Entrevista | Corações Naufragados: nos bastidores de uma história sergipana
- Gabriella Ferreira

- há 3 dias
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O Oxente Pipoca esteve no set do longa roteirizado por Cacilda de Jesus e conversou sobre a construção do roteiro, os desafios da produção e a importância da produção para o estado

Ao entrar no Palácio Museu Olímpio Campos na última quarta-feira, 15, senti como se tivesse feito uma viagem no tempo e tivesse sido transportada para a década de 40. Mobília, vestidos e jornais antigos se misturavam com as câmeras, microfones e os mais diversos aparelhos necessários para que um filme ganhe vida. Era o décimo primeiro dia de gravação do longa Corações Naufragados e o Oxente Pipoca acompanhou, de forma exclusiva, um turno e um pouquinho do desenrolar dessa história.
A produção se inspira em fatos reais ocorridos há mais de oito décadas, quando a Segunda Guerra Mundial chegou à costa brasileira. Em agosto de 1942, o submarino alemão U-507 lançou uma série de ataques contra embarcações civis e militares entre Sergipe e Bahia, provocando a morte de mais de 550 pessoas e levando o Brasil a declarar guerra ao Eixo.
Em Corações Naufragados, Olivia Torres interpreta uma jovem jornalista que desafia as convenções da época ao revelar sua identidade após escrever sob pseudônimo masculino. Ela se envolve com o Capitão Francisco da Silva, vivido por William Nascimento — um oficial sergipano da Marinha e líder clandestino de um movimento antinazista. Juntos, os dois enfrentam o peso da censura, da repressão política e da tragédia que ceifou centenas de vidas na costa nordestina.

Sob o comando de Caco Souza, assistimos os personagens Almirante Camargo (Dalton Vigh) e Áurea Camargo (Mina Nercessian), pais da protagonista Lucinda (Olívia Torres), discutirem sobre a jovem, indignados com seu comportamento e sua “petulância” em escrever sobre a guerra e o nazismo. Em um certo momento, a jovem rebate dizendo: “Eu sou jornalista”.
Uma cena simples, mas repleta de significados dentro de uma trama idealizada pela sergipana Cacilda de Jesus, que conversou conosco durante as gravações e revelou que Corações Naufragados nasce através da memória da avó, uma pescadora de Indiaroba, que viveu de perto as consequências do torpedeamento do Baependi. Confira a entrevista para o Oxente Pipoca, na íntegra, abaixo:
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Primeiro parabéns! Você está roteirizado um trabalho que eu acho fundamental, não só pela importância histórica, mas também para que a própria população saiba o que aconteceu. A gente até tem uma noção, mas muita gente não conhece esse fato a fundo.
Você é historiadora, né? Então, primeiramente, queria que você falasse como foi para você juntar essas duas coisas: escrever um roteiro de um filme histórico e lidar com um episódio tão marcante.
Cacilda de Jesus: Primeiramente, obrigada, né? Vocês estarem aqui conosco no nosso set. Eu sou Cacilda de Jesus e hoje é um dia até especial, né? Hoje comemoramos o Dia do Professor e, além de cineasta, eu sou professora de História. E contar essa história tem muito a ver com a minha formação acadêmica, como também eu trago um pouco da memória da minha avó.
Minha avó, Ana do Nascimento. era pescadora, no povoado chamado Convento, em Indiaroba. Então, minha avó e meu avô pescavam no mangue seco, naquela região toda de mangue, e no dia 15 de agosto de 1942, eles estavam acampados lá.
Eles passavam 15 dias no mangue, pescavam peixe, salgavam e vendiam nas feiras de Indiaroba e Itabaiana. E numa dessas noites, eles dormiram e, quando acordaram, a praia estava tomada por destroços e corpos. Minha avó contava essa história para a gente. A gente passava férias na casa dela e via malas, cordas, pedaços de corda… então eram provas de que aquilo realmente aconteceu e que eles estavam lá naqueles fatídicos dias.
Ela sempre se emocionava. Ela dizia: 'Minha filha, parecia que o mundo tinha se acabado ali, porque era muita gente morta e poucos vivos.' Essa história sempre marcou a minha vida desde pequena.
Há 10 anos, tive a ideia de escrever um livro, um romance histórico, mas eu não tinha fonte. Aí eu conheci o professor Luiz Antônio Pinto Cruz, Luizão, que é o maior pesquisador do tema em Sergipe. Conversando com ele, eu disse: 'Meu Deus, eu tenho muita vontade de escrever um livro histórico a partir da sua pesquisa.'
Depois, resolvi fazer um documentário, que se chama Memórias de um Agosto Sangrento, e junto com o documentário surgiu a ideia de escrever um roteiro.

Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): E para você, como foi essa questão do desenvolvimento do roteiro, né? Eu vi que ele traz um fato histórico, mas também tem um pouco de ficção. Como foi amarrar essas duas coisas?
Cacilda de Jesus: Então, quando a gente fez o documentário, nós privilegiamos as memórias locais. A gente tinha uns 20 entrevistados, senhores e senhoras de 87 anos, porque há três anos atrás fez 80 anos dos fatos. Esse contato com as memórias dos idosos me ajudou muito a pensar na estruturação do roteiro. Mesmo sendo um filme de ficção, ele tem personagens reais.
Por exemplo, a minha avó tem um personagem que a representa: a história da Fátima, uma moça que espera o noivo. Ele vem no navio Aníbal Benévolo e, infelizmente, o navio é torpedeado e ele morre. É um filme de ficção, mas com todo um contexto histórico, porque a gente conta a história atentando para a amarração entre os fatos e a narrativa.
Usamos dois personagens principais: Francisco e Lucinda. Francisco é um marinheiro sergipano — muitos sergipanos trabalhavam na Marinha como forma de sustento. A Praia do Saco tinha muitos moradores que foram para a Marinha, e há também muitos japoneses na história da Marinha. A Lucinda é uma jornalista que mora no Rio; eles se encontram, se apaixonam, fogem em um dos navios, e acontece o torpedeamento.
Não é um processo fácil. É o meu primeiro roteiro de longa-metragem; passei dois anos escrevendo e reescrevendo. Muito do que está no roteiro vem das memórias que ouvimos nas entrevistas para produzir o documentário Memórias de um Agosto Sangrento.
O prazer de ser roteirista é imaginar a emoção que a sua história vai provocar. Para mim, esse projeto é como um filho. É muito especial porque está conectado com a história da minha família. Eu sei da importância da Praia do Saco e do povo da minha cidade, que recebeu os náufragos. O Hospital Amparo de Maria fez os primeiros atendimentos às vítimas da Segunda Guerra no Brasil — e isso não é pouca coisa.
Eu participei de vários editais e rodadas de negócios. Parecia impossível, porque fazer arte no Brasil não é fácil. Mas ganhamos o edital nacional, recebemos o recurso e, quando vi as primeiras cenas, chorei. É muita emoção. Agora fizemos uma foto com o elenco e penso: ‘Meu Deus, era só um sonho de 10 anos atrás e hoje estamos vendo tudo ganhando vida.’
Acompanho o projeto desde o nascedouro, do roteiro, do edital, e agora estamos nas filmagens. Os personagens que antes estavam na minha cabeça hoje estão vivos. É emocionante também ver o envolvimento do povo sergipano. Quando divulgamos a primeira matéria no O Globo, houve um rebuliço na cidade. Pessoas de todo o Brasil entram em contato com a gente: ‘Meu tio faleceu no navio’. Nossa atriz Mina, por exemplo, teve o tio-avô que morreu no Baependi.
Estar no set, ver todo o cenário, figurino, os atores se preparando… para mim é motivo de muito orgulho. Uma história sergipana sendo contada dessa forma é incrível.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): O nosso portal, Oxente Pipoca, fala muito sobre essa valorização do cinema nacional, do cinema nordestino e, com certeza, do cinema sergipano.
E eu queria que você falasse um pouquinho…você comentou da dificuldade de fazer arte no Brasil, né? A gente sabe, principalmente para quem está fora do eixo Rio–São Paulo. Eu queria que você terminasse sua fala falando um pouco sobre isso, sobre essa mensagem de esperança para muita gente que está começando a graduação, começando a trabalhar com cinema, para que saibam: é possível.
Cacilda de Jesus: Então, eu tenho tido a sorte de trabalhar em projetos importantes, né? E acabei adquirindo experiência de trabalhar com editais. A gente tem feito editais nacionais. No ano passado, concorremos ao Kikito de Ouro em Gramado com Velho Chico, a Alma do Povo Xokó, junto com a Michele, que está aqui e faz nosso still e assessoria de imprensa.
O que eu digo para esses jovens é: não desistam, né? Com a Lei Paulo Gustavo, teremos uma gama de projetos, uma produção incrível de curtas, médias e séries. Procurem fazer bons trabalhos, bons roteiros, projetos de qualidade. Eu quero muito contribuir com o cinema sergipano. Que Corações Naufragados, assim como Velho Chico, possa abrir portas. Foi emocionante pisar naquele tapete vermelho, um sonho realizado.
E eu quero que as pessoas pensem: Corações Naufragados não é apenas um filme da Cacilda de Jesus ou da WG Produções, mas sim um filme de Sergipe. Que sirva de referência e inspire outros a fazerem cinema. Se você tem um sonho de produzir um projeto cinematográfico, não desista. Lá na frente, vai dar certo.





