Entrevista | Lula Oliveira fala sobre longa baiano “A Matriarca”
- Caio Augusto
- 28 de mai.
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, o diretor falou como o filme reflete sua vivência e memória afetiva da região, e aponta dificuldades do setor audiovisual.

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O longa-metragem A Matriarca, dirigido pelo cineasta baiano Lula Oliveira, estreia nesta quinta-feira (29/05) nas salas de cinemas de Salvador. A Matriarca explora a cultura do interior da Bahia, retratando manifestações tradicionais como Os Caretas, o Congado de Cairu e os Zambiapungas de Nilo Peçanha, com paisagens e arquitetura colonial como cenário. A história acompanha uma família que se reúne na fictícia cidade de Itabaína para celebrar os 90 anos da matriarca, mas a festa se transforma em tensão e revelações após sua morte inesperada, trazendo à tona segredos e conflitos entre os membros afastados.
O Oxente Pipoca entrevistou Lula Oliveira, que compartilhou como seu filme, inspirado pelas manifestações culturais e pelo ambiente do Baixo Sul da Bahia, reflete sua vivência e memória afetiva da região, especialmente a história matriarcal de sua família em Valença. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Caio Augusto (Oxente Pipoca): Bom, o filme tem uma coisa em que ele integra manifestações culturais. Por exemplo, tem a questão dos Caretas, que eu tenho uma certa familiaridade, porque aqui no agreste sergipano a gente também possui essa manifestação cultural. E você também acaba trazendo Os Congadeiros e os os Zambapiangas pro filme. Minha dúvida é se houve um trabalho de pesquisa para trazer essas representações para a narrativa do filme.
Lula Oliveira: Cara, assim olha, eu sou filho daquela região do Baixo Sul da Bahia, né? Eu nasci em Salvador, mas fui criado no Baixo Sul e ali em Valença particularmente, que é um um dos municípios mais potentes ali da região, economicamente falando. E o Baixo Sul da Bahia tem uma importância muito grande no processo da formação civilizatória do Brasil, por causa do processo de chegada dos portugueses, quando eles vieram à costa de Porto Seguro. É uma região que se vê muito ocupada pela costa toda por tribos indígenas, os tupinambás, os tamoios, e você vê no povo realmente uma característica muito misturada assim, como negros de traços finos.
E então eu vivi isso desde minha infância, isso tá na minha mente no processo do imaginário mesmo assim. Então, não houve uma pesquisa propriamente dita para agregar essas manifestações culturais folclóricas ao filme. Acho que o filme acabou trazendo essas manifestações para ele, porque em algum momento do processo criativo do roteiro, quando a gente quis representar o processo da morte da matriarca, porque ela segue seu velório, me veio esse insight de trazer e agregar as manifestações culturais numa simbologia de uma passagem, um rito de passagem entre a vida terrena e a vida que se constitui pós-morte. Mas o cortejo em si, ele passa daquele entorno que na verdade representa um rito de passagem usando a metáfora dessas manifestações culturais. Então foi a metáfora da passagem no sentido de fazer com que aquelas manifestações representassem isso.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): Você falou que foi filmado no Baixo Sul baiano, e isso me remete a questão das escolhas das locações. Se a ideia surgiu desde o argumento ou se foi trabalhado depois, porque eu percebo no filme que tem uma junção da arquitetura colonial com a presença dos manguezais, como a região mais praiana e também dos rios, e como isso acaba de certa forma sendo transposto assim para os personagens, na forma que que as intrigas da família ali funcionam e como eles funcionam dentro desses espaços. Como foi essa escolha da locação e também como foi o trabalho de fotografia, e de direção de arte também de fazer esses contrastes?
Lula Oliveira: Pra entender isso, tem que dar um passo atrás. Como disse, minha família é dessa região. Nasci em Salvador, mas fui criado em Valença com minha avó. Quando ela faleceu, eu tinha uns 19 anos e ainda não pensava em cinema. Foi um velório típico do interior, na casa das pessoas. Pela primeira vez tive contato físico com um corpo morto, o que me marcou profundamente e me fez refletir por anos sobre vida e morte, sem base teórica, mas de forma intensa.
Anos depois, já na faculdade, assisti ao filme Festa em Família do Thomas Vintberg, que fala sobre uma família patriarcal, e percebi que poderia criar algo sobre a minha, que era matriarcal. Minha avó teve dois casamentos, criou 10 filhos sozinha, era dona do primeiro hotel de Valença, e sofreu muito preconceito. Era uma mulher à frente do seu tempo, com acesso à informação e muito respeitada. O nome do hotel era Hotel Universal. O velório dela foi muito marcante, com padre, pastor, pai de santo, gente cobrando dinheiro no caixão, bêbados… tudo isso construiu o imaginário do filme. Em 2012, escrevemos o roteiro, e só em 2017 conseguimos o edital para filmar. Sugeriram outras cidades, mas insisti em filmar em Valença. O lugar tem uma arquitetura colonial preservada, natureza e uma mistura de povos única.
Com R$ 1.200.000 do edital e mais R$ 300.000 depois, conseguimos filmar, mesmo com os desafios da pandemia. Como tudo estava parado, conseguimos negociar bons preços com hoteis e alimentação. Levamos cerca de 100 pessoas, incluindo 20 atores, e ocupamos dois hoteis próximos da locação, o que deu conforto para todos. O filme ajudou a movimentar a economia local. A escolha do local se impôs pela própria origem da ideia, um velório em Valença, com essa estética matriarcal, marcada pelo abandono e pela luta das mulheres. A estética do filme nasce da ideia. Poderia ser filmado em qualquer lugar, mas o desafio é contar uma história universal a partir do nosso território. É o cinema de trincheira. Como artista, sempre vou defender meu território, contar histórias profundas a partir das minhas raízes.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): O filme recebeu menções no Festival do Cinema Brasileiro de Los Angeles e também já percorreu outros festivais internacionais, certo? E como você mesmo falou, é um filme que traz temas universais e portanto, possui realmente essa grande potência de trazer o território e de levar a Bahia para diferentes telas, diferentes locais. Como você enxerga a recepção da obra fora do Brasil e o que isso representa para o cinema baiano?
Lula Oliveira: O filme teve pouca seleção em festivais no Brasil, o que gerou uma certa frustração. Mas foi exibido em Los Angeles, na Colômbia, e em cidades como Valença, Cairu, Nilo Peçanha e Salvador, graças a um recurso de finalização cuja contrapartida era exibir o filme. A ideia da produção foi exibi-lo nos locais onde foi filmado. Ele também passou por festivais e mostras no interior da Bahia.
Em todos esses lugares, independentemente da classe social ou do nível de escolaridade do público, desde marisqueiras até estrangeiros e brasileiros de fora da Bahia, o filme teve boa recepção. Todos se identificaram com o tema central: a família, vista como núcleo da micropolítica, onde tudo começa. Os conflitos da vida aumentam à medida que nos afastamos desse núcleo. Por isso, o filme ressoa com todos, pois toda família tem segredos que se resolvem internamente, na mesa de almoço ou jantar, não nas ruas.
Esse aspecto dá ao filme uma comunicabilidade universal. Com toda autocrítica que a idade já me permite ter, eu falo que ele se comunica bem com públicos diversos. A reflexão que o filme propõe gira em torno da família, dos segredos e de como resolvemos nossas questões em casa, independentemente da classe social ou origem. Escancaramos isso nessa era bolsonarista de uma forma muito cruel, mas que foi sempre um fator de existência de toda a estrutura nuclear da formação do povo brasileiro em qualquer classe econômica, social. Aqui a gente percebe que o bicho pega, seja rico, seja pobre, seja branco, seja negro, seja indígena, seja o que for, o bicho pega e ali a as coisas se resolvem internamente ali para que quando for para a rua as coisas não se exponham.

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Caio Augusto (Oxente Pipoca): E acho legal isso de você realmente devolver o filme para o povo, né? Trazer de volta o filme para as pessoas e realmente isso é essencial.
Lula Oliveira: Cara, eu penso muito nisso: nossos filmes brasileiros são feitos com dinheiro público, de impostos. Então, o filme é meu, mas também é do povo. Claro que eu tenho um tempo de entrar no mercado, de produzir e tudo mais, mas não abro mão de tornar esse filme público. Isso gera polêmica, tem gente que acha que, por eu ter ganhado o edital, o filme é uma propriedade privada. Eu entendo que ele tem essa condução autoral, mas é um filme do povo. Acho que todos esses filmes deveriam estar numa plataforma pública, sem precisar de autorização. Ganhou grana da Ancine, do MinC? Tinha que ter uma cláusula no edital dizendo que, depois de um ou dois anos de comercialização, o filme vai para o estado, para a sociedade brasileira, que pode fazer o que quiser com esse conteúdo. Muita gente discorda, acha que é propriedade privada. Eu acho que é um pouco privado, mas muito mais público do que privado.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): A gente costuma pedir que o entrevistado indique filmes brasileiros ou seus favoritos para o público assistir. Eu até reparei que, em um dos barcos do filme, está escrito "Limite", o que me remete ao filme Limite, do Mário Peixoto. Então, fica à vontade para indicar para o público os filmes que quiser.
Lula Oliveira: Eu achei essa ideia incrível, foi do diretor de arte. Ele começou a mapear histórias da cultura brasileira nos objetos de cena. No barco tem um filme de Fellini, na canoa tem Limite, na estante da sala tem Sargento Getúlio e no barco maior tem Barravento. Semioticamente, isso vai construindo sentidos. Vou indicar dois filmes que influenciaram muito a construção da matriarca: Festa em Família, do Dogma 95, escrito e dirigido por Thomas Vintberg, e Eles Não Usam Black Tie, com Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro, que retrata uma família em conflito no contexto da ditadura militar. Esses filmes impactaram diretamente o processo criativo da matriarca e ajudam a entender o diálogo que construímos ao longo do filme.
Por fim, Lula Oliveira aponta sobre os problemas de distribuição do cinema brasileiro:
Lula Oliveira: E outra reflexão que eu quero trocar com você: são 10 anos para fazer um filme. Isso não pode ser saudável na vida de ninguém. A galera bate palma, fala que é sucesso, mas eu digo que é um fracasso, um filme levar 10 anos para ser feito é um fracasso da política e da nossa vida. Dos 40 aos 50 faço um filme, dos 50 aos 60 outro, e depois eu morro. Nem consigo exercitar criticamente o que fiz, o que errei, o que poderia melhorar entre roteiro e direção. Estou falando de mim, mas isso diz respeito ao cenário. Esse sucesso e fracasso não é só meu, é do cinema brasileiro como um todo. Um, dois, três brilham, mas tem um universo com potência gigante que não vai para lugar nenhum. Eu me sinto privilegiado por conseguir lançar o filme, mas quantos filmes não conseguem nem chegar à sala de cinema? Estar na sala já é uma singularidade nesse cenário. Imagine os que não chegam nem na sala da cidade onde foram feitos, quanto mais do Brasil.