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Crítica | Hacks (4ª temporada)

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • há 3 dias
  • 4 min de leitura

Série retorna mais afiada do que nunca e mostra que, mesmo quando periga cair na repetição, se sobressai pela excelência do seu texto e de suas protagonistas.

Divulgação


Um dos meus tropos favoritos na TV é o de uma dupla de personagens cuja conexão transcende quaisquer aspectos relativos ao romance, amizade ou laços familiares. Talvez o melhor exemplo dessa dinâmica sejam Don Draper e Peggy Olson em Mad Men, mas acrescentaria também Syd e Carmy em O Urso ou Donna e Cameron em Halt and Catch Fire. A falta de um rótulo específico para definir a natureza da relação desses personagens pode soar um bait, mas a verdade é que se tratam de relações tão profundas e multifacetadas que é uma perda de tempo defini-las; muito melhor é acompanhar as nuances e progressões dela no decorrer dessas séries.


E, sem sombra de dúvidas, a relação construída entre Deborah Vance (Jean Smart) e Ava Daniels (Hannah Einbinder) em Hacks não apenas se enquadra nesse tropo, como pode ser o melhor exemplar disponível na TV atual. Ao longo das quatro temporadas, ambas já passaram por tantas etapas – do estranhamento inicial decorrente do choque de gerações, passando por uma crescente admiração mútua, aproximações e afastamentos, mágoas e reconciliações – que seria fácil dizer que por muitas vezes a série parecia apenas repetir os mesmos pontos de uma relação tão complexa e por vezes conturbada. Mas ainda que isso seja verdade em alguns aspectos, Hacks é inteligente e sagaz o suficiente para se renovar constantemente, explorando outros lados das personagens e do mundo que as cerca.


Afinal de contas, se há uma palavra que realmente define Hacks é “inteligência”. Junto com a finada The Other Two, ela provavelmente foi a melhor série a capturar o espírito da cultura e do entretenimento desta década. Nesta nova temporada, que gira principalmente em torno da produção do talk show de Deborah, são incontáveis referências e piadas, além de diversas participações especiais; porém, elas nunca soam uma sátira pela mera sátira, mas são enquadradas dentro da trama de maneira orgânica e coerente com o espírito da série. Mesmo quatro temporadas depois, o texto de Hacks segue afiadíssimo, mostrando mais uma vez porque ela é a melhor comédia da atualidade.


E, aliás, é refrescante ver uma série de comédia que não tem medo de ser comédia. Essa não é uma crítica a O Urso, outra das minhas séries favoritas da atualidade; mas a divulgação dela como uma comédia (quando na verdade é um drama de tons cômicos) é sintomática da maneira como nos últimos anos a TV e o streaming pareceu passar a ter vergonha do gênero, precisando pincelar (ou abundar) suas séries com tons de drama para validá-la perante as premiações. Mas Hacks não tem nenhuma vergonha de nos fazer rir, de colocar seus personagens em situações absurdas e cômicas, de entregar piadas e punchlines com um nível de precisão que nenhuma outra série atual consegue entregar.


E o melhor de tudo é que ela faz isso sem deixar de entregar o drama e a tragédia nos momentos que lhe cabem, e justamente por encontrar esse equilíbrio é que as cenas mais dramáticas e emotivas se tornam ainda mais pungentes. Se a temporada passada terminou com um soco no estômago ao mostrar o quão bem Ava havia aprendido com Deborah a conseguir as coisas que quer, neste quarto ano a série habilmente toma seu tempo para mostrar o quanto a relação das duas está fraturada a um ponto que parece irreversível. E justamente porque nos importamos tanto com essas personagens, porque as amamos (e sabemos que, apesar de tudo, elas se amam à sua maneira), sofremos ao as vermos nesse estado, ao ouvirmos um “você partiu meu coração” “você partiu meu coração primeiro” e sentir toda a honestidade e visceralidade dessas declarações. E da mesma forma, ver as maneiras pelas quais a temporada vai pavimentando o caminho de reconciliação até chegar naquele final emocionante do penúltimo episódio – sem negar quem essas duas mulheres são, suas nuances e contradições – é a prova máxima de uma série segura de si mesma e que sabe explorar seus pontos mais fortes.

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Isso, é claro, é ainda mais assegurado pelo talento da dupla principal. Jean Smart é o tipo de atriz que dispensa apresentações e que já cravou seu nome há muito tempo, e ainda sim sua Deborah parece ser o papel de sua vida. Ver a maneira como a personagem retrocede e evolui, como lida com os aspectos da vida contemporânea e se permite aprender – sem deixar de lado seu orgulho, sua acidez, suas falhas e força – é assistir um verdadeiro monumento em ação, e não há dúvidas de que ela já se tornou uma das protagonistas mais emblemáticas da TV neste século em grande parte graças ao talento de Smart, combinado com um texto tão bem-escrito quanto o da série. Já Hannah Einbinder, ao longo destas quatro temporadas, foi capaz de criar a millenial por excelência da televisão moderna, e a maneira como sua Ava consegue ser tão relacionável mesmo nos momentos mais absurdos (“eu não sou suicida, eu só quero morrer!”) – ao mesmo tempo em que a vemos ser forçada a amadurecer e endurecer sua casca, sem “perder a ternura” que a contrasta tão bem com Deborah, é também um deleite. Há um brilho especial na maneira como essa dinâmica veterana/novata, ou mentora/protegida, resvala na vida real, acrescentando novos tons às personagens e as enriquecendo ainda mais.


Mesmo com um último episódio que perde força em razão do anterior, soando mais como a première da (já confirmada) quinta temporada, ou da menor participação de alguns coadjuvantes – ainda que felizmente tenhamos o bastante do querido Jimmy (Paul W. Downs) e da maluca Kayla (Megan Stalter) –, Hacks entrega mais uma temporada irretocável que consolida sua já incontestável posição de melhor comédia da atualidade. Não há dúvidas de que Smart vem forte para o seu quarto Emmy pela série (e convenhamos, já mais do que passou na hora de Einbinder abocanhar o seu), mas prêmios são apenas uma parte do reconhecimento merecido que a série vem obtendo desde sua primeira temporada. Quando se tem um texto tão rico e habilidoso no tratamento com seus personagens – e quando se entende o quão importante é tratar a comédia como comédia – o resultado é uma obra-prima como Hacks. E o público agradece por isso.


Nota: 5/5

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