Palma de Ouro foi para 'Anora' em competição que contou com grandes veteranos
Foto: Anora/ Divulgação
No último sábado (26) terminou mais uma edição de um dos maiores e mais renomados festivais internacionais de cinema, o Festival de Cannes. Caso não tenha ficado entendido no título eu não estive presente, mas, como boa parte da comunidade apreciadora da sétima arte mundo afora, acompanhei o máximo que pude virtualmente e através do trabalho de colegas críticos que puderam comparecer aos belos espaços da costa azul francesa. Portanto, é importante frisar que esta análise se baseará em repercussões que os filmes e os resultados da competição apresentaram.
Ao longo dos anos criou-se a ideia de que festivais europeus eram um território mais neutro em face ao domínio de Hollywood e suas produções caríssimas. E até que foi, o que não pode ser confundida com a lenda urbana que ainda persiste pelos meandros de algumas mentes cinéfilas de que os EUA não tem qualquer influência sobre a estrutura desses eventos. Em Cannes então, se havia alguma dúvida, a edição 2024 veio para colocar as cartas na mesa.
A cineasta estadunidense Greta Gerwig esteve na presidência do júri que tinha como membros J. A. Bayona, Ebru Ceylan, Pierfrancesco Favino, Lily Gladstone, Eva Green, Hirokazu Kore-eda, Nadine Labaki e Omar Sy. O filme vencedor da Palma de Ouro foi ‘Anora’, filme estadunidense do diretor estadunidense Sean Baker. Além de 'Anora', outros dois filmes dos EUA competiam ao prêmio principal, ‘Megalopolis’ (Francis Ford Coppola) e ‘Oh, Canada’ (Paul Schrader).
Foto: Tipos de Gentilezas/ Divulgação
Fazendo um pequeno recorte dos últimos 24 anos (de 2000 para cá) não houve um ano sequer em que não tivesse um filmes dos EUA na principal seleção do Festival, se tornando assim o único país – entre mais de 190 países do mundo – ao lado da França (sede do Festival) a conseguir este feito. Neste mesmo recorte, houve apenas dois anos em que nenhum estadunidense compôs o corpo do júri (2001 e 2007), e por 9 vezes os compatriotas de Greta estiveram na presidência, mais do que o dobro de vezes que os franceses (4).
Aí alguém pode falar “ah, mas é um festival internacional e os EUA é o maior polo cinematográfico do mundo”. Certo e errado. O que sabemos mesmo é que tudo gira em torno de mídia e a presença certeira de figurões consolidados com o tempo atrairão holofotes, jornalistas, influencers, turistas, etc.
Então, no fim das contas o que se sabe é que aplausos e críticas positivas influenciam até a página 2 no resultado do grande prêmio; a voz do júri (e de seu presidente) é o que realmente vai refletir no principal filme do festival. E aqui quero falar não só de bairrismo, mas de identificação entre os membros votantes e o resultado, afinal de contas o último filme estadunidense a vencer a Palma foi em 2011 (ano em que coincidentemente-ironicamente-curiosamente outro estadunidense estava na presidência) e de lá para cá houve outros 3 presidentes ianques que não premiaram seus conterrâneos.
Foto: Amarela/ Divulgação
Acompanhar festivais à distância e não estando participando é sempre uma experiência divertidíssima se você souber quem seguir. A empolgação a cada nova exibição, surpresas e frustrações, primeiras vezes, erros e acertos... acredite, é possível ficar feliz com a felicidade alheia, e isso serve para todos que ali estão, seja um ator vindo da maior favela de Fortaleza que está saindo do Brasil pela primeira vez, ou uma crítica vinda do Amazonas e única representante do norte do país em sua primeira cobertura internacional. E nós que aqui estamos e por vós esperamos ficamos lendo, observando, investigando e procurando como podemos nos sentir inseridos naquela efervescência cinematográfica.
A cada nova produção exibida somos tomados por uma enxurrada de textos e impressões que rapidamente viram um preguiçoso telefone sem fio que tornam aquele filme ou um dos piores filmes do mundo ou com certeza o próximo vencedor da Palma de Ouro. É preciso filtro, é preciso leitura, é preciso saber o background daquele jornalista, é preciso esperar que o filme chegue em nosso país para tirarmos a prova a limpo.
Mas esse termômetro da boca do povo sempre consegue filtrar quais os prováveis ganhadores, nisso dificilmente se tem alguma surpresa. Em 2024 as primeiras exibições não causaram tanto furor e logo tuiteiros que não assistiram a um filme sequer dos altos dos seus sofás começaram a proclamar que essa edição claramente já está pior do que a do ano passado. Afinal, no terceiro dia de Festival o aguardado projeto desenvolvido por mais de 40 anos pelo multipremiado Coppola foi massacrado por boa parte de quem pode assisti-lo. Então o que esperar dos dias vindouros?
Foto: Emilia Perez/ Divulgação
Eis que dia 18 de maio, quinto dia de Festival, as coisas começaram a esquentar. É que 'Emilia Pérez', um musical que se passa no México dirigido pelo francês Jacques Audiard sobre uma traficante trans, deu o que falar, e despontou como o primeiro favorito a prêmios. E daí pra frente foi uma crescente de ovações e louvores até o último dia. O body horror 'The Substance', o simpático 'Anora', o queridinho 'Grand Tour', o indiano 'All We Imagine As Light' e o aguardado 'The Seed of the Sacred Fig' se destacaram entre os 22 longas-metragens da seleção principal.
E em 24 horas entre a exibição do iraniano 'The Seed of the Sacred Fig' e a premiação, os mais diversos especialistas em premiações começaram suas incontáveis teorias sobre quem ia levar o quê e porquê. Tudo vira especulação, quem ainda não foi embora de Cannes. Quem foi e voltou. Quem foi visto na praia. Quem foi almoçar com Fréumax. Coppola foi um dos primeiros que se soube que havia voltado a Cannes, e pronto, algo está garantido para Megalopolis. Num tom de brincadeira com fundo de verdade eu cravei num grupo de amigos um dia antes: "[16:37, 24/05/2024] Ávila: ainda acho que a Greta vai dar a Palma pra Anora [16:39, 24/05/2024] Ávila: é diretor americano, protagonista feminina jovem, é prostituta mas não tem sexo quem nem o brasileiro, do jeito que estadunidense gosta mesmo".
Brincadeiras e tentativas de acerto com leituras superficiais que às vezes dão certo e por isso parecem ter embasamento ou previsibilidade. O filme iraniano dirigido por Mohammad Rasoulof - preso político em seu próprio país que quebrou a tornozeleira eletrônica e se escondeu pela Europa por semanas até conseguir chegar a Cannes ganhou um prêmio especial de consolação que na teoria nem existe. A política da boa vizinhança na falta de ousadia. Bem EUA no comando. O elenco feminino de 'Emilia Perez' levou o prêmio de Melhor Atriz, e a presidente Greta justificou que elas criaram um trabalho lindo e conciso juntas e não poderia premiar apenas uma. No pacote estava a atriz trans mexicana Karla Sofía Gascón, unanimidade entre os críticos como destaque no filme. Foi a primeira atriz trans a vencer na categoria do Festival, mas para isso teve que dividir com outras 3 colegas de elenco. A política da boa vizinhança na falta de ousadia. Bem EUA no comando. Melhor Ator? Estadunidense, Jesse Plemons. As duas Palmas Honorárias? Meryl Streep e George Lucas.
Foto: Motel Destino/ Divulgação
Cada ano uma sentença, cada ano um júri, cada ano uma seleção. O cearense Karim Aïnouz levou seu 'Motel Destino' e chocou algumas pessoas com o sexo e o calor vindos do nosso litoral e se sentiu premiado por conseguir levar um projeto autoral cheio de identidade regional entre os que competiam. E ele está correto, sabe que o gosto comum, os parâmetros e os resultados sempre terão rostos e vozes já condicionados e moldados quando se fala do norte global. E olhando por esse lado, eles podem até dizer que o Brasil não tem do que reclamar, afinal, entre os países latinoamericanos é um dos que mais apresenta constância em Cannes. Além de 'Motel Destino' o Brasil esteve presente com o curta-metragem 'Amarela', do diretor nipo-brasileiro André Hayato Saito, que disputou a Palma de Melhor Curta; 'Baby', do cineasta Marcelo Caetano, que deu a Ricardo Teodoro o prêmio de Melhor Ator Revelação na Semana da Crítica, uma das mostras paralelas do evento; 'Queda do Céu', de Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, na Mostra Quinzena dos Cineastas; o curta de animação 'A Menina e o Pote', de Valentina Homem, também na Semana da Crítica; e a versão restaurada de 'Bye, Bye Brasil', de Cacá Diegues, na Mostra Cannes Classics.
Está encerrado, os prêmios foram dados e segue-se o período de calmaria até os lançamentos dos títulos e até o próximo festival internacional. A história da arte e do entretenimento mundial segue sendo escrita, e, com prêmios ou não, o forró, o carisma e o talento de ter um diretor competindo dois anos consecutivos em produções completamente distintas de origens diferentes não se pode ignorar ou negar, tem que se reverenciar.
留言