico da Sabinada.
E também porque, pensando na configuração do panorama nordestino, o estado de Sergipe, por exemplo, na nossa história e configuração do mundo ele teria sido dividido e anexado, uma parte pelo Reino Unido de Pernambuco e outra parte pela República da Bahia. Numa revolta popular, eu acho que não teria sido dessa forma. Já entrando na Praieira, que foi uma revolta liderada por senhores de engenho, essa configuração territorial de desprezo pelas camadas populares está presente. Então, me interessava muito pensar esses dois lugares: o que teria sido uma sociedade onde senhores de engenho tivessem vencido Portugal mas se descaracterizado enquanto vencedores territoriais desse novo país; e no caso da Bahia, essa revolta burguesa que não falava sobre o fim do tráfico escravagista na suposta cidade mais negra do fora do continente africano.
E a Balaiada sempre me fascinou imensamente como esse movimento extremamente popular de três líderes diferentes, de contextos diferentes que se encontram, inclusive com muitas divergências internas que aconteceram no contexto histórico da Balaiada, mas nesse sentido de libertar do que teria sido um “feudalismo”, porque o interior [do Maranhão] vivia uma situação análoga a um feudalismo. E sempre me fascinou muito esse encontro entre um líder que vem dum quilombo, entre um balaieiro que era pai e se tornou um líder revoltoso quando uma tragédia abate as suas filhas, e esse personagem indígena que vem da Cabanagem e vai até a Balaiada.
Essa relação de diálogo entre a Cabanagem e a Balaiada talvez tenha sido o começo de tudo, foi a primeira revolta que eu tive contato, quando estava estudando História, ainda estudante do ensino médio, e sempre ficou guardado na minha memória: uma revolta pós-independência liderada por pessoas indígenas e em que 90% da população masculina foi exterminada. Então, é quase como se a escolha delas partiu também de um desejo de mostrar diferentes perspectivas sobre o entendimento do que significa uma nação. Porque cada uma delas tinha um projeto bastante diferente do que seria uma nação.

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Falando agora um pouquinho mais dessa questão estética, que aí também pode entrar um pouco no campo da animação também, tenho duas perguntas nesse sentido. Primeiro eu vou perguntar quais seriam as suas influências, quais obras nacionais internacionais que te ajudaram também a pensar um pouquinho de como seriam essas diferentes estéticas para o filme.
Letícia Simões: Tem um documentarista francês que dirigiu um filme chamado Viagens às Américas, acho que é esse o nome, que é um documentário animado. Eu tinha ainda muito na cabeça um filme do Richard Linklater que ele fez em rotoscopia, Waking Life. E tinha muito uma aproximação com histórias em quadrinhos; então, Joe Sacco, por exemplo, era alguém que eu gosto muito e que cruza essas técnicas diferentes ao narrar uma história documental.
Mas aí quando a gente foi passando para construir esses mundos, a gente foi tateando em tudo, tateando e pesquisando. Então, muita coisa veio da música, por exemplo. Quando eu estava construindo os episódios da Balaiada e da Cabanagem, mergulhei nas músicas e na cultura popular, tanto do Maranhão, Piauí, Ceará, quanto do Pará, coisas que permaneceram no Carimbó, no caso do Pará, ou em teatro de rua do Maranhão e movimentos populares que ajudaram a construir a narrativa.
Ao mesmo tempo a gente também se permitiu sonhar, a gente se permitiu ver Blade Runner, num sentido de o que é que a gente pode trazer para construir esse mundo da ordem, que é a ordem do trabalho, que é a ordem da vigilância, que é da ordem das muitas pessoas o tempo todo marchando no mesmo ritmo, porque o capital impôs a ela, no caso do Reino de Pernambuco. E quando a gente foi para Bahia, por exemplo, tinha essa proposta, estava acontecendo essa revolução, então tinha essa família presa nesse apartamento enquanto o mundo estava ali fora. E aí eu fui, sei lá, no videograma de uma revolução, pensando: como é que se filma uma revolução? Então, foi muito amplo, porque cada país tinha uma necessidade e a gente ia mapeando o que o que elas davam conta.
Esaú Pereira: A gente bebeu de muitos locais porque era um processo muito rico de imaginação desses espaços, desse mundo. A parte 2, que é a da Balaiada, a gente tem muito um rolê de road movie mesmo, então, tem um pouco de Paris Texas ali, daquele ambiente um pouco mais desértico. Quando ela [Azul] chega naquela cidadezinha que é pequenininha, a gente comentou de Bacurau, aquele interior resumido a só uma rua principal.
E aí a gente vai para a parte 3, que é uma piração, acho que tem Blade Runner, mas a gente bebeu muito de Love, Death and Robots. Robert Valley, que é o cara que faz as animações do Gorillaz, ele é um cara que que fez um filme chamado Pear Cider and Cigarettes, e ele tem essa cidade que é muito imaginada nesse ambiente um pouco néon. Tudo que é luz é um pouco quadrado, sem muita definição, é foi aonde a gente sacou que queria que que a parte 3 fosse embebida de uma grande “esquilombra” visual. A parte que a Azul olha para baixo é totalmente Ghost in the Shell, quando ela vai olhar e vê aquele mundo que tá lá embaixo, com carros flutuando e tal. Eu vejo muito dessas referências assim de anime.
Já a parte 4 é onde eu introduzi o P&B [preto e branco]. Essas marcações da Azul e do fogo são de Akira, porque o mangá de Akira é uma grande revolução, tudo está acontecendo ao mesmo tempo. Eu acho que aquela cena final, que a gente tem os prédios na lateral e tem duas pessoas se abraçando, ela é totalmente referência à última cena do mangá de Akira, que são eles indo de moto. Tipo assim: “agora essa Tóquio é nossa”. E eu queria muito isso quando a Azul fala: “acho que eu vou ficar”, para mim me bateu muito aquela sensação, as pessoas escolheram ficar nessa cidade. E aí eu queria muito fazer uma referência e eu coloquei assim, tá lá, mas a gente bebeu muito de muitos locais.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Como foi pensar a coesão interna do filme? Já que são blocos, países distintos, e também traços de animação distintos, e as próprias referências que vocês citaram refletem isso. Então como fazer para parecer que é um filme só e não quatro filmes distintos?
Letícia Simões: Foi um desafio grande e foi algo que ficou martelando na cabeça da gente desde sempre, porque tá na gênese do projeto que seriam quatro países distintos, quatro revoluções distintas com quatro projetos de nação distintos, e teriam que ser quatro técnicas diferentes. E aí essa questão de como alinhavar esse entendimento sempre perseguiu a gente, mas a gente foi encontrando.
Eu fui definindo essa personagem, que no início ela seria muito mais uma narradora, digamos assim, já teve uma versão do filme que ela estaria conversando diretamente com o público. E depois a gente foi entendendo que uma vez que compramos a ideia de que esse mundo é real, de que o Brasil acabou, então iríamos também dar uma corporeidade a essa narradora. Então ela ganhou um nome, uma missão, uma proposta, e ela é uma viajante, é um filme de viagem. Ela é uma observadora, ao mesmo tempo que também vai se transformando, não só visualmente, mas nas próprias convicções. Ela começa o filme bastante jovial, e uma coisa que a gente construiu com a Larissa Goes, que é a atriz que faz a Azul, foi essa mudança na voz, essa mudança de registro de interpretação, à medida que a Azul vai absorvendo e sendo confrontada com essas realidades. Em algum momento ela fala que nunca tinha saído da República da Bahia, nunca tinha viajado para outro lugar, então tudo aquilo começa a ser muito novo e muito desnorteante.
E eu sei que é muita informação, não dá para saber de tudo, mas eu tive um cuidado de colocar no roteiro que, em cada país que ela passa tem uma experiência psicodélica que a faz entrar em contato com a verdadeira história, com a última batalha que gerou aquele lugar. E quando ela chega à Bahia está muito cansada, muito transformada pelo acúmulo de coisas que ela viveu. Mas é isso, personagem da Azul surge nesse intuito de que a narrativa criasse uma coesão para que a gente pudesse acompanhar, para que não ficasse completamente disperso. Mas ao mesmo tempo, foi e é um desafio de roteiro dar conta desses pesos, porque imagina se a gente abre para construir toda a complexidade dessa personagem, e daqui a pouco o filme fica sendo sobre ela e não sobre as revoltas. Então para a gente era isso, é uma viajante que tem uma missão.
Esaú Pereira: Eu acho que a Azul tem um papel no filme, que é de pincelar assim por perguntas e informações o que a gente não obteria desses personagens caso fôssemos só um visitante naqueles países. Ela vai escavando cada vez mais assim essas revoltas e esses espaços que que dão o contexto do filme, e foi importante para a gente que ela fosse criando essa independência. E eu acho que pelo menos na animação a gente tentou deixar um pouco mais claro, visualmente falando.
Eu pegava a Azul da parte 1, e aí o próximo ilustrador olhava e falou assim: "Ah, eu acho que ela pode ser assim e assim”. Tanto que na parte 1 ela tem vários momentos com cabelo preso, aí na parte 2 ela tá sempre com o cabelo solto. Aí na parte 3 a gente deu tranças a elas, um visual que cabe muito naquela modernidade. Por mais que o áudio diga isso e a cor do cabelo diga aquilo, era importante para a gente que pequenos detalhes assim fossem dados. Eu sempre digo que o Glória é um filme que é para ser assistido e reassistido, porque ele tem muitas coisinhas, muitos detalhezinhos que você só vai perceber quando ver de novo.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós sempre pedimos aos nossos entrevistados que façam indicações de filmes que achem que o público deva assistir. Pela temática do filme, vou pedir indicações de filmes do Norte e Nordeste, então quais seriam suas indicações?
Letícia Simões: Eu queria indicar alguns curtas-metragens que particularmente me tocaram muito recentemente e que eu acho que jogam, dialogam bastante com Glória. Queria indicar Cavaram uma Cova no meu Coração, do Ulisses Arthur, de Alagoas; Festa Infinita, de Ander Bessa; e Mulher Maracatu, de Carlota Pereira.
Esaú Pereira: Queria indicar dois filmezinhos. Um é um longa chamado Resumo da Ópera, sobre uma lombra muito grande, de pequenos alienígenas CLTs que invadiram um teatro e fazem uma grande revolução. Tá rodando em alguns festivais e é de um amigo muito querido, o Honório Félix. E eu vou indicar o meu filme, O Medo tá Foda, que também está rodando em alguns festivais, a gente passa no fim do mês aqui em Curitiba, em outro festival, mas que vale a pena assistir e também é uma grande lombra.