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Foto do escritorDavid Shelter

Crítica | Marte Um (Representante do Brasil no Oscar 2023)

A fenomenal visão de Gabriel Martins sobre viver em uma sociedade eclipsada pela passividade do indivíduo.

Divulgação: Embaúba Filmes


Como seguir a vida quando todas as suas escolhas parecem estar condicionadas à ocasião? Ou quando você não consegue ter voz ativa para falar por si próprio? Como reagir a um mundo que parece te induzir ao fracasso? Lutando contra as probabilidades, os personagens de Marte Um acabam respondendo esses questionamentos e mais alguns no decorrer do filme, que foi o escolhido para representar o Brasil numa tentativa de indicação ao Oscar 2023. Dirigido pelo cineasta Gabriel Martins, ele nos leva ao seio de uma família mineira na periferia de Contagem vivendo seu cotidiano num período um tanto conturbado para os quatro membros; Tércia e Wellington, os pais, Eunice a irmã mais velha e Deivinho, o caçula.


É acolhedora a forma como ele molda personagens sem estereótipos genéricos comuns em filmes que retratam as periferias do Brasil, a maneira como Martins os conduz com sutileza e dignidade mostra o nível de respeito nessa produção pelas vivências de milhares de pessoas Brasil afora. É importante ressaltar, pois, pelo olhar de quem está longe, haveria uma disparidade gigantesca do que foi mostrado, e enquanto cidadão que se identifica com aquilo, é gratificante poder consumir uma obra pensada com visível afeição.


Indo pelo começo, ele nos apresenta os personagens numa perspectiva descontextualizada do quadro geral, vamos conhecendo-os gradativamente nas cenas iniciais em que cada um vai se encaixando na história posteriormente. Desde seu primeiro momento, o longa já mostra o seu ritmo, não há nada frenético ou um ápice, ele evolui sem pressa alguma e deixa claro que tudo o que vemos em tela vai importar. O desenvolvimento da trama está intrinsecamente ligada aos quatro membros da família, são eles que dão o tom até o final, e são igualmente trabalhados durante todo o percurso da história, mesmo cada um tendo sua própria subtrama, o que traz ainda mais brilho para a produção, eles têm uma desenvoltura quando reunidos que prende a atenção rapidamente.

Divulgação: Embaúba Filmes


Não tem como destacar qual dos personagens é o mais interessante, pois, todos são trabalhados com calma e objetividade, o que deve ser destacado é a forma como Martins coloca em linearidade as suas tramas. Ele faz um trabalho tão meticuloso enquanto os desenvolve que cada segundo agrega mais honestidade à história, a começar por Eunice, a personagem mais enigmática da trama, interpretada duramente por Camila Damião. Por diversos momentos tem uma aparição sutil, onde a sua presença é o que mais marca, principalmente no início onde ela não tem textos, e que mesmo assim, de uma forma introspectiva, cativa a atenção e endossa a sua trama e as camadas da personagem que podem ser desvendadas no decorrer do tempo.


Duas figuras que se complementam sendo opostos, são Tércia e Wellington, os pais da família, interpretados por Rejane Faria e Carlos Francisco. Quando juntos, temos dois personagens corriqueiros do cotidiano do cidadão médio, e tem muita naturalidade na conjunção que os dois fazem. Assim como Eunice, ambos tem um condicionamento à mudança de perspectiva quando longe dos outros, Wellington é aquele tipo de homem prestativo, mas que tem um passado que colaborou para ele se tornar quem é no presente, que em dado momento o faz sucumbir, e que a partir disso consegue ter uma visão mais ampla sobre as alterações que vêm acontecendo em sua família. Já Tércia é a figura que une, que tenta estar presente, mas que tem seus próprios devaneios e dúvidas, é a porta para o toque místico dentro da trama. Deivinho, interpretado por Cícero Lucas, é o responsável por denotar o tom de subserviência diante das vontades de terceiros sobre si, mas não o único.


Divulgação: Embaúba Filmes


Nada disso seria possível sem o roteiro de Gabriel Martins. Como dito anteriormente, somente uma vivência real dentro daquilo retratado no filme poderia entregar textos tão respeitosos e verossímeis. Martins deixa claro a todo instante que não há fantasia em nada do que é mostrado, é tudo objetivo e em constante paralelo com o cotidiano periférico, e o que dá mais qualidade ao seu texto é a simplicidade e o uso que ele faz dela dentro da trama, é uma visão bastante límpida, que em momento nenhum tenta iludir o espectador ou o induzir a algo fora do eixo apenas para causar algum choque, ou comoção. Não há tentativas de se apropriar de histórias para gerar desconforto, nem para diminuir ou menosprezar os personagens ali retratados.


Ainda nesse tópico, é aqui onde há a inserção dos questionamentos citados no começo do texto. Claro que não são perguntas elucidadas ao público de maneira direta, são questões que permeiam os pensamentos enquanto acompanhamos o desenrolar da história e as frustrações dos personagens. Há constantemente uma discussão social sobre o livre-arbítrio e até onde vai o seu limite, e ‘Marte Um’ mostra com sutileza que nem sempre se trata sobre liberdade de escolhas, mas de condicionamento por situações que o indivíduo passa. São coisas tão sutilmente enraizadas na vida diária que por diversas vezes calamos a própria voz em razão disso.

Divulgação: Embaúba Filmes


Em uma produção onde tudo se encaixa milimetricamente fica até difícil dizer o que mais se destaca, porém, em 'Marte Um', o grandiosíssimo destaque é, sem sombra de dúvidas, a direção primorosa. O bom de poder dirigir aquilo que escreveu, é que vai haver um embasamento próprio para conduzir cenas específicas que em outras mãos poderiam não ter o resultado esperado. Gabriel Martins encanta como diretor, ele escancara o seu talento com tamanha maestria que cada cena se torna um take memorável, é uma aula sobre como fazer um longa de forma certeira. Se o Oscar fosse uma premiação mais ampla e justa, essa já seria uma indicação inquestionável para a categoria.


Outro ponto que traz mais qualidade a todo esse conjunto é a trilha, com destaque para o início e o fim, quando ela é o maior artifício usado. Daniel Simitan fez um trabalho extraordinário de captação de sons e cenas, transformando o que já era bom em ótimo. A edição também merece uma citação, pois, magistralmente bem executada, ela faz transições que elevam o nível do longa em vários pontos. Por fim, Marte Um é um presente para o público em 2022, e será uma indicação muito bem acertada caso consiga avançar na próxima fase de seleção do Oscar. É um filme sobre viver, sobre escolher e principalmente sobre resistir.


Nota: 4,5/5

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