Moura, Peter Craig e integrantes do elenco conversaram com o Oxente, Pipoca? sobre mais um acerto do Apple TV+, que estreia dia 14 de março

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Por anos se travou uma guerra silenciosa entre as plataformas de streaming para saber qual delas ofereceria produções de melhor qualidade e serviria de concorrência real à quase sempre imbatível HBO. Parece que finalmente estamos perto de encontrar uma resposta: com um catálogo praticamente irretocável, o Apple TV+ tem se destacado com produções aclamadas como Ted Lasso, Ruptura, Mal de Família, Slow Horses e The Morning Show. Bem, esse catálogo está prestes a ganhar uma adição interessantíssima com Ladrões de Drogas (Dope Thief).
Brian Tyree Henry e Wagner Moura dão a vida a Ray e Manny, dois amigos de infância que tentam sobreviver a uma Filadélfia devastada por duas pandemias: a de covid-19 e a da dependência química – e, de quebra, enfrentam suas doses diárias de racismo, xenofobia e desigualdade social. A solução encontrada é bancar um Robin Hood contemporâneo e tirar de quem tira a saúde da população: os traficantes. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, certo? Bem, não aqui. Ray e Manny acabam mexendo com os vilões grandes demais para a inocência deles e a estratégia que parecia infalível toma proporções muito além do planejado.
Inspirada no livro homônimo de Dennis Tafoya, a série traz elementos demais: a semelhança com a crise de drogas enfrentada pela Filadélfia real é desconcertante; os coadjuvantes são muitos, todos complexos e com peso na história; e os personagens principais ficam numa área cinzenta em que não se sabe ao certo se são mocinhos ou anti herois (ou os dois); e os verdadeiros “bad guys” são intermináveis. Tudo isso em meros oito episódios, que passam voando. Seria a fórmula perfeita para uma obra confusa e desconexa, não fosse a maestria de Peter Craig (roteirista de Top Gun: Maverick, Batman e Jogos Vorazes: A Esperança - Parte 1 e Final) que aqui, além do roteiro, também assume a posição de showrunner, produtor e diretor do episódio final. À exceção do final, que se mostra demasiadamente apressado, Craig consegue manter um ritmo acelerado na medida certa, sem cansar o espectador, sem deixar pontos soltos e sustentando a narrativa numa cadência ótima.
Na lista de créditos, também encontramos a chilena Marcela Said (Lupin, Gangs of London), que dirige três episódios, e Ridley Scott (Gladiador, Gladiador II, Casa Gucci, Perdido em Marte, Thelma & Louise, Alien: o 8º Passageiro, para citar alguns), que produz a série e dirige um episódio.
O Oxente, Pipoca? teve a oportunidade de assistir Ladrões de Drogas antecipadamente e conversar com Wagner Moura, Peter Craig e demais membros do elenco, que a todo momento demonstraram profundo respeito pela história que contaram e admiração mútua entre eles.
Um exemplo é quando pergunto a Wagner Moura como foi balancear a seriedade da narrativa (que se descreve como um “drama policial”) com a comicidade que está presente em quase todas as cenas em que ele aparece. Rápida e humildemente, ele passa o mérito para Craig – que, segundo ele, “é um um roteirista que sabe lidar com isso bem: sabe escrever o punchline do humor, mas ao mesmo tempo sem perder o que está acontecendo com os personagens” – e para Henry, já que comédia e drama “é um balanço que ele domina muito bem”. No dia seguinte, em outra sessão de entrevistas, devolvo a pergunta para Craig, e aviso que o brasileiro tinha creditado o mérito principal a ele.
O roteirista ri e diz que não é a primeira vez que ouve isso, mas já deixou avisado para Moura: “Eu fui até lá hoje e disse: ‘Toda vez que me elogiarem, vou devolver para você. Vou dizer: não, foi ele que fez.’” E segue: "Sim, o roteiro está lá. Ele dá uma base para o ator se apoiar, mas é o ator que realmente completa o processo. O ator precisa ter inteligência emocional para assumir o papel, vivê-lo desde a base, dar ao personagem seus maneirismos, sua cadência, suas reações, suas falhas, seus pequenos detalhes… E ele [Wagner Moura] pensou em tudo".
"Preciso contar uma pequena anedota: Wagner é tão bom que um dos nossos editores percebeu que o formato do rosto dele mudou quando o personagem começou a usar drogas na série. Ele literalmente começou a segurar a mandíbula de um jeito diferente pelo resto da temporada inteira para mostrar que tinha voltado a usar. E só um editor percebeu isso, porque para nós, que estávamos ali no dia, parecia algo natural. Mas ele estava tão imerso fisicamente no personagem que manteve essa consistência o tempo todo. Então, ele pode me elogiar o quanto quiser, mas eu vou sempre devolver os elogios para ele", relata Craig.
E me desculpe, Wagner, mas Peter Craig está certo: o roteiro é excelente e os diálogos fornecem material riquíssimo para se trabalhar, mas o que o ator faz ultrapassa o texto. É, sem dúvidas, sua melhor atuação desde que se aventurou em produções fora do Brasil – talvez por que, além do talento que já estamos acostumados a ver em tudo que faz, ele também finalmente parece demonstrar um conforto total com a língua estrangeira. Assume com orgulho o sotaque de Manny, seu personagem. Ele ilumina toda a cena em que participa – o que não é fácil de se fazer, considerando que está quase sempre contracenando com o gigante Brian Tyree Henry.
As atrizes Nesta Cooper (Supergirl) e Kate Mulgrew (Star Trek, Orange is The New Black), que contracenam prioritariamente com Henry, concordam com a grandeza deste, destacando sua habilidade de enriquecer o texto sem desrespeitar o roteiro. “Eu não chamaria exatamente de improvisação, e sim de estar presente e acrescentar elementos ao redor. Ele tem muito respeito pelo roteiro e segue fielmente, mas ele simplesmente está tão no momento que você nunca sabe o que vai sair de sua boca ou como ele vai reagir ao que você está dizendo, porque ele está extremamente presente e atento”, diz Cooper. Mulgrew o chama de “um improvisador muito disciplinado”, sendo “extremamente cuidadoso para nunca perder a intenção da cena”, o que a ajudou com sua própria personagem: “quando isso acontece de forma orgânica – o que acontece com frequência com Brian Tyree Henry, porque ele é um ator excepcional – isso libera em mim, como sua parceira de cena, a mesma capacidade ou disposição para fazer o mesmo.”
De fato, Ladrões de Drogas não poderia pedir por um protagonista melhor. Brian carrega a série sem demonstrar esforço nenhum. Não posso dizer que é a melhor atuação dele, pois não sei se dá para ficar melhor que seu “Paper Boi” em Atlanta, mas posso afirmar que seu nível se mantém – o que já é elogio o suficiente. Acredito que o ponto chave da série esteja no jogo entre bem e mau, engraçado e trágico, certo e errado, e a atuação de Brian Tyree Henry é a balança perfeita entre todas essas coisas. Do episódio seis ao final, é como se fossem quatro atores diferentes em um só. Puro talento.

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Nessa balança, a série traz uma mensagem extremamente urgente e sensível sem nunca pesar na panfletagem. Marin Ireland (Law & Order, The Umbrella Academy), que vive a policial Kristy Lynne, resume o tema da série em “querer cuidar uns dos outros e cuidar da melhor forma possível das pessoas que amamos, especialmente considerando as circunstâncias em que esses personagens nasceram.”
"Trata-se de manter em mente o contexto em que cada um está vivendo e as dificuldades que todos enfrentamos. Como podemos cuidar de nós mesmos, dos nossos entes queridos e também dos outros? No fim das contas, o que nos sustenta é a conexão e a comunidade. Para mim, é aí que a série está indo, e espero que as pessoas comecem a pensar sobre isso, para além da aparência de alguém. Se alguém parece um criminoso por fora ou parece ser uma pessoa má porque cometeu um erro, sempre haverá mais por trás disso – ou talvez nem sempre, mas pode haver. No final, somos todos seres humanos, e é essa conexão e esse senso de comunidade que realmente podem nos ajudar a seguir em frente", afirma ela.
A série vem para dar ainda mais peso para o catálogo do Apple TV+, que tem mesclado qualidade artística com roteiro inteligente e debate social. Perguntei a Peter Craig onde ele acha que está o diferencial dessa plataforma, que tem levado-a ao destaque dentre a concorrência. Ele respondeu: "Bem, só posso falar da minha experiência com eles, mas, pelo que vivi, eles estão escolhendo materiais realmente bons. Eles têm executivos muito inteligentes, que selecionam conteúdos de alta qualidade. E eles são muito criteriosos na escolha de quem vai comandar esses projetos, dando a essas pessoas total liberdade para expressar sua visão. Eles estão quase adotando um modelo mais autoral, muito focado no diretor e na visão do criador – algo que, talvez, seja inspirado no jeito que a Warner Brothers fazia com filmes há muito tempo".
Craig continua: "A ideia é confiar nas pessoas que contratam, confiar na visão delas e deixá-las contar histórias muito específicas. Sei que foi assim com Severance, com Ben Stiller e com outras produções incríveis que têm diretores extremamente talentosos".
No final da entrevista, não pude me conter e deixei o ufanismo falar mais alto. Precisei perguntar a Wagner Moura como tem sido viver de perto esse ano tão importante para as artes cênicas brasileiras internacionalmente (que começou com o próprio Wagner em Guerra Civil, passou pelo prestígio de Motel Destino em Cannes e pelo anúncio de Selton Mello em Anaconda, atingiu seu ápice com a campanha e vitória de Ainda Estou Aqui no Oscar, e agora se encerra com chave de ouro novamente com Wagner Moura em Ladrões de Drogas). A resposta vem digna do momento histórico que estamos presenciando:
"Todo mundo que torce pela cultura do Brasil, pelo audiovisual brasileiro, está muito feliz com o que está acontecendo. O fato do brasileiro se enxergar nos artistas brasileiros, o fato do o engajamento do brasileiro com Ainda Estou Aqui – de de olhar para Waltinho, para Nanda, para Selton, para aquele filme e dizer assim: 'nós temos orgulho disso, nós nos vemos representado nessa história e queremos que que Nanda ganhe o Oscar'... para mim isso é muito, muito lindo. Muito forte. Sobretudo porque o setor cultural toma muita porrada, né? Nós viramos os inimigos do povo por muito tempo no Brasil. E que bom que o país consegue se ver na sua arte. Que bom que o país consegue se ver em seus artistas e se sentir representado por eles, como é o que está acontecendo. Trieste do país que faz de seus artistas os inimigos do povo", declara ele.
Nossa arte, representada por Wagner Moura, em parceria com grande elenco, estará disponível semanalmente do Apple TV+ a partir do próximo dia 14, quando estreiam seus dois primeiros episódios de Ladrões de Drogas.
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