As sombras do passado e a força da memória num tributo (nada ortodoxo) ao cinema
Foto: Divulgação
Numa determinada cena de Babilônia, a crítica e colunista Eleanor St. John (Jean Smart), numa conversa com o ator decadente Jack Conrad (Brad Pitt), reflete sobre a efemeridade das estrelas de cinema em favor do legado que elas deixarão por causa dos filmes que estrelaram. “Em 100 anos, quando eu e você estivermos mortos há muito tempo, alguém congelará um quadro de um dos seus filmes e você estará vivo de novo. Um dia, cada pessoa que esteve num filme lançado neste ano estará morta, mas seus filmes serão exibidos e seus fantasmas serão reunidos mais uma vez”, diz ela.
A conexão com Babilônia não me veio de imediato conforme eu assistia Retratos Fantasmas, mas é impossível não associar essa fala à proposta do diretor Kleber Mendonça Filho, que se ancora na memória — tanto pessoal quanto pública — para resgatar a sua relação com os cinemas de ruas de sua cidade natal, Recife, a maioria dos quais foi fechado e abandonado ao longo das últimas décadas. Sete anos de pesquisa documental, além de imagens e vídeos de arquivo do diretor ou de diversas outras fontes, são esculpidos e convertidos na abordagem documental de pouco mais de 1h30 que Kleber nos entrega aqui.
Como seus outros longas-metragens, Retratos Fantasmas se divide em três partes. Na primeira, O Apartamento de Setúbal, ele volta ao apartamento onde cresceu — e que para minha surpresa, foi cenário de tantas outras obras suas, em especial O Som ao Redor. O diretor, que também narra o filme, nos conduz pela sua íntima relação com o cinema e como este foi encrustado em sua própria vida pessoal, a partir da influência de sua mãe (que é talvez o primeiro dos “fantasmas” que a obra traz) e da sua própria relação com o espaço doméstico e deste com sua filmografia. É fascinante como nessa primeira parte há quase uma retrospectiva da carreira de Kleber através de cada história contada e detalhes observados sobre o apartamento, lançando novas luzes sobre suas obras anteriores.
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Considerando o peso do cinema de gênero na filmografia do diretor, não é surpresa que Retratos Fantasmas fuja do convencional esperado para um documentário, borrando as linhas entre realidade e ficção — prova disso é a “reencenação” de um episódio vivenciado por Kleber e a atriz Maeve Jinkings no apartamento. A trilha sonora, que vai do brega nacional ao jazz, passando por trechos de trilhas de outros filmes, é articulada para favorecer essa linha tênue, intensificando sentimentos, emoções e percepções. E os próprios vídeos de arquivo do diretor, vários dos quais datados de mais de 30 anos atrás, são incorporados à obra como se tivessem sido gravados lá no passado apenas para esse filme em específico.
Em nenhum lugar isso é tão evidente quanto na segunda e maior parte, Os Cinemas do Centro do Recife. Concebida como o eixo central da obra, aqui temos Kleber saindo do micro da primeira parte para o macro, sem nunca deixar de lado seu olhar e experiências pessoais, no entanto. Na verdade, mesmo quando abraça o macro, ele escolhe construí-lo a partir de si, sem, entretanto, soar vaidoso ou prepotente. Sua narração — seca, afiada e cômica — reflete ainda mais a pessoalidade do longa e como essa pessoalidade atravessa sua relação com os cinemas aqui trazidos e com a própria cidade do Recife, explorada a partir das suas contradições (e enriquecida por causa delas).
Isso não quer dizer que aspectos mais gerais não se façam presentes, como evidenciado em sequências tais quais a do papel dos nazistas na criação de um dos cinemas retratados, nos comentários sobre a força da produção cinematográfica pernambucana ou na já tão conhecida relação entre arquitetura, espaço e classe que é uma das marcas do cinema de Kleber. Mas praticamente a todo instante vemos um diretor que constrói intersecções e narrativas a partir das suas próprias vivências, entregando um olhar muito íntimo (mas não necessariamente nostálgico).
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É por isso que para mim o ponto alto do filme está nos resgates das suas interações com seu Alexandre Moura, o falecido projecionista do Art Palace com quem Kleber interagiu nos últimos anos antes do fechamento do cinema no início dos anos 1990. A presença de seu Alexandre é a expressão máxima dos fantasmas indicados pelo título; mesmo já tendo morrido há mais de 20 anos, ele é “ressuscitado” pelo diretor, se transformando numa presença viva diante dos nossos olhos. Suas falas divertidas, sua paixão palpável pelo trabalho e a melancolia diante do iminente fechamento do Art Palace trazem uma humanidade e sensibilidade pungente à obra, que só nos fazem lamentar ainda mais por uma época do cinema que parece cada vez mais distante para a nossa geração.
É notável como cada uma das partes do filme parece tão distinta uma da outra e, ao mesmo tempo, Kleber tece entre elas uma sutil costura que aponta para tema(s) maior(es). Mesmo quando parece ir para um lado menos pessoal, como na última parte, Igrejas e Espíritos Santos, Kleber incorpora seu olhar ao mundo à sua volta, seja nas imagens de arquivos que abordam a transição de salas de cinema para igrejas evangélicas, ou nos sagazes minutos finais que borram ainda mais os limites da realidade e da ficção (e entre os gêneros) e ainda uma piada visual envolvendo farmácias que parece ilustrar a sina dos nossos tempos.
Se pudesse destacar um dos (muitos) méritos de Retratos Fantasmas, é em como, ir do micro ao macro no decorrer do filme, Kleber reforça uma das marcas do seu cinema: conjugar o pessoal ao universal. É por isso que há uma força simbólica na exibição do filme nessas últimas semanas em diversos cinemas de rua do país, os quais ainda resistem à avassaladora hegemonia dos multiplex de cinemas e à falta de incentivos à cultura. Há uma transcendência na obra que toca não só a quem é de Recife e/ou foi aos cinemas aqui retratados. Para mim, em particular, foi como voltar ao saudoso Cine Madrigal, em Vitória da Conquista, lugar fundamental para a formação do meu amor pelo cinema e infelizmente fechado em decorrência da chegada do primeiro shopping ; ou ao Cine Vitória em Aracaju, que resiste mesmo com a gradativa depredação e abandono do centro da cidade.
E é por isso que os fantasmas do filme vão além da mãe de Kleber ou de seu Alexandre: é o centro do Recife (e tantos outros centros abandonados à sua própria sorte e aos efeitos nocivos da gentrificação), os cinemas que fizeram a vida e a mente do diretor, e também as milhões de pessoas que por eles passaram e deixaram suas risadas, sustos, lágrimas e tanto mais. Os Retratos Fantasmas são, antes de tudo, de Kleber, mas também se tornam nossos, e é nessa afinidade e identificação que reside uma das maiores belezas do cinema, aqui expressa em sua potência máxima.
Nota: 5/5
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