Entrevista | “A gente não é só dor”: Ísis Broken, Lourenzo Gabriel e Tainá Müller falam sobre Apolo
- Gabriella Ferreira

- 18 de nov.
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Documentário premiado no Festival do Rio discute a parentalidade e o afeto, com estreia marcada para 27 de novembro nos cinemas.

Apolo, que estreia nos cinemas no dia 27 de novembro, é daqueles filmes que chegam carregando verdade, delicadeza e uma força política que atravessa. O documentário acompanha a trajetória de Ísis Broken, Lourenzo Gabriel e do pequeno Apolo em meio a uma luta por direitos básicos, mas também por dignidade, arte e afeto. A obra venceu dois prêmios no Festival do Rio e conquistou o público pela forma sensível e inventiva como transforma uma experiência íntima em narrativa cinematográfica que marca a estreia na direção da atriz Tainá Müller.
Nesta entrevista ao Oxente Pipoca, Tainá Müller, Ísis e Lourenzo revisitam a origem do filme, o processo de criação e os desafios de registrar momentos tão pessoais diante das câmeras. Eles falam sobre representatividade, sobre Aracaju brilhando na tela e sobre o impacto de construir um documento que é ao mesmo tempo denúncia, poesia e álbum de bebê, um gesto político e amoroso que chega agora ao grande público. Confira a íntegra da entrevista abaixo:
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Assisti ao filme; não estava no Festival do Rio, mas ele chegou até mim e eu adorei. Queria dizer que é um prazer estar falando com vocês pessoalmente, especialmente com a Isis, que é minha conterrânea. Eu também falo aqui de Aracaju, então estou muito feliz de estar aqui com vocês.
Primeiro, eu queria saber como essa história se tornou um documentário. Li algumas entrevistas da Tainá em que ela comenta que se tocou pela trajetória de vocês depois das denúncias que começaram a surgir. Mas queria entender melhor como foi esse processo de deixar de ser apenas uma ajuda, um apoio naquele momento difícil, e se transformar em um filme. Qual foi o momento em que surgiu esse estalo de que isso deveria virar um documentário?
Tainá Müller: Então, Gabriella, eu sou jornalista de formação antes de ser atriz. Trabalhei em alguns lugares no audiovisual antes de atuar e sempre tive essa vontade, porque eu sempre amei documentário. Eu sou muito público de documentário, adoro mesmo. Às vezes, entre ver uma ficção e um documentário, eu prefiro o documentário, porque para mim aquela verdade ali não tem igual.
E quando me deparei com a história do Lourenzo, para além de ser uma história que estava me mobilizando como mãe, como cidadã, como aliada da causa, eu achei que seria muito interessante colocar isso na tela. Comecei a pesquisar, entrei no Instagram do Lourenzo e pensei: “Caramba, como assim eu não conhecia?”. Comecei a ouvir a música dele, entender sobre o que cantava, e percebi que havia algo muito forte ali de espiritualidade, desse desencaixe no mundo, mas que ele transformava em arte.
Aí veio a Isis. A Isis é essa artista que eu não conhecia e pensei: “Meu Deus, como eu não sabia da arte dela?”. É muito louco estar no Sudeste, e mesmo eu não sendo daqui, sendo do Sul, mas morando aqui há muito tempo, eu não conhecia os clipes da Isis. Fiquei maravilhada. “Meu Deus, que mulher é essa?”. E eles dois ainda lindos, interessantes, que falam bem. Eu pensei: essas pessoas precisam ser registradas. Não tem como dar errado colocar uma câmera neles e contar essa história.
Então foram esses dois pontos. Primeiro, ajudar na questão real, que era grave. Eles estavam passando por uma situação séria, com uma criança sem atendimento. Eu fiquei pensando em como poderia contribuir. Lembro que, na época, os dois eram artistas que estavam sem trabalho por causa da pandemia. Eu até fiz um pix, mas logo pensei: isso não vai ajudar em nada. Eu preciso de algo mais volumoso para realmente ajudar.
Depois de uma conversa com a Isis, que eu achei que tivesse durado uma hora e que ela disse ter durado três, a gente fechou tudo. Tivemos muita afinidade desde o começo. O Lourenzo eu conheci depois, mas também nos conectamos muito. E entendemos que a melhor forma de resolver as duas questões — registrar a história, porque eles já tinham essa vontade para evitar que acontecesse com outras pessoas, e também levantar um fundo para resolver a situação — seria transformar tudo em um documentário.
A solução foi correr atrás de amigos produtores, que no caso foram a Biónica, com Bianca Vilar, Fernando Fraiha e Karen, e a Capuri TV, com o Edu. Conseguimos levantar essa grana para ter uma justificativa institucional para ajudar e, ao mesmo tempo, documentar tudo. Então foi uma ação que tinha esses dois objetivos ao mesmo tempo.
Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Quando assisti ao filme, duas coisas me tocaram muito. Primeiro, quando a gente pensa em documentário, ele sai daquela narrativa tradicional. Esse filme parece quase uma carta, um álbum, e isso me tocou bastante. Acho que essa forma envolve a gente de um jeito muito profundo na história.
A outra coisa em que fiquei pensando é que a Isis e o Lourenzo já devem estar acostumados com câmeras, mas acredito que vocês não estavam acostumados a registrar momentos tão íntimos, momentos em que a gente normalmente não quer se expor. Por isso queria saber como foi para vocês ter essa presença tão forte das câmeras em situações tão pessoais. E também como foi rever tudo depois, com o filme já pronto, quatro anos depois. Imagino que tenha sido uma experiência completamente diferente.
Lourenzo Gabriel: Eu já digo de cara que foi super desconfortável ter as câmeras ali na minha cara quando eu acordava. Tinha coisa ali que foi muito real mesmo. Tem uma cena em que a Isis abre a janela e eu estou coberto, não queria levantar de jeito nenhum. Eu estava irritado, não queria câmera gravando. Mil hormônios acontecendo, várias situações. Mas foi necessário. Eu sabia que estava fazendo algo que, de alguma forma, teria um resultado, mesmo sem saber exatamente qual seria.
Depois, quando o filme ficou pronto e a gente assistiu, eu confesso que tinha muito receio de que fosse algo que me causasse muitos gatilhos, por tudo que eu passei. Claro que existem coisas que precisam ser mostradas, mas o filme acaba ficando leve. Eu consegui ter uma outra perspectiva sobre o que vivi. Então, por mais que tenha sido super difícil e estressante para mim durante o processo, foi algo muito necessário.
E a forma como foi narrado, como uma carta para o Apolo, torna tudo mais leve. Torna, como a Isis falou, os nossos corpos humanizados. Mostra que a gente tem família, que a gente tem pai, mãe, avó. E que a gente não é simplesmente dor, violência e tudo isso.
Ísis Broken: Uma coisa que eu gosto muito nesse formato de álbum de bebê é que realmente foi uma ideia da Tainá. Acho que ela pode até falar melhor de como essa ideia nasceu, mas aconteceu que ela ficou super nervosa para contar pra gente. Porque, assim, a gente tinha as imagens, mas ainda precisava entender qual seria o formato para mostrar tudo aquilo. Como editar, como construir. Ia ser aquele documentário padrão, tradicional? Sendo que a gente não é isso. E a nossa história também não estava nesse lugar, ela tinha muita potência artística.
O primeiro corte ficou muito preso a essa narrativa mais dura, mais maçante, contando a história de um jeito sem tanta conexão. Foi aí que a Tainá decidiu refazer tudo com outra perspectiva. E eu acho que isso acabou sendo um presente para a gente. Quando ela veio contar: “Vamos fazer assim”, a gente respondeu: “Não, super, é exatamente isso”. Era mesmo um filme para o Apolo.
E o Apolo amou. Na primeira exibição lá no Rio, ele chorou, ele se emocionou. Foi muito bonito ver uma criança de três anos reagindo à própria história desse jeito. Então essa visão da Tainá acabou sendo um presente para todos nós.
Tainá Müller: Eu fiquei muito feliz, só para complementar, porque quando o Apolo se emocionou eu estava do lado deles e, gente, ele se emocionou de verdade. Não era choro de criança. Ele tem três anos e realmente se emocionou, daquele jeito de fazer a lagriminha e secar. Depois eu até perguntei: “Apolo, você chorou?”. Aí o Lourenzo perguntou: “Você chorou de tristeza, filho?”. E ele respondeu: “Não, chorei de alegria”.

Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): A Aianne entrevistou vocês e ela estava lá no festival e ela falou: “Nossa, gente, ele é um encanto. Ele conquistou todo mundo lá e todo mundo saiu apaixonado por ele”. Acho que isso vem muito do que vocês estão falando, e eu também senti isso assistindo. É algo muito potente no documentário: quando ele dá certo, quando o filme funciona, todo mundo sai encantado. E quando vimos no Festival do Rio, eu fiquei ainda mais encantada com ele. Muito lindo.
E Aracaju ficou tão bonito no filme, um espetáculo. Foi muito especial ver a cidade na tela desse jeito. E eu até queria perguntar isso para você, porque você sair daqui de Aracaju… inclusive vale destacar que acompanho sua carreira há bastante tempo; assisti show seu em 2019, tem muito tempo, lá no FASC. Eu estava lá. Então, imagino que ocupar esses espaços seja algo muito especial. A gente sente isso aqui também: quando pessoas daqui ganham chance de ocupar lugares que geralmente são ocupados por pessoas do Sudeste.
E eu imagino que, para você, com toda essa bagagem como artista e também como pessoa trans, isso tenha um peso ainda maior. Queria que você falasse um pouquinho sobre isso. E também queria que vocês comentassem como foi a recepção no Festival do Rio, já que o filme saiu premiado com dois prêmios.
Ísis Broken: Eu sou de Sergipe. Sergipe é o melhor estado do país. Fazer arte em Sergipe é extremamente precário, é muito difícil. Quando eu falei que queria ser artista, as pessoas diziam: “Você vai morrer de fome”. Eu trabalhava no tribunal, era concursada, e decidi abandonar tudo aquilo para virar artista.
Foi nesse momento que lancei o clipe de Clã. Eu lembro que o clipe foi algo que realmente revolucionou Sergipe de uma forma muito absurda. Existe uma produção audiovisual de videoclipes em Sergipe antes e depois de Clã. É muito claro isso, sabe?
Então eu sempre fiquei muito nesse lugar de vanguarda em Sergipe, de ser a primeira artista LGBT a ter um posicionamento nacional. Para mim é muito gratificante um corpo trans, travesti, estar à frente disso. Estar numa novela da Rede Globo, tendo uma personagem relevante, com história e cenário próprios, e que não era uma mulher trans. Isso também é muito revolucionário. No horário das seis, ainda tendo um par romântico.
Tudo o que eu me proponho a fazer, eu tento levar Sergipe e Aracaju junto comigo. É um pouco difícil, claro, mas por exemplo: eu mantive o meu sotaque sergipano na novela. Até acentuei um pouco mais. E o sotaque nem era para ser de Sergipe. Então eu tento sempre trazer um pouco de quem eu sou, de toda a minha bagagem: minha mãe professora, meu pai gráfico, meu avô violeiro, repentista.
Para mim, é muito bonito ver tudo isso acontecendo. Eu fiquei muito chocada no Festival do Rio, porque nas primeiras categorias eu achei que a gente ia ganhar o Prêmio Fênix e não ganhamos. Aí pensei: “Caraca, então a gente não vai ganhar nada agora”. Fiquei bem triste. Quando anunciaram o primeiro prêmio, de Melhor Trilha Sonora, eu pensei: “É… deram um prêmio de consolação para a gente. Obrigadão, vamos aí. Só para não passar batido”.
Mas quando eles falaram que o Melhor Documentário era Apolo, eu fiquei em choque. Eu olhei para a Tainá e falei: “Como assim?”. Porque a gente estava concorrendo com a elite ali, com gigantes, com muita gente talentosa concorrendo com a gente. Tinham outros documentários lindos, enormes, com muito mais dinheiro, muito mais investimento, muito mais recurso.
E aí entra esse link com Aracaju, com esse lugar da precariedade. Eu fiz um videoclipe com 1.500 reais e ele ganhou o prêmio de melhor videoclipe do país no Festival de Cinema de Vitória. Então não é sobre ter grana, é sobre ter uma boa história e saber como contar essa história. É sobre criatividade.
Tainá Müller: Acho que é importante também ressaltar que o Lino Profeta fez essa trilha belíssima, mas a trilha também tem música da Isis e do Lourenzo. Lá atrás eu pensei: poxa, isso aqui é uma história audiovisual que já carrega tudo isso, porque já tem trilha, eles cantam, isso faz parte da narrativa.
E a gente ainda tem a Xênia França encerrando o filme. Tem também o Dharma Lovers, que é da minha cidade, e aí eu botei a minha Porto Alegre ali num cantinho, também.
Ísis Broken: O convite da Tiê, que gravou para o filme, foi muito especial. E foi lindo como tudo aconteceu. Eu já falava desse documentário fazia tempo e dizia para ela: “A gente tem que ter uma música sua no meu documentário, por favor”. Mas tinha uma questão da gravadora, porque ela era da Warner.
Um dia, fomos participar de um programa na Rádio Brasil aqui em São Paulo. Eu era entrevistada primeiro, e depois ela chegou. A gente acabou se encontrando no mesmo dia. Ela virou para mim e falou: “Amiga, tenho uma novidade para te contar”. Disse que tinha conversado com o advogado dela e descoberto que, depois de sete anos de um fonograma, ela poderia regravar e ser dona da própria música. Então ela disse: “Eu consigo te dar a minha música para colocar no filme”.
Tainá Müller: E aí vira essa trilha maravilhosa do filme que, sinceramente, mereceu muito esse prêmio. E é muito legal porque essa ideia do álbum de bebê não é só um álbum visual, é quase um álbum musical também. Tem as músicas de “papai e mamãe”, sabe? Isso é muito especial para o Apolo, porque ele vai poder ver e ouvir o que os pais dele estavam cantando naquela época.
Gabriella Ferreira: Minha última pergunta, na verdade, nem é exatamente uma pergunta. Eu faço isso com todo mundo que entrevisto aqui no Oxente. Eu sempre peço uma dica de filme, documentário ou série brasileira que inspire vocês de alguma forma.
Pode ser algo pessoal, algo que marcou a trajetória de cada um, ou até alguma obra que tenha servido de referência enquanto vocês faziam o documentário. É totalmente livre. Eu peço sempre essa indicação para todo mundo.
Ísis Broken: O primeiro que eu indico é o da Linn da Quebrada, o Pajubá. Eu acho que tem várias referências ali que a gente trouxe, especialmente nessa forma de contar a parte mais espiritual e mais poética. Vem muito do Pajubá da Linn. Inclusive, ela também está no filme, porque eu tenho um posterzinho dela no meu quarto. O próprio filme já entrega ali a dica da referência, de onde muita coisa foi tirada.
Outra referência para mim é Corpo Elétrico, que inclusive os diretores também ganharam lá no Festival do Rio.
Lourenzo Gabriel: E aí, eu acho que a falta de referência também nos levou a fazer o filme. Essa ausência está aí, presente, sabe? Foi justamente por não encontrarmos essas histórias que sentimos que precisávamos contar a nossa.
Tainá Müller: Tava pensando… eu sou muito fã de documentário. E tem um documentário brasileiro que me veio na cabeça, que não tem nada a ver com o nosso, mas que, quando eu assisti, há muitos anos, eu falei: “Nossa…”. Fiquei muito impactada. Foi Estamira, do Marcos Prado. Nossa, Estamira! Vocês já assistiram esse documentário? Gente, é uma coisa que eu acho que todo mundo tem que assistir. A Estamira… poxa, que grande personagem. E a forma como ele consegue contar aquela história, que na verdade é uma história de dor, mas ele traz ela pra uma luz, pra um negócio que a gente fica babando pela Estamira, sabe? Como uma filósofa, como uma pessoa que reinventa a vida dela ali, de um jeito muito… enfim, muito forte.
Ísis Broken: Também tem Divinas Divas, né? Que é da Biônica, da nossa produtora. É um super documentário LGBT, de arte, sobre as nossas ancestrais, principalmente da comunidade trans, das transformistas ali do Rio.





