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Crítica | Tocaia no Asfalto (1962)

Foto do escritor: Vinicius OliveiraVinicius Oliveira

Cinema de gênero se alia à denúncia sociopolítica neste clássico thriller baiano.


Divulgação


Figura importante do chamado Ciclo Baiano (1959-1962), o qual foi uma das gêneses do Cinema Novo, Roberto Pires parecia se distinguir dos seus contemporâneos pela frontalidade com a qual assumia o cinema de gênero em seus filmes. A cena de abertura de Tocaia no Asfalto é um primoroso exemplo disso: vemos o protagonista Rufino (Agildo Ribeiro) chegando a um bar, puxando conversa com um homem desconhecido e o convencendo a mostrar-lhe sua arma e deixá-lo manuseá-la, antes de usar a própria arma para matar este homem, revelando-se assim um pistoleiro. Uma daquelas aberturas inesquecíveis que, como li em um comentário sobre o filme, Tarantino ou Scorsese copiariam se o tivessem assistido.


O restante do filme se desenrola nesse casamento entre os elementos do cinema de gênero — mais especificamente o crime/thriller e até do noir, como no uso das sombras e do chiaroescuro — com uma forte veia política, que denuncia as desigualdades sociais e a corrupção do meio político na Bahia, estado onde a maior parte da trama se passa. Alagoano, Rufino é mandado a Salvador para eliminar seu próximo alvo, o coronel Pinto Borges (Milton Gaucho), o qual deseja ingressar na vida política. Vemos Rufino em conflito quanto ao seu dever devido à paixão que passa a nutrir por Ana Paula (Araçary de Oliveira) e também à sua relação com o catolicismo; enquanto isso, a filha de Pinto Borges, Lucy (Angela Bonatti) se envolve com o jovem deputado Ciro (Geraldo Del Rey), rival do pai que apresenta ideias progressistas e por isso se vê alvo do coronel e de seus braços direitos.


Essa bifurcação narrativa, que evidentemente aponta para uma convergência das duas tramas, acaba sacrificando um pouco do ritmo na primeira parte do longa, mas aponta para o propósito de Pires de desnudar essas duas Bahias (ou até mesmo Brasis). Aliás, é interessante notar que, no contexto do filme, os personagens baianos não se veem como parte do Nordeste: ora Rufino é chamado de “nordestino”, ora se referem a ele como tendo vindo do “Norte”, quase em tom de condescendência. Mas, embora a designação oficial dos nove estados do Nordeste só tenha sido criada pelo IBGE em 1969, o filme constantemente aponta para o fato de que a Bahia está mais próxima dos seus irmãos do “Norte” do que do Sul, seja pelo controle e influência dos coronéis como Pinto Borges quanto pelo discurso da seca que é construído para se angariar votos.

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Essa relação que o filme constrói entre classes é potencializada pela vigorosa direção de Roberto Pires,, em nada devedora dos mestres estrangeiros da época, principalmente pela mise-en-scène e blocagem dos atores, especialmente nas cenas em espaços fechados, além do já referido trabalho de fotografia e sombras que expõe as ambiguidades e contradições desses personagens. A maneira como Pires incorpora tais elementos do cinema de gênero sob uma lógica e estética “terceiro-mundista”, apontando para a denúncia do cenário sociopolítico da época, faz de Tocaia no Asfalto não só um precursor do Cinema Novo como também uma espécie de irmão mais velho (e obviamente menos anárquico) de O Bandido da Luz Vermelha. Como o protagonista deste, Rufino abraça seu lugar no mundo — mesmo tendo as chances de escapar da vida que leva como pistoleiro —, rejeitando a conciliação e as normas instituídas pelas forças hegemônicas. Seu único refreio, mais do que seu amor por Ana Paula, é a fé, mas mesmo isto é “resolvido” na sua postura excêntrica de rezar pelas almas das suas vítimas antes de matá-las.


Não é nenhum segredo dizer que, quanto mais as duas linhas narrativas do filme se aproximam, mais a tragédia se prenuncia sobre elas. Tragédia esta que, aliás, reflete aquilo que o próprio país vivenciaria dois anos depois, com o golpe de 64. Roberto Pires consegue capturar essa efervescência e transição dos poderes políticos do país — onde nem mesmo as boas intenções de homens jovens como Ciro podem deter o avanço do conservadorismo e da aliança deste com as oligarquias locais —, o que faz de Tocaia no Asfalto um poderoso exemplar do nosso cinema de gênero, assumidamente terceiro-mundista mesmo quando suas referências estrangeiras são nítidas, e que desnuda o conflito de classes sem perder de vista uma boa e envolvente história.


Nota: 4/5

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