Os dramas e tensões intergeracionais de três mulheres ferozmente vividas por suas três brilhantes intérpretes
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Ao final de Malu, os créditos são acompanhados de Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, icônica canção de Sérgio Sampaio, onde o artista capixaba canta: Eu, por mim, queria isso e aquilo / Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso / É disso que eu preciso ou não é nada disso / Eu quero é todo mundo nesse carnaval. A escolha de trazer a música de um dos “malditos da MPB” — alcunha dada a artistas que, no contexto da ditadura militar, foram ostracizados por não se acomodarem aos padrões radiofônicos — é mais do que apropriada para um filme que, em sua essência, fala de uma “maldita”.
Malu (Yara de Novaes) é uma presença magnética já desde a sua primeira cena, onde a vemos ensaiar no terraço da sua casa numa favela do Rio nos anos 1990. Os dez primeiros minutos habilmente nos dão a tônica desta personagem, do seu contexto e das suas relações, em especial com a filha Joana (Carol Duarte), que acaba de retornar ao Brasil depois de um tempo morando na França, e com a mãe Lili (Juliana Carneiro da Cunha), com quem divide a casa e com quem frequentemente se antagoniza ao ponto de haver altercações físicas entre as duas. A protagonista é dona de uma personalidade intempestiva e afrontosa, se recusa a se adequar a quaisquer padrões de “feminilidade” e fuma religiosamente sua maconha todo santo dia, enquanto se agarra desesperadamente às lembranças da sua trajetória como atriz do teatro durante a ditadura.
É perceptível o ressentimento que a envenena, diante das oportunidades perdidas e pela vida que leva agora, presa a uma mãe conservadora e racista e incapaz de se reconectar com a filha, enquanto nutre sonhos que nós, como espectadores, já tememos que nunca irão se realizar. Como os malditos da MPB, Malu é essa figura que foi ostracizada por um regime tão repressivo — ainda que possamos colocar em xeque a veracidade de seus relatos, à medida que o filme vai indicando a natureza turva das suas memórias e perspectivas. Mas é inegável como a subversão reside em seu âmago e como o preço que ela precisou pagar por isso ainda é sentido, especialmente em sua saúde mental (nitidamente deteriorada) e em suas relações familiares.
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Para dar vida à personagem que dá nome ao filme, Yara de Novaes a interpreta como uma figura maior do que a própria vida, intensa, instável, cativante na medida em que pode ser repulsiva. Em um momento estamos rindo dela humilhando um padre para em seguida ficarmos chocado com sua capacidade de ir às vias de fato com a mãe numa briga. Particularmente, adoro o detalhe dela contando ocasionalmente as mesmas histórias da sua trajetória no teatro para Joana e amigos, uma maneira eficaz pela qual o diretor Pedro Freire ilustra o fato da personagem estar presa ao passado de (suposta) glórias. Em um ano onde vemos o estrondoso sucesso de Ainda Estou Aqui e a maneira como a atuação contida de Fernanda Torres é a alma do filme, é um exercício interessante olhar para como a atuação expansiva de Yara é um contraponto que, à sua própria maneira, é a alma de Malu.
Mas é na maneira como sua expansividade se relaciona com as outras pontas do triângulo que sustenta o filme que ele cresce. A dinâmica entre essas mulheres é pesada, tóxica e até mesmo violenta em alguns momentos (em ações, mas sobretudo em palavras carregadas de ressentimento, ódio e mágoas). É perceptível como se tratam de três gerações que não conseguem conversar entre si: Lili representando uma geração retrógrada e religiosa, Malu aquela que tentou se libertar das amarras repressivas da ditadura e Joana simbolizando uma nova geração que só pensa em sobreviver e é muito menos interessada em política que a de sua mãe. Tais percepções são potencializadas pela razão de aspecto em 4:3 que Freire adota, “comprimindo” ainda mais essas personagens nos espaços já apertados dessa humilde casa, além de trazê-las sempre em planos mais intimistas e close-ups que nos tornam tão próximos dessas mulheres ao ponto das discussões e brigas serem ainda mais desconfortáveis e difíceis de assistir.
Ao mesmo tempo, porém, Freire é inteligente o suficiente para mostrar como essas relações são complexas, sendo também pontuadas por afeto, cuidado e (talvez) amor, seja nas interações entre Lili e Joana, no orgulho que Malu precisa engolir para pedir ajuda à filha no melancólico epílogo — e nessa ajuda ser oferecida mesmo com tantas dores envolvidas. Da mesma forma, cada personagem recebe um background que, se não justifica suas ações, certamente explica muito dos seus comportamentos, especialmente no que se refere às ausências das figuras masculinas: não parece coincidência que o único homem relevante na trama, vivido por Átila Bee, é um homem negro e gay que oferece as mais genuínas expressões de afeto para essas mulheres, mas ainda assim é afetado pelas dores e traumas delas. Talvez por isso, ainda que Yara de Novaes seja a grande estrela do filme, a minha cena favorita é a do devastador monólogo oferecido pela personagem de Juliana Pereira da Cunha após arriscar fumar maconha pela primeira vez.
Malu é um primoroso exemplar da atual safra do nosso cinema, um filme cuja alma reside na instabilidade que permeia as relações familiares entre suas personagens femininas, as quais nunca são romantizadas, mas apresentadas em toda a sua crueza e contradições. Ancorado na fenomenal performance de Yara de Novaes, uma das melhores que vi em tempos recentes, é um filme que merece ser visto e revisto, mesmo com todo o desconforto que possa gerar com a acurada representação de relações tão disfuncionais, honestas. Quando os créditos anunciam a dedicatória à mãe do diretor, ela própria uma atriz cuja vida inspirou partes do filme, não resta dúvidas de que o que vimos nos 100 minutos anteriores foi uma belíssima homenagem a uma grande maldita.
Nota: 4/5
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