Uma Rachel Weisz é bom, mas duas é ainda melhor
Foto: Divulgação
35 anos após David Cronemberg nos presentear com uma dose dupla de Jeremy Irons em seu clássico Gêmeos – Mórbida Semelhança, é hora de vermos Rachel Weisz numa nova versão do papel de Irons, dessa vez sob a tutela da showrunner Alice Birch e de uma equipe de diretores que inclui Sean Durkin (de Martha Marcy May Marlene e The Nest). Um thriller/drama psicológico que honra o body horror pelo qual a carreira de David Cronemberg é conhecida, mas vai muito além, Gêmeas – Mórbida Semelhança é uma das ofertas mais notáveis da história do catálogo do Prime Video.
A minissérie de seis capítulos segue de perto as gêmeas Elliot e Beverly Mantle (Weisz), que juntas trabalham na área da ginecologia, e juntas vivem suas vidas em praticamente todos os aspectos, numa espécie de ligação simbiótica que não tarda a demonstrar traços de abuso, toxicidade e co-dependência emocional. Essa bizarra conexão entre as irmãs é ameaçada por dois grandes eventos — a criação de um centro de ginecologia revolucionário que será financiado pela bilionária Rebecca Parker (Jennifer Ehle) e o envolvimento de Beverly com a atriz Genevieve Cotard (Britne Oldford), o que ameaça a união codependente dela com Elliot.
Desde seus primeiros minutos, Gêmeas não se acanha em abraçar a estética e as influências do body horror do original de Cronemberg, mas atualizando-os para uma linguagem contemporânea. O primeiro episódio — talvez o meu favorito — potencializa esse body horror justamente por cimentá-lo em algo tão cotidiano (e ao mesmo tempo tão tabu) quanto a maternidade e o parto, não se privando de nos mostrar sangue, placentas, líquidos amnióticos, depressão pós-parto e tanto mais. Duas sequências saltam aos olhos nesse episódio: a montagem paralela de diversos partos sendo conduzidos pelas Mantle, ou a cena devastadora em que uma jovem mãe dá luz a um bebê natimorto.
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O tom “chocante” desse primeiro episódio (e coloco entre aspas pois a série nada mais faz do que nos trazer uma abordagem crua e realista, mesmo que ignorada por tantos, principalmente homens) pode afastar muitos, mas é uma bênção — e ao mesmo tempo uma maldição — que os demais episódios sigam cada um seu próprio tom e estilo, mas sem perder de vista a coesão da série. Pode soar uma mudança por demais abrupta já no segundo episódio, onde somos apresentados ao contexto bizarro do círculo social de Rebecca, no melhor estilo “rich people are crazy” — e a performance de Ehle como a própria personificação do capitalismo amoral e demoníaco é boa demais para ser ignorada. Mas o espectador pode se ver perdido em meio às mudanças tonais e temáticas episódio após episódio, e fico me perguntando (mais uma vez) se a estratégia de lançar toda a minissérie de uma vez foi a decisão correta (resposta: não, não foi).
Se não nos perdemos e continuamos investidos na série, é muito por causa de Rachel Weisz. Elogiar a atriz é chover no molhado, mas não é exagero dizer que aqui ela entregou o papel de sua vida. Elementos como o figurino e os efeitos visuais e práticos por si só já conseguem exitosamente nos fazer saber quem é Elliot e quem é Beverly, mas são os detalhes que Weisz imprime a cada uma das personagens que nos permite diferenciá-las — Elliot sendo a ousada e maliciosa e Beverly a certinha e tímida —, enquanto gradativamente suas personalidades se fundem e se misturam, conforme a relação delas se mostra mais e mais doentia. Imagino que trabalhar com personagens gêmeos/duplos é sempre um desafio que muitos atores e atrizes desejam abraçar para se provar de alguma forma, mas poucas vezes vi um trabalho tão bem-sucedido quanto aqui nas mãos de Weisz.
Mesmo com um formato de lançamento que conta contra si e alguns detalhes da trama que ou são exageradamente elípticos — como os minutos finais — ou soam deslocados da narrativa principal — em especial a subtrama da misteriosa Greta (Poppy Liu), assistente das Mantle —, Gêmeas é sempre bem-sucedida quando direciona seu olhar para o trabalho duplo de Rachel Weisz e permite que a atriz brilhe, seja como Elliot ou Beverly. As mudanças de tom e de abordagem a cada episódio são melhor absorvidas quando percebemos o desenvolvimento da relação tóxica entre as irmãs, e Weisz nos convence perfeitamente como duas figuras ao mesmo tempo tão distintas e similares, num trabalho de mestre que torço para que seja devidamente reconhecido na temporada de premiações.
Nota: 4/5
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