“Queremos fazer com que o nosso cinema seja uma ferramenta de transformação social”: Conheça a produtora Segredo Filmes
- Ana Beatriz Andrade

- 8 de jul.
- 10 min de leitura
As produtoras Lilih Curi e Josi Varjão falam sobre a importância de pautar acessibilidade e protagonismo feminino nas telas.

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Criada em 2013, a produtora audiovisual Segredo Filmes vem trilhando um caminho insurgente no cinema brasileiro. Com um olhar atento às urgências do presente, destaca-se por colocar mulheres no centro de suas narrativas e por fomentar debates sobre acessibilidade e justiça social, dentro e fora das telas.
Em conversa com o Oxente Pipoca, as fundadoras Lilih Curi e Josi Varjão revisitam os primeiros passos da produtora e antecipam os lançamentos previstos para 2025. Falam também sobre os muitos entraves de se fazer cinema no Brasil e sobre o compromisso de abordar, em seus roteiros, temas que atravessam suas próprias vivências.
Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): Primeiramente, eu gostaria de começar perguntando sobre como surgiu a Segredo Filmes. Como essa iniciativa se tornou real?
Josi Varjão: Então, a Segredo Filmes nasceu em 2013. A gente tinha o desejo e a vontade de fazer filmes. Nós duas viemos do teatro, eu sou atriz na minha primeira formação e já tinha essa vontade de fazer cinema. A gente queria muito fazer filmes de questões autorais, questões que nos atravessam... Então, criamos a Segredo Filmes e já estamos indo para o décimo curta-metragem – todos com temáticas de gênero, deficiência e violência. E a gente começou fazendo cinema de uma forma natural, não foi algo muito intencional desde o princípio.
A Lilih queria muito fazer um filme para mim, que eu atuasse, porque eu sempre era convidada para fazer filmes em que eu estava em uma condição de subalternidade. Eu, como uma atriz negra, sempre em lugares que eu não gostaria de estar. Então a Lilih pensou: eu vou fazer um filme e escrever um roteiro para você protagonizar, e não será nesse lugar. O primeiro roteiro que ela escreveu foi “Anastácia”. A gente tem esse curta e um projeto de longa-metragem também com ele.
Lilih Curi: Sim. Durante o meu processo no teatro, eu sempre tive curiosidade em escrever os textos. Lia muitos clássicos e, enfim, tinha um trabalho forte com a dramaturgia clássica, mas sempre tive essa inquietação de querer falar com a minha própria voz. No cinema, eu senti essa possibilidade maior. Eu vi que existia um espaço em que eu pudesse roteirizar e dirigir as minhas próprias obras. No cinema, eu senti que eu poderia ser autoral, na realidade.
Eu fiz o meu mestrado sobre narrativa visual nas obras de Frida Kahlo, então eu já tinha um estudo sobre narrativa e imagem. Essa conexão entre sonoridade, imagem e texto, tudo isso eu já estava trabalhando no mestrado. Na época anterior a isso, eu também atuava. Minha primeira formação é o teatro, gosto muito da atuação, inclusive, mas eu senti que precisava estar do lado de fora para construir essas narrativas. A gente veio desse processo. Então, quando eu via a Josi sofrendo determinados tipos de preconceito de gênero e de raça – porque tudo que era ofertado para ela como atriz não era nada empoderador – eu falei: então vou escrever para você. Foi ali que a nossa parceria começou. Quando eu comecei a escrever personagens para que a Josi interpretasse.
Josi Varjão: E sempre a Lilih ficou nesse lugar do roteiro e da direção, e eu sempre acompanhando o processo, lendo todos os roteiros e trocando muita ideia. A gente é um casal, então a gente trabalha juntas e vive um amor também, então tem muita troca e muita confiança. É uma construção diária. Eu também sempre estive nesse lugar de assistente de direção, de colaboradora nos roteiros, de atriz…
Lilih Curi: Sim, Josi também é diretora de casting, produtora de elenco… Então a Segredo Filmes nasce dessa urgência de a gente querer fazer com que as obras se tornassem reais.
Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): A Segredo Filmes já está no mercado há mais de dez anos. Vocês podem falar um pouquinho sobre os projetos iniciais e trazer um panorama sobre a fase atual da produtora?
Lilih Curi: Os três primeiros filmes que a gente fez foram completamente sem nenhum real. Então Carmen, Teresa e Carolina foram assim. Carmen é a mulher que não foi escutada, Teresa é a mulher que foi esquecida, Carolina é a mulher que tomou partido de si mesma para não ser invisibilizada. Então a gente tem, nesses três primeiros filmes, uma mulher que sofre em um relacionamento abusivo até Teresa, que é uma mulher que foi esquecida na ilha, como várias outras mulheres que esperam seus maridos que viajam para o Sul e o Sudeste com a promessa de voltar e não voltam.
Sobre Carolina, é um curta inspirado na história de uma amiga, Carolina Teixeira, que é dançarina, performer e pessoa com deficiência. Ela traz essa poética do corpo com a dança. A minha pesquisa sobre Frida Kahlo também se entrelaçou com esse projeto… Então, esses são os três primeiros filmes que a gente faz sem dinheiro. E aí depois vem Distopia, que a gente estreia no Festival de Brasília, durante a época da pandemia. A gente ganha o Prêmio Candango de Melhor Som e o filme viaja por vários lugares. Em todos esses filmes, Josi estava como preparadora de elenco, assistente de direção e na produção… A empresa foi sendo forjada ali no fazer.
Josi Varjão: E Distopia é o nosso primeiro filme que não tem nome de mulher.
Lilih Curi: Sim! Ele é o filme “menino”, vamos dizer assim. São temas muito delicados e sensíveis tratados neste filme. O primeiro tratamento do roteiro eu escrevi em Cuba, em 2012, quando faço Teresa. Então tem todo um processo laborioso na construção de um filme. Já em 2017, a gente ganha um edital do Ministério da Cultura, e foi a primeira vez que a gente esteve em um set de filmagem – e foi bárbaro, foi um processo lindo. Depois disso, acabei sendo convidada para dirigir alguns filmes em Salvador, e as coisas começaram a melhorar por causa dos editais.
Josi Varjão: Depois, a gente faz Preciso Falar Sobre ELA, sobre o primo da Lilih, que tem Esclerose Lateral Amiotrófica. Fazemos esse trocadilho com o pronome “ela” e a sigla dessa condição.
Lilih Curi: Como nós éramos conhecidas pelo cinema de gênero, muita gente achou que era porque a gente era casada [risos]. Então veio a surpresa de que era um filme urgente.
Josi Varjão: Esse filme estreou agora no Canal Futura, a gente já aprovou esse filme em um edital de licenciamento, então ele vai estar disponível nas TVs públicas da Bahia. E, quando ele foi publicado na internet, que era uma das regras do edital, a gente conseguiu mais de 20 mil visualizações. Recebemos muitos depoimentos e ficamos muito felizes com o resultado. No filme, a gente não fala apenas da ELA, a gente fala da vida também, sabe? O personagem Marden resiste à doença há muitos anos. Ele até já passou do tempo “programado” das pessoas que têm a doença. E ele está na luta, vendo sua filha crescer, já publicou livro e estamos aí, rodando esse filme nos festivais. Ele está muito feliz em compartilhar essa história.
Lilih Curi: Sobre os projetos novos, depois de Preciso Falar Sobre ELA, a gente finalmente tem a estreia de Anastácia. Na realidade, tivemos uma pré-estreia no Short Film Market do Festival Internacional de Curta-Metragem de Clermont-Ferrand, na França. Engraçado que o filme foi pensado lá atrás, mas agora que a gente está finalizando, conseguindo apoio e aprovação em edital.
Josi Varjão: A gente foi amadurecendo o projeto também durante os anos. Fizemos uma pesquisa de dois meses em uma Instituição do Ministério Público – o GEDEN – e eu acabei ficando um ano fazendo essa metodologia de aproximação com mulheres que sofreram violência e denunciaram. Então, tudo isso foi essencial para a construção do curta e do longa também.
E Anastácia é um filme sobre denúncia, acima de tudo. Sabemos que existe a violência contra a mulher, mas a gente quer levantar essa bandeira do ato de denunciar. Queremos fazer com que o nosso cinema seja uma ferramenta de transformação social.
Lilih Curi: E dessa necessidade que temos, nasce também o filme Restauro, um filme sobre a ausência de fotografias de infância. É a primeira vez da Josi como diretora junto comigo.
Josi Varjão: Em um primeiro momento foi desconcertante, mas entendi que faz parte. Fiquei muito feliz de dirigir pela primeira vez, e como se trata da minha história, foi bom experimentar isso. Aqui em Salvador, infelizmente, quando chove, muitas pessoas que moram na periferia... a água invade. Eu morava em uma casa de madeira, e essas fotografias que tínhamos foram se desmanchando. Então, acabou que virou uma homenagem à minha mãe, mas é um projeto que transforma a dor de não ter a memória registrada em papel.
Lilih Curi: Esse filme está quase pronto [risos]. E ele nos fez rever nossas escolhas estéticas, a força da imagem e do som. A gente extrapola, somos muito livres no documentário. A gente explora a ficção também e vamos brincando com a linguagem. Então, Anastácia e Restauro estão na manga para estrear esse ano. Além dessas duas produções, temos Moira, que é um filme sobre a maternidade e a cegueira. O filme é baseado na história da nossa amiga Moira Braga e envolve a linguagem artística, juntamente com a dança e a maternidade.
Josi Varjão: Ao todo, junto com Angélica, que é uma ficção sobre adoção, que vou atuar, e Menino, que é sobre a história de uma criança que nasce sem vida e o luto que é atrelado a isso, temos esses 10 projetos. Eu me formei como atriz e depois entrei para o curso de licenciatura. Eu gosto muito de ensinar e preparar. Então temos esse projeto chamado Jornada de Atuação, voltado para o preparo de audiovisual. Nosso foco é a produção de filmes, mas temos projetos de formação, distribuição, cineclubes e vários eventos educativos.

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Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): A Lilih comentou que, ao trazer histórias com mulheres no centro da narrativa e abordar temas como acessibilidade, isso não foi algo necessariamente intencional no início, mas surgiu de forma natural, por serem temas que ressoavam com vocês ao longo dos anos. De onde vem esse compromisso e como ele se reflete no dia a dia, especialmente ao contar histórias que muitas vezes são invisibilizadas no cinema e em outras formas de arte?
Lilih Curi: Eu acho que é pelo próprio fato de sermos duas mulheres lésbicas e, também, pela questão de que meu pai, por exemplo, já utilizava aparelhos auditivos. Então, a questão da deficiência se perpassa pelo lado familiar do meu pai.
Josi Varjão: E o meu pai teve um acidente de cavalo com 15 anos e passou um tempo andando de muletas. Então, quando a gente viu, estávamos fazendo filmes sobre questões relacionadas à deficiência e priorizando os filmes que pudessem ter recursos de acessibilidade. Fomos fazendo de forma natural e depois percebemos que havia questões pessoais ali também.
Lilih Curi: Sim, e também questões relacionadas à violência. A gente via coisas nas telas, realizadas por homens, em sua maioria brancos, que objetificavam o corpo da mulher. E outras violências também, além de silenciamentos nos sets. Foi uma coisa progressiva. Em um primeiro momento, queríamos fazer um filme em resposta a essas agressões. O curta “Carmen” surge como uma resposta mesmo a esse tipo de situação.
Josi Varjão: E hoje nosso set é majoritariamente feminino, preto, LGBT+ e com pessoas com deficiência. A gente se junta com os nossos para fazermos a diferença. Queremos trazer essas pessoas para áreas diversas, em todos os sentidos. É onde a gente se sente à vontade para criar.
Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): Quais são os principais desafios que a Segredo Filmes enfrenta em todo o processo, desde a concepção das ideias até o lançamento dos projetos e a manutenção da produtora em atividade?
Lilih Curi: O maior desafio é o fomento contínuo. A gente só está conseguindo fazer cinco curtas agora, depois de Preciso Falar Sobre ELA. Só conseguimos por causa da Lei Paulo Gustavo ou da Lei Aldir Blanc. Ainda bem que saímos de um lugar de inexistência da cultura, e acreditamos que conseguiremos dar vazão aos projetos que temos. Existe uma demanda muito grande de todos os tipos de conteúdo, porém é complexo, já que ainda não temos acesso ao “privado”, vamos dizer assim. Muita gente depende dos editais públicos, municipais e federais.
Josi Varjão: Defendemos muito a questão das cotas para mulheres também. É importante, porque somos mais da metade da população, então não faz sentido as mulheres continuarem sendo subalternizadas na produção de conteúdos.
Lilih Curi: A gente cada vez mais quer esse lugar de direito. Precisamos que meninas e crianças se vejam espelhadas, e não apenas espelhadas nas relações de mulheres com homens.
Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): Na opinião de vocês, o audiovisual brasileiro está se encaminhando para um lugar mais diverso?
Josi Varjão: Acredito que sim. Aos poucos, já consigo enxergar algumas mudanças em relação aos últimos anos. Viemos de um lugar de inexistência nos últimos tempos. Hoje, estamos fazendo filme sem guerrilha.
Lilih Curi: Acredito que estamos no caminho. Está havendo um tempo de restauração de equipe, dos servidores públicos culturais e de tudo que a gente precisa tratar para que as políticas públicas aconteçam. A preocupação que a gente continua tendo, como uma produtora independente, é abrir espaço, mesmo com essas grandes empresas. Estamos lutando pela regulação do VOD e também pelas cotas para mulheres. A fatia desse grande queijo precisa ser melhor repartida. A indústria do audiovisual é riquíssima, gera emprego, então as pessoas precisam se acostumar com a ideia de que a cultura não é um luxo. Ela é tão importante quanto a educação. Um país sem cultura é um país sem identidade. Seguimos na luta.
Ana Beatriz Andrade (Oxente Pipoca): Para finalizarmos, gostaria que vocês indicassem filmes brasileiros, sendo eles curta ou longa-metragem, para a galera que acompanha o Oxente Pipoca.
Lilih Curi: Eu vou recomendar um filme que vai ficar dois anos no Globoplay, autorreferencial, que é o Preciso Falar Sobre ELA. Acho que é muito importante a gente levar adiante essa luta, essa pesquisa e a luta de pessoas que vivem com doenças raras.
Josi Varjão: Um que vou indicar é Homem com H, que fala sobre coisas que nos atravessam também. O Ney Matogrosso abriu caminhos para que as pessoas tivessem coragem de ser quem são.
Lilih Curi: Eu também gostaria de indicar Pedágio. Nos identificamos com essa cumplicidade de um casal que constrói personagens fortes, que tratam da LGBTfobia, algo que nos atravessa muito. Eu amo também Pacarrete, do Allan Deberton, que é um amigo nosso. É fantástico. A Edileuza Penha de Souza também fez filmes que foram premiados. Ela é nossa protagonista em Teresa e agora é cineasta com O Vão das Almas.
Josi Varjão: Sim, Mulheres de Barro também. Poderíamos ficar horas falando sobre amigos que fazem coisas muito interessantes. Marte Um… Enfim. São vários.





