Entrevista | Rachel Daisy Ellis e a criação de um palco entre quatro paredes no documentário Eros
- Aianne Amado
- 17 de jun.
- 7 min de leitura
Com o uso do auto-registro, o documentário lança um olhar inédito sobre intimidade, performance e sexualidade.

Todo brasileiro já passou por isso: pegando a estrada, logo na saída da cidade, começam a surgir curiosas luzes em neon, em sequência, chamando atenção para prédios fechados e misteriosos. São os motéis, a maior instituição legalizada ligada ao sexo no país. Em geral, todos sabemos o que acontece lá dentro. Mas e os detalhes? Em cada suíte, um universo de possibilidades, ligadas apenas por uma mesma intenção.
Estreado nos cinemas brasileiros no último dia 12/06, Dia dos Namorados, Eros é o primeiro longa-metragem dirigido por Rachel Daisy Ellis, produtora de carreira consolidada que, em 2025, também brilhou em Berlim com O Último Azul (Gabriel Mascaro). Antes de sua estreia nacional, Eros já havia passado por importantes festivais, como o CPH:DOX, na Dinamarca, e a Mostra de Tiradentes, despertando o interesse do público internacional por sua abordagem singular e especificamente brasileiro. “Eu queria entender como esse espaço molda a forma como a gente vive o afeto, a sexualidade, o amor”, afirma a diretora.
Inglesa morando há 22 anos no Brasil, Rachel transforma sua curiosidade em filme – no qual tem breve participação, na cena inicial, falando em primeira pessoa. Aliás, é nessa ambivalência – entre o privado e o público, o oculto e o escancarado – que está o coração do filme, que transforma a suíte de motel em um palco onde o desejo se encena.
Oxente Pipoca:. Qual foi sua percepção inicial sobre moteis e como ela foi se transformando ao longo dos anos? E como tem sido a reação de audiências estrangeiras diante de uma instituição tão específica e, ao mesmo tempo, tão carregada de ambivalências culturais como o motel brasileiro?
Rachel Daisy Ellis: Eu tô morando há 22 anos no Brasil, né? Morando e naturalizada brasileira. Mas quando cheguei aqui, jovem e não conhecia motel e tive experiência de alguém que conheci numa noite e me convidou para ir num lugar muito especial e me levou num motel. Eu fiquei: "Uau, que é isso? Que é incrível!". Ou seja, achei muito “muito” porque não tinha ideia que existia esse lugar que ia só para transar.
Então minha primeira impressão era surpresa, assim, ao mesmo tempo achei muito especial que existia. Mas aí depois eu comecei a entender uma coisa muito… para mim foi muito curioso, que ao mesmo tempo que esse lugar tinha muito tabu e a identidade das pessoas lá dentro estão escondidas, e ao mesmo tempo, a arquitetura do espaço do motel, os edifícios… são muito gritantes, na paisagem urbana: o neon, tudo.
Era esse legado [de] uma coisa que todo mundo sabe sobre, todo mundo faz, mas ninguém fala sobre também. E eu fiquei muitos anos pensando sobre como isso [acontece], pensando como isso impacta na maneira que as pessoas se relacionam, como isso impacta na maneira que as pessoas vivem suas suas sexualidades, seus vídeos sexuais e intimidade, relações de amor também. E pronto, é isso… até o momento que teve essa oportunidade de fazer esse filme para entender um pouco mais.
E sobre a recepção internacionalmente: é muito curioso. No Brasil o filme é assim, o que tem sido. É muito lindo nas sessões em salas de cinema, especialmente na primeira metade do filme, que é mais divertida. É muita risada, até gritos, as pessoas vendo situações que lembram, sei lá, de outras histórias pessoais delas. E, assim, é uma mistura de risos porque [tem] a cena cômica, e risos de de talvez desconforto também, não sei. Mas foram, ou seja, reações muito fortes.
E lá fora não, porque como não tem essa referência do que é um motel, não tem esses risos, por exemplo. Mas as pessoas acessam o filme através de vias mais emocionais, porque o filme fala muito sobre afeto, sobre amor também, não é só sobre o sexo. E ele traz vários temas e assuntos que transmitem o filme. Então, foi muito bonito ver como as pessoas acessaram o filme desse lugar e também ficavam muito fascinados de que existiam esses moteis no Brasil. Acho que muita gente ficou querendo que existisse lugar assim nos seus países [risos].

OP: Eros propõe uma visão da suíte de motel como uma espécie de palco íntimo. Que tipo de “encenação” ou performance você observou nos participantes quando eles se filmavam? Você sentiu que esse espaço liberava ou, paradoxalmente, restringia certas expressões?
RDE: Isso é uma boa pergunta, porque uma das coisas que eu senti nesse momento de decidir fazer um filme em motel foi eu entender também que… nossa, uma suíte de motel é um palco de um performance sexual íntima, né? Onde a gente vai, a gente vai performar para um parceiro, parceira, assim.
E aí eu fiquei querendo capturar isso, esse momento também, e também um espaço onde a gente tá deslocado do nosso cotidiano, deslocado. Essa temática dos quartos também [ajuda no deslocamento]. Ou seja, possibilitam para a gente se transportar para outros passos, a gente tirar nossas máscaras, colocar máscaras, ser nós mesmos, ser outros.
Então, essa ideia de uma uma possibilidade de performance, de de ser outros, ser quem somos, estava sempre ali desde o início do projeto. E também, assim, eu tô dando às pessoas [a possibilidade de] se auto registrarem, né? Tudo filmagens deles mesmos, com eles mesmos. Então, sim, tem uma possibilidade, de fato, de uma encenação em vários momentos do filme, e mais com uns personagens do que outros, mas de que essa encenação é muito misturada com algo algo muito autêntico e muito real da própria intimidade daquela pessoa.
E eu acho que isso para mim foi muito bonito. Eu senti isso de como se através dessa encenação, esse auto registro, você se revela também. Então assim, eu acho que isso na verdade fazia sempre parte do que eu queria investigar no filme também.
OP: No processo de filmagem, é perceptível que as conversas captadas dentro da suíte traziam um grau de intimidade e vulnerabilidade até maior do que o ato sexual em si. Algum tipo de histórias ou confissões te surpreendeu mais nesse sentido?
RDE: Ah, eu acho que tem vários momentos no filme. Quando recebi o material, assim, tem coisas que eu sabia que eles iam conversar sobre, porque eu conheci bem todos antes que eles foram se filmar, mas tem coisas que foram realmente surpresa quando veio no material – e eu acho que cada história faz algo muito único e muito especial.
Mas uma coisa que em geral, no filme, que me surpreendeu, que eu não esperava, é a relação com comida, por exemplo. Que a comida em motel acabou virando personagem no filme. Isso foi uma coisa que foi só [percebida] depois que a gente recebeu o material de alguns personagens, ou seja, depois de mais de um ano, eu fiquei: "nossa, a comida é muito presente!".
E também essa ideia do ritual no motel… na verdade, o ato sexual é um ritual também, né? Então, essa ideia de ritualização do momento do sexo e também a ideia disso que tu falou: não é só sexo que constói intimidade – é construído em tudo. E sexo é, enfim, uma coisa mais normal do mundo, né? A gente bota muita pressão em cima e muito medo em cima também, mas, na verdade, deveríamos naturalizar mais, talvez.
OP: Falando agora do processo de auto registro, que você já começou a pincelar. Você já havia trabalhado com dispositivos de auto registro em “Doméstica” [Gabriel Mascaro, 2012], mas agora os utilizou como diretora. O que o método oferece que outros métodos não alcançam? E quais foram os maiores desafios e as maiores vantagens dessa escolha?
RDE: Então, sim, eu reproduzi o Doméstica, de 15 anos atrás. Foi o primeiro filme que produzi também, foi quando comecei a trabalhar com cinema e teve um impacto muito grande em mim. Eu acho que achei muito potente enquanto o que esse auto registro pode revelar, essa intimidade que cria, essa autenticidade que gera.
E eu também tenho uma formação antes de trabalhar com cinema: eu tenho uma formação em políticas sociais, que tinha um foco muito grande em participação. Então eu tenho um interesse, uma investigação muito[forte] em arte participativa, é algo que por diversas razões, assim, sempre tem sido muito presente na na minha vida. Especificamente com Eros, eu entendi que isso funcionava muito bem dentro deste contexto do acesso a uma intimidade, tipo, até uma outra pessoa lá naquele quarto ia quebrar completamente, não ia funcionar.
E também, eu acho que esses filmes de dispositivo do auto registro também funcionam muito bem quando você tem outros delimitações no dispositivo, ou seja, no caso de Eros, é um suite de motel durante uma noite com duas pessoas, ou seja, tem um controle ali que é proposto pela direção, que limita a partir desses limitações, aí você deixa tudo acontecer nas mãos de das suas personagens.
Então, acho que tem filmes e dispositivos que, como Eros, tem uma construção junto com esses personagens e tem outros filmes que fazem uso do auto registro que é diferente porque eles peguem essa imagem depois, sem as pessoas saberem quem iam ser usados com filme, como o Pacific [Marcelo Pedroso, 2009], por exemplo, que é um grande filme assim, também de auto registro, mas tem mecanismos diferentes
OP: Em Eros, você precisou abrir mão de certo controle para permitir que os participantes tomassem a frente em muitas das escolhas do filme. Como foi para você, como cineasta e produtora experiente, lidar com essa entrega ao imprevisível?
RDE: Ai, é incrível [risos]. Não, é isso, eu acho que, assim, você abre mão do controle, mas ao mesmo tempo eu entendia e estava em total controle do processo como um todo. Estabelecia umas regras, mesmo que não foram seguidas sempre [risos], tipo]: foi uma filmar na horizontal. Sabia quem eram as pessoas, quem estava ali. E a partir dessas regras, desse controle, entregar isso e ver o que vem – para mim foi incrível, porque eu também sempre tive muito interesse de ver como as pessoas se representavam, auto-representavam nesse momento da intimidade, sobre como eles iam falar sobre os assuntos que a gente vinha a a a um tempo conversando, como eles iam, enquadrar a cena… Então isso foi muito integral no processo, eu estava muito animada para ver. Então foi, na verdade, foi um prazer não controlar isso.
OP: Para finalizar: Eros chega em um momento curioso para o documentário brasileiro, que tem se reinventado entre os extremos da política, da autoficção e da experimentação estética. Como você enxerga esse momento do gênero no país e onde sente que seu filme se insere nessa paisagem?
RDE: Acho que é um momento muito muito especial, né? É incrível. Eu acho que vem tendo, sim, a cada ano, filmes incríveis. Espero que essas produções continuem – e eu acho que vão continuar vindo nos próximos anos. Eu espero profundamente que a gente consiga segurar e continuar tendo os apoios do dinheiro público para o audiovisual, que são essenciais para essas produções e para poder ter filmes assim. Tipo, é um filme muito radical em termos das sexualidades que se colocam, enquanto dispositivo de documentário.. não seria possível sem investimento público no cinema.