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Entrevista | “Pode se encontrar a resposta nos outros”: Valter Hugo Mãe e Miguel Gonçalves Mendes falam sobre “De Lugar Nenhum” (Mostra de SP 2025)

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • 30 de out.
  • 8 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, escritor e diretor portugueses discutiram a relação da literatura com alteridade e a exibição do documentário em São Paulo

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Foto: Mariane Morisawa


Poucas figuras podem se gabar de cultivar uma relação tão próxima com a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo neste ano como Valter Hugo Mãe. O escritor e artista português, além de responsável pela arte que estampa a 49ª edição da Mostra, também tem um de seus livros, O Filho de Mil Homens, adaptado em forma de filme (que você pode ler a crítica aqui), além de ser protagonista do documentário De Lugar Nenhum, dirigido pelo seu conterrâneo Miguel Gonçalves Mendes. Parte do projeto O Sentido da Vida, dedicado a acompanhar diversas figuras contemporâneas, o filme acompanha a jornada de Hugo Mãe pelo mundo (passando pela Islândia, Colômbia, Brasil, Macau e Portugal) conforme concebe, escreve e publica seu sexto romance, A Desumanização.


O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Valter Hugo Mãe e Miguel Gonçalves Mendes durante a Mostra. A dupla discutiu o processo do documentário, bem como do romance, além de comentarem sobre a relação próxima que ambos têm com São Paulo, especialmente no contexto de lançamento do longa. Você pode acompanhar a entrevista na íntegra abaixo:


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Miguel, você tem feito esse projeto O Sentido da Vida, sobre diversas figuras contemporâneas. Como você as escolhe para serem personagens dos seus documentários e em que medida Valter se enquadra no que você busca retratar em seu projeto?


Miguel Gonçalves Mendes: A minha ideia era que o projeto fosse marcar o tempo deste mundo esquizofrênico que a gente tá vivendo e como podemos melhorar e lutar por um mundo um pouco melhor. Então, a ideia era ter, através de cada personagem, refletir a humanidade, e por isso é que temos a literatura, a política, a justiça, a vida sexual; portanto, é uma gama de personagens que representam cada uma destas áreas.


No caso do Valter, a coisa foi um pouco diferente, porque eu tinha lido um livro dele, O Apocalipse dos Trabalhadores, que é um livro que eu amo, e achei que ele era pessoa ideal para eu ter na literatura. E aí então fui decido a acompanhar o processo de escrita de A Desumanização, que era o livro que o Valter estava desenvolvendo na época. E fomos ver as primeiras viagens dele fazendo pesquisa na Islândia, depois acompanhando na Colômbia, no Brasil, Macau, enfim. São várias geografias do mundo em que nós vemos o que é a vida de um escritor em trânsito, que tem que também estar a escrever um livro e lidar também com as questões das exigências sociais, palestras e de autógrafos e de relação com os fãs.


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Valter, o filme trata muito do seu processo de escrita, especialmente considerando que sua obra é muito voltada a esse olhar para o Outro e estamos vendo um livro que se passa em um país que não é o seu, protagonizado por uma personagem que não necessariamente é você. Eu também sou escritor e sei que cada um tem seu próprio processo, mas o que você consideraria serem pontos principais do seu e que você sugeriria a outros escritores, especialmente em relação a esse olhar de alteridade que muitas vezes buscamos assumir?

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Foto: Reprodução


Valter Hugo Mãe: Eu estou convencido de que se por natureza você não encontrar resposta dentro de você mesmo, pode se encontrar essa resposta nos outros. A nossa necessidade de buscar uma resposta significa imediatamente que a gente não encontrou dentro, que na nossa intimidade ela não nos foi oferecida. Ela pode estar dentro de nós de alguma forma, e tem de estar. Porque ela só vai ser uma resposta para nós se competir à nossa natureza. Mas se você procura essa resposta, é porque por natureza ou por inerência você não encontrou em si. Então, a única hipótese é encontrar nos outros.


A única hipótese é você criar processos de empatia e de identificação no que os outros são e no que os outros conseguiram alcançar. Então, para mim isso foi sempre muito claro. Eu vou sempre ter a sensação de que estou a escrever sobre mim, ainda que a única hipótese, a única coisa que faz sentido é escutar quem são os outros. E por isso eu vou escutar os outros e, no fim vou sempre chegar a quem eu sou. Eu vou sempre agregar, vou sempre acumular aquilo que eu descubro sobre mim mesmo.


É um processo do filme do Miguel, ele mostra isso, como as coisas são um pouco à deriva e elas acontecem num vazio ou num silêncio que eu acabo por comportar, e que só vai ter resposta no ruído que pertence aos outros. E esse silêncio é representativo de tudo, ou significa tudo, significa o lugar que eu não ocupo, o espaço, o tempo que não é meu, o corpo que não é meu. Tudo o que não me pertence, que não é da minha realidade, mas que eventualmente contém a resposta que eu não consigo encontrar na minha realidade. E por isso as viagens à Islândia, por isso as viagens ao Japão, por isso as viagens ao Brasil, estou com os meus livros, os meus livros têm mostrado muito a convicção de que aquilo que soluciona a minha vida pode não ser uma descoberta da minha vida, mas da vida dos outros, e vai solucionar a minha vida.



Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca):  O filme vai intercalando com cenas que trazem as palavras e páginas do livro à vida. Obviamente que não se trata de uma adaptação direta, mas o que os levou a fazerem essas cenas e como foi o processo de gravá-las para intercalá-las com as cenas de Valter?


Miguel Gonçalves Mendes: Como estamos acompanhando o processo de escrita de um livro de um escritor, é como se tivéssemos vendo aquilo que vá na cabeça dele, como se a narrativa fosse construindo ou desconstruindo. Isto é aquela narrativa como está lá, ela nem tem necessariamente que ser linear. Aquilo pode ser uma cena que o Valter voltou atrás, reescreveu e tá escrevendo de novo. Agora o que eu queria era dar corpo àquelas personagens, queria dar o ambiente. No fundo, o ambiente é o que o Valter procura na Islândia retratar e que esteja ali refletido naquela ficção. Portanto, mesmo quando você não tá na Islândia, você tá sempre acompanhando a Islândia, porque existem estes momentos de escrita em diversas partes do mundo em que o Valter escreve o livro.


Valter Hugo Mãe: No início não sabia que o Miguel tinha a intenção de fazer essa adaptação da ficção, mas acho que é uma das grandes vitórias deste filme, porque de fato permite que ao mesmo tempo que o observador, quem vê o filme, veja a cabeça do escritor meio em busca, já esteja dentro da cabeça do escritor. Permite que o livro compareça um pouco no imaginário em que a gente anda, no espaço, plantando figuras, plantando personagens para que elas se movam ali e no fundo. 


Ao mesmo tempo em que ele está mostrando o livro, está dentro do pensamento. É essa permissão para entrar numa dimensão puramente impossível, mas que é como funciona a imaginação, é como funciona a literatura de alguma forma.


Miguel Gonçalves Mendes: E também de alguma forma aproxima o espectador do próprio retratado que é o Valter, porque ele se coloca na posição. Portanto, a partir do momento em que o espectador vê o pensamento do Valter, passa a ser o pensamento do espectador que tá vendo o filme na tela. Isso eu acho que é uma coisa que é legal.


Valter Hugo Mãe: Sim. É quase como assistir à imaginação, como a imaginação inventa um livro. E isso fica mostrado no filme, fica evidenciada, materializada, porque é uma coisa muito abstrata de explicar em que instante ou como é o instante da invenção de uma personagem, de uma situação, de uma cena qualquer. E ali eu olho e me lembro de percorrer aquelas paisagens e repente imaginar, de inventar aquela criança movendo-se naquelas paisagens. É curioso olhar e parece que ela deitou ali o corpo. De repente o corpo dela é real, os pais são reais. Eu acho que cria uma força muito grande e nós relacionamo-nos empaticamente de uma forma muito imediata com aquela criança.


Miguel Gonçalves Mendes: Eu acho que o fato estarmos sempre acompanhando a realidade, no sentido de acompanhar mesmo o Valter e o processo, faz uma coisa que eu acho que espero que as pessoas entendam e que seja um trabalho bem conseguido, que é o fato de que este não é um documentário didático, nem pedagógico que diz: "Ah, o Valter nasceu aqui e teve estes pais". Não, eu espero que as pessoas saiam da sala com a sensação que conheceram o Valter, entendeu? E não dessa forma tradicional, mas de uma forma orgânica, como se estivessem mesmo vivendo o dia-a-dia daquilo que eu estava vivendo.


E é por isso que as pessoas se identificam com as questões que ele próprio coloca e que são universais. Esta questão do medo da solidão, se vamos amar alguém ou não, o que é estarmos sozinhos, de tudo isso, eu acho que permite a quem assiste o filme se colocar as mesmas dúvidas e então o filme novamente passa a ser sobre o sentido da vida.

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Foto: Reprodução


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca):  O filme traz algumas perspectivas bem interessantes sobre São Paulo, como um "país compacto". Como está sendo ter o lançamento do filme aqui na Mostra de SP, especialmente para você, Valter, que tem essa relação muito próxima no Brasil e que está nessa relação tripla neste ano, com este documentário, o pôster para a Mostra e o lançamento da adaptação de "O Filho de Mil Homens"?


Valter Hugo Mãe: Eu fico sempre um pouco espantado com a maneira como as pessoas me recebem, com o fato de conhecerem o meu trabalho, lerem os meus livros, é algo que eu não me consigo propriamente me habituar. Então, há sempre essa coisa que é meio Alice no País das Maravilhas. E São Paulo é muito um País das Maravilhas, no sentido em que você entra nesta espessura, nesta opacidade. Lembro-me das primeiras vezes; de início, não entendia nada. Tudo parecia demasiado excessivo, escondido, as coisas não se revelavam, não eram fáceis, mas subitamente ao fim de tantos anos, eu encontro em São Paulo uma das cidades mais prazerosas que eu conheço, que devolve muita cultura, muitas exposições, muitas galerias, muitas livrarias, muitos livros, muitas editoras, e tudo está traduzido aqui no Brasil – e por isso é a desgraça das minhas finanças [risos]. 


Eu acho que São Paulo tem essa produção de tudo ser possível. Você pode encontrar todos os livros, mas também você pode encontrar todas as pessoas. E então, essa fortuna humana para mim é muito é muito importante. Que as pessoas não sejam como eu as conheço, mas sejam como elas têm de ser. E por isso eu venho, entro na cidade com a impressão de que há muito para aprender e de que aquilo que eu sei, de que aquilo que eu vi ainda não é nada do que há para ver.


E a maioria das vezes em lugares mais pequenos, em lugares mais quietos, as pessoas tendem a ser um pouco mais padronizadas, mais convencionais, talvez obedeçam a tradições às quais elas não conseguem escapar. E uma cidade como São Paulo, ela por tradição não tem muita tradição. Então, ela propõe sempre uma humanidade muito mais futura. E isso comporta os seus riscos, mas também oferece sobretudo a oportunidade de repensar o que é a humanidade que queremos, de repensarmos aquilo em que acreditamos.


Miguel Gonçalves Mendes: E no fundo, no filme, aquela sequência do país compacto, é efetivamente uma homenagem à cidade não só do escritor, como também do diretor que também teve que prestar essa homenagem. Porque o Valter tem muita razão, este é um lugar tão especial, tão grande e às vezes tão difícil de apreender, mas em que temos uma liberdade total, que faz de fato com que isto seja um país compacto, um país bom para viver aqui. É um lugar para mim mágico também, onde eu vivi 7 anos da minha vida. Portanto, foi muito importante para mim.

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