Remake hollywoodiano pode ser desnecessário, mas surpreende por escapar da sombra do original
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O anúncio de um remake estadunidense do elogiado terror dinamarquês Não Fale o Mal não fez nenhum favor à imagem já consolidada da gana hollywoodiana por lucrar em cima de obras estrangeiras, aliada à aparente incapacidade dos estadunidenses de ler legendas. Afinal de contas, não estamos falando de um filme lançado há décadas, mas sim apenas dois anos atrás. No mínimo poderia se esperar uma obra apática que perderia muito do que tornou o original tão famoso.
Embora eu considere que as adaptações devem ser avaliadas por seus próprios termos, fiz um esforço de assistir o original antes do remake (numa espécie de “sessão dupla”). A premissa é basicamente a mesma, com as devidas transposições geográficas: o casal estadunidense Ben e Louise (Scoot McNairy e Mackenzie Davis, repetindo a parceria de Halt and Catch Fire ) estão de férias na Itália quando conhecem os ingleses Paddy e Ciara (James McAvoy e Aisling Franciosi), que então os convidam para visitá-los no interior da Inglaterra. Incapazes de dizer não, o casal vai com a filha, mas não tarda para o fim de semana escalar rumo ao terror.
Aqui cabe um pequeno adendo: não gostei tanto do original quanto muitas pessoas, especialmente pela maneira como o roteiro pesava a mão na passividade dos protagonistas para “aceitarem” os crescentes absurdos impostos pelo outro casal, além de ensaiar uma suposta crise entre o casal que, no entanto, nunca passava da superfície, sendo prejudicada por uma montagem inconstante na sua primeira metade. Para minha surpresa, o remake trabalha muito melhor essa perspectiva passiva de Ben e Louise, além de nos dar um contexto muito mais sólido a respeito dessa crise e como ela justifica que eles vão visitar uma família que mal conhecem. Se no original era o marido quem estava preso a essa passividade forçada e artificial (ao ponto de se tornar o personagem mais insuportável da obra), aqui a performance de McNairy – um ator ótimo em interpretar idiotas emasculados, como o seu Gordon de HACF – nos traz uma perspectiva mais convincente para as ações de seu personagem, ou falta delas, de modo que nosso desprezo por ele está muito melhor ancorado narrativamente, não parecendo apenas uma falha do filme em relação ao tratamento dado ao personagem.
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Do outro lado, McAvoy consegue resgatar muito daquela persona carismática e aterrorizante vista em Fragmentado , na medida em que nossa relação com seu personagem evolui de uma atração magnética para um choque perante sua perversidade, o que é realçado pela fisicalidade que ele impõe ao seu Paddy. Diria até que o filme brinca e satiriza noções de masculinidade através dos dois protagonistas, com Paddy carregando uma espécie de discurso coach motivacional “masculinista” que atrai criaturas tão fracas e patéticas como Ben. Não à toa, isso dá espaço para que a Louise de Mackenzie Davis cresça como uma personagem mais reativa e proativa dentro da trama, em especial no último ato. É quase como se o filme soubesse que o original pedisse muito da suspensão de descrença para aceitar que o casal podia ser tão fraco, e então nos guiasse por um caminho narrativamente parecido, até que decide subverter essa estrutura praticamente por completo.
O último ato será certamente o mais polarizador, visto que é onde o Não Fale o Mal estadunidense enfim escapa da sombra do dinamarquês. É uma aposta arriscada que, embora eu entenda as motivações por trás, não exatamente me conquista, visto que descamba para um encerramento um tanto genérico e alinhado com o que poderíamos esperar de uma produção hollywoodiana. Com todos os seus problemas, o final do original ainda se distinguia de alguma forma com uma conclusão cínica e cruel. Mas talvez o que mais me desagrada aqui é a maneira como o mal abstrato do longa dinamarquês é posto de lado em favor da necessidade de explicação e contextualização para este mal na nova versão. Precisamos mesmo que todo vilão tenha uma história de origem triste, ou que suas ações sejam justificadas? Não deixa de entrar em cena um certo moralismo, refletido até mesmo em algumas escolhas mais seguras (e covardes) para fechar esta versão da mesma história.
Mas apesar dos problemas com o último ato, ouso dizer que, no saldo geral, Não Fale o Mal consegue a rara proeza de superar o original, consertando exatamente os principais problemas que eu tinha com o longa dinamarquês. Há uma narrativa mais polida e um trabalho mais primoroso do diretor James Watkins na construção e esticamento da tensão entre os protagonistas, mostrando como duas obras aparentemente idênticas podem ser tão distintas entre si a partir da maneira como é realizada a encenação. O longa pode não resolver o problema geral de Hollywood com seus infindáveis remakes, mas mostra que em meio a essa seara podem surgir novas versões com o seu devido valor.
Nota: 3,5/5
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