Entrevista | “O cinema já acabou duas vezes”: Jorge Furtado comenta resistência do audiovisual brasileiro
- Vinicius Oliveira
- 24 de mai.
- 6 min de leitura
Atualizado: 25 de mai.
Em entrevista ao Oxente Pipoca, o diretor comentou das inspirações e da relevância do longa, que será relançado no dia 29 junto com seu curta-metragem “Ilha das Flores” pela Vitrine Filmes.

Divulgação
Lançado em 2007, o longa-metragem Saneamento Básico, o Filme, dirigido por Jorge Furtado, ganhará a partir do dia 29 um relançamento especial nos cinemas. A obra é estrelada por Fernanda Torres, Wagner Moura, Camila Pitanga, Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Paulo José e Tonico Pereira, e segue um grupo de moradores de uma pequena cidade da Serra Gaúcha que, na tentativa de resolver o problema de uma fossa a céu aberto que empesteia o ambiente, decidem usar uma verba de 10 mil reais da prefeitura disponibilizada pelo governo federal para gravar um filme de ficção que aborde o problema.
O relançamento de Saneamento Básico, o Filme ocorre em conjunto com o do curta-metragem Ilha das Flores (1989), também dirigido por Jorge Furtado, e ambos os filmes serão exibidos com cópias restauradas em 4k pela Vitrine Filmes. Segundo a distribuidora, a iniciativa visa resgatar e valorizar o patrimônio audiovisual do país, permitindo que novas gerações tenham acesso a filmes fundamentais da cinematografia brasileira no formato original para o qual foram concebidos: o cinema.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Jorge Furtado para falar sobre as inspirações que o ajudaram a fazer o filme, bem como sua relevância quase 20 anos após o lançamento original e a importância de se assisti-lo no cinema. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Uma das melhores coisas de “Saneamento Básico, O Filme” é ver esses personagens que não têm conhecimento nenhum sobre cinema tendo de fazer um filme. Mas eu queria saber: quais obras te inspiraram? Porque é nítido como “O Monstro do Fosso” tem essa coisa meio de filme B de ficção científica dos anos 50, ou até de slasher, então queria saber quais foram suas principais referências para fazer esse “filme dentro do filme” tão autenticamente nacional.
Jorge Furtado: É interessante porque a inspiração de um filme é sempre uma pergunta que tu faz para ti mesmo e que tu tenta responder. E a pergunta que eu e fiz para mim mesmo era: um país como o Brasil, com tanta desigualdade, com injustiça social terrível, o mais desigual do planeta, tem o direito de usar dinheiro público para fazer cinema? E a resposta que o filme dá é: sim, tem o direito, mais que isso, tem a obrigação, porque numa sociedade tem que se construir junto, saúde, educação, segurança, balé, ópera, livraria, música, tudo tem que andar junto. Não dá para escolher.
Então, são personagens que, como tu dissesse, não conhecem o cinema e só querem o dinheiro, mas acabam se envolvendo, se apaixonando e entendendo o poder de uma música. Ela [a personagem de Fernanda Torres] gasta uma grana de não sei quantos tijolos para comprar Billie Holiday, porque Billie Holiday vale muitos tijolos. E quanto à questão do monstro, o personagem do Wagner [Moura], Joaquim, é o Arlequim. Então, quando ele resolve ajudar a mulher dele para fazer uma história, pensa numa história de monstro, que certamente deve ter a ver com algum gibi que leu, e é infantil, mas funciona.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Estamos aqui quase 20 anos depois do lançamento original do filme, e vemos tantas pessoas criticando os investimentos em cultura. De que forma “Saneamento Básico, o Filme” ajuda a dialogar com esse cenário, no sentido de mostrar que a cultura é tão válida de ser investida quanto outras áreas da sociedade brasileira?
Jorge Furtado: Eu tô fazendo cinema há 41 anos e nesse período o cinema já acabou pelo menos duas vezes, primeiro com o Collor, depois agora recentemente. E ele acaba e recomeça, acaba e recomeça e claro que não vai acabar. Os governantes que tentaram acabar estão com problemas de ficar fora da cadeia – um já foi preso, o outro espero que seja. E o cinema brasileiro tá aí de novo e sempre vai continuar, porque tem uma galera querendo fazer filme sempre, novos, jovens, e de algum jeito eles vão fazer.
O filme foi feito inspirado também num projeto que, naquele momento, era Muitos Brasis ou Diferentes Brasis, não sei exatamente o título do projeto, mas era uma verba para produção de cinema em cidades de até 20.000 habitantes. Quando esse projeto saiu, eu tava em Santa Maria, no Festival de Cinema, e o pessoal de Santa Maria, que é uma cidade que tem quase, sei lá, 200.000 habitantes, disse assim: "Nós vamos ter que nos mudar para a cidade mínima para poder fazer filme agora". E então eu fiquei pensando: como é que uma cidade tão pequena vai pensar um filme, fazer um filme?

Divulgação
E tem uma outra coisa também, que só tem a ver comigo, mas eu tive uma longa obsessão – tenho ainda – por Shakespeare. Sempre estudei muito, gosto de Shakespeare. E chegou uma hora que eu meio que pensei assim: "Não, é possível, o teatro existiu antes de Shakespeare, o que que tinha antes?” E aí eu fui estudar como é a Commedia Dell’Arte, que sustentou a dramaturgia e o teatro por 300 anos, desde a volta do teatro na Renascença até o século XVII. E a Commedia Dell’Arte contou todas as histórias com oito personagens, então, peguei aqueles personagens, que são italianos, vou para uma cidade italiana, no interior do Sul, boto música italiana e vou fazer o Arlequim, a Mirandolina, etc., contar uma história com eles.
A Marina [Fernanda Torres] quer provar para o pai que ela é talentosa e pode fazer o que um filho, um homem, não faria. A personagem é muito inspirada na Mirandolina, da Locandiera, do [Carlo] Goldoni, que marcou o fim da Commedia Dell’Arte. O Joaquim é meio Arlequim, o Fabrício [Bruno Garcia] e a Silene [Camila Pitanga] são os namorados bonitos, têm o Antônio [Tonico Pereira] e Otaviano [Paulo José], um é de Bolonha e gosta de dinheiro e o outro é de Veneza e é culto. Então os personagens são arquetípicos, eles têm 300 anos de existência.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Agora eu queria saber de como você está se sentindo vendo o filme voltar aos cinemas quase 20 anos após seu lançamento original, junto com “Ilha das Flores”. O que levou a esse relançamento de ambos os filmes?
Jorge Furtado: A escolha foi da Vitrine [Filmes], esse é um projeto da Vitrine de relançamento de filmes brasileiros, eles nos procuraram no final do ano passado. Agora parece que é tudo feito meio em função do Oscar e da Fernanda, mas não, no final do ano passado eles já tinham nos procurado para fazer o relançamento. Agora melhorou, porque eu vejo no Letterboxd os americanos entrando para ver o filme para saber quem é essa Fernanda Torres e o que ela já fez, e se espanta ao ver que ela é comediante também, é engraçado.
E tô achando muito bom o filme voltar para o cinema em 4K. É diferente de ver um filme numa sala de cinema, né? É mais transformador assim, porque tu não tá com o controle remoto na mão. O filme tem um tempo, tu te comove com o silêncio alheio e com a risada alheia também. Então, esse estado de cinema é uma experiência muito rica e transformadora que a minha geração viveu muito. Eu ia cinema quase todo dia, uma época. E hoje as pessoas pensam que ver um filme em qualquer lugar é a mesma coisa. Não é. Lawrence da Arábia no celular não é a mesma coisa do que numa sala.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Para finalizar, nós do Oxente Pipoca sempre gostamos de pedir aos nossos entrevistados que indiquem filmes nacionais que achem que o público deva assistir. Então quais seriam suas indicações para o nosso público?
Jorge Furtado: Gostaria de indicar sem dúvida o meu filme e da Yasmin Thayná, que é o Virgínia e Adelaide, que é um filme que eu tenho o maior prazer e orgulho de ter feito. Ele conta a história de duas mulheres absurdas, a Virgínia Bicudo, primeira psicanalista brasileira, uma mulher negra que nos anos 30 enfrentou todo tipo de preconceito para se tornar uma grande cientista, e a Adelaide Koch, que é uma médica judia que fugiu do Holocausto, da Alemanha nazista para vir para São Paulo e fundar a psicanálise aqui. Então esse filme tá nos cinemas e vejam lá.
Depois tem um filme que eu não vi, só vi o trailer e ouvi falar, mas eu vou essa semana, se puder, que é o Manas, que tá no cinema e deve ser visto. Eu vi e gostei muito do Homem com H, uma direção absurda do Esmir [Filho], montagem do Germano [de Oliveira], trabalho do Jesuíta [Barbosa], vale muito o filme. Eu acho que as minhas indicações são essas.