Quando o sertão e o faroeste se unem

Foto: divulgação
Sob muitos aspectos, Cangaço Novo remonta a um subgênero muito particular do audiovisual brasileiro: o nordestern, ou “faroeste nordestino”, que une os tropos deste gênero tão estadunidense com os aspectos identitários do sertão do Nordeste. Saem os caubóis, xerifes e barões do petróleo, entram os cangaceiros, delegados e coronéis, além da inclusão de outros elementos particulares, como o messianismo, a vida no semiárido, a música “regional” e etc.
A série nos apresenta a Ubaldo (Allan Souza Lima), que cresceu em São Paulo com seu pai adotivo e tem quase nenhuma lembrança de sua infância. Diante do quadro crítico de saúde do pai e sem nenhuma perspectiva de futuro após perder o emprego, Ubaldo descobre possuir uma herança misteriosa no interior do Ceará e para lá viaja. É quando ele descobre não apenas que é filho biológico de um lendário bandido da região, Amaro Vaqueiro (também interpretado por Allan Souza Lima), mas que possui duas irmãs: Dinorah (Alice Carvalho), que sucedeu ao pai em seu bando nos assaltos pela região, e Dilvânia (Thainá Duarte), que junto à tia Zeza (Marcélia Cartaxo) lidera um culto religioso a Amaro.
O arco de Ubaldo não foge à chamada “jornada do herói” vista em tantas obras, especialmente na fantasia e na ficção científica. Sua gradual atração para o legado e herança de Amaro remonta ao que vemos acontecer com Michael Corleone na trilogia do O Poderoso Chefão, enquanto os aspectos mais mí(s)ticos parecem emprestados da trajetória de Luke Skywalker em Star Wars. Ainda que o roteiro tome certos atalhos e abuse de algumas conveniências para fazer o protagonista atender a esse chamado de ser o “escolhido” para suceder o pai, a força da atuação de Allan nos vende acertadamente esse arco, conforme vemos os diversos conflitos e a ambiguidade moral que cerca o personagem.
Essa ambiguidade moral, aliás, cai bem numa série que se propõe a “atualizar” o mito do cangaço. Em nenhum lugar isso é tão bem apresentado quanto na performance de Alice Carvalho como Dinorah. A atriz rouba a cena cada vez que aparece; se de início a personagem parece a típica “muié macho sim senhor” de uma nota só que integra o bando apenas por ser uma mulher masculinizada, a cada episódio vemos novas nuances que só existem graças ao talento de Alice.

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Da mesma forma, a série inicialmente se apresenta como uma obra de ação, calcada em sequências violentas e tensas de roubos a bancos (magistralmente filmadas pelos diretores Fábio Mendonça e Aly Muritiba). Contudo, não demora para ela desenhar um cenário mais complexo, atravessado pelas disputas políticas e de sangue entre os Vaqueiro e seus rivais, os Maleiros, os quais são personificados na figura do prefeito Gastão (Bruno Bellarmino, que parece um Milhem Cortaz mais jovem) e seu pai, o ex-senador Diocleciano (Luiz Carlos Vasconcelos).
A inserção desse núcleo político cai um pouco de paraquedas na história (bem como a introdução de Hermila Guedes como Leinneane Leite, uma velha aliada dos Vaqueiro), mas não tarda a se integrar organicamente à narrativa, inclusive através dos estonteantes flashbacks fotografados em preto-e-branco. É nítida a crescente de qualidade a partir da segunda metade da temporada, que adota um jogo de causas e consequências cada vez mais trágico para todos os envolvidos, enquanto os elementos temáticos do nordestern — a corrupção (especialmente moral), os jogos políticos, a violência nua e crua, a geografia do sertão e tanto mais — são postos em cena.
Pelo bem ou pelo mal, Cangaço Novo ainda remonta a esse Nordeste histórico alimentado através de tantas fontes (em especial o cinema) e, mesmo situando sua trama nos dias atuais, não perde de vista os tropos, clichês e estereótipos alimentados a respeito da região. Certamente ganhará pontos pelo esforço e atenção às representatividades (o elenco majoritariamente nordestino, as gravações in loco, a culinária e especificidades locais e regionais), mas pouco esforço faz para reverter a impressão desse Nordeste preso no tempo (apesar das mudanças tecnológicas e culturais) e brutalizado. Nesse Nordeste, seus habitantes locais são quase uma espécie de “bons selvagens” que precisam do homem civilizado, em particular o de São Paulo (Ubaldo), para lhes ensinar o necessário, ainda que esse homem civilizado reencontre a brutalidade dentro de si por ser da região. A própria ideia desses homens e mulheres cangaceiros é pouco perceptível do âmbito formal, sendo necessário recorrer a um discurso mais mastigado e didático (como na sequência de alucinação de Dinorah com Lampião e Maria Bonita no sexto episódio).
Onde a série verdadeiramente se destaca é nos seus excepcionais valores de produção, que tornam esse mundo tão vivo e palpável para nós — e sei que para muitos amigos nordestinos, especialmente os que cresceram nos sertões e interiores da região, há uma sensação de proximidade ainda maior. A trilha sonora, que traz nomes como Maria Bethânia, Milton Nascimento, Erasmo Carlos, Fagner, Jards Macalé, BaianaSystem e mais, é outro grande acerto, intensificando o teor emocional de diversas cenas, como os finais do quinto e oitavo episódios (a meu ver os dois pontos altos da série). E as sequências de ação — sejam os assaltos aos bancos, tiroteios e combates corporais — não deixam nada a desejar às produções estrangeiras, impactando-nos pela crueza e visceralidade, sem apelar a excessos, o que casa perfeitamente com o tom adotado pela obra.
É compreensível e justificada a aclamação que Cangaço Novo vem recebendo, levando em conta a invisibilidade que nossas séries nacionais possuem em relação às estrangeiras que consumimos. A série não é isenta de suas falhas — e como um pesquisador interessado em discussões acerca das representações do Nordeste, tenho meus incômodos com a perpetuação de certos estereótipos, ainda que a origem destes seja extrafílmica. Mas a potência dessa série é algo para ser reconhecido e valorizado, mostrando como possuímos obras tão valorosas em nosso cenário audiovisual e como o nordestern não é apenas algo totalmente nosso (numa verdadeira lição de antropofagia), como está mais vivo do que nunca.
Nota: 4/5
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