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Crítica | O Agente Secreto (Mostra de SP 2025)

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • há 10 horas
  • 6 min de leitura

Memória, verdade e identidade num país em disputa

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Foto: Reprodução


A partir de Retratos Fantasmas – ou melhor dizendo, do seu processo de pesquisa e produção – Kleber Mendonça Filho parece ter entrado em uma nova fase da sua carreira, onde temáticas e discussões presentes em suas obras anteriores ganham novos recortes, contornos e abordagens. A memória, que parece um eixo central da sua filmografia, foi vista em seu último filme por uma perspectiva quase metalinguística, do fazer fílmico, e aqui em O Agente Secreto novamente se revela o coração e alma da obra, ainda que acessá-la não seja um caminho óbvio.


Em seu sexto longa-metragem, somos transportados à Recife de 1977 pelos olhos de Marcelo (Wagner Moura), essa figura enigmática e cansada cujo passado é aos poucos descortinado para o público. Os objetivos de Marcelo parecem simples: reencontrar-se com seu filho e buscar provas documentais da vida de sua mãe. Mas quem ele é, do que (ou de quem) está fugindo, porque está recebendo o tipo de ajuda que recebe e porque há forças ocultas neste Brasil ditatorial dispostas a matá-lo são respostas que Kleber gradativamente nos dá (e nem sempre de maneiras que esperamos ou gostamos), em seu próprio ritmo não-convencional.


Trata-se de um thriller político que abraça as influências fílmicas deste tempo, mas não o faz por caminhos óbvios. Sempre muito devedor a diretores como John Carpenter e Brian DePalma, Kleber parece fazer um maneirismo em cima do maneirismo: telas divididas, split diopters e zoons dramáticos (além das alusões diretas a obras como Tubarão e A Profecia) são alguns dos meios pelo qual o diretor pernambucano constrói seu cinema de referências, mas sempre num processo antropofágico, atrelando-as ao contexto local e nacional e não o contrário. Não à toa que um dos espaços principais da obra é o cinema São Luiz, com o qual o próprio Kleber tem uma relação profundamente pessoal e que se torna palco de alguns dos momentos mais importantes da narrativa.


O cinema de Kleber também é um cinema extremamente atmosférico, como poucos diretores sabem fazer no Brasil atualmente. Mais importante que as referências, é o clima de paranoia e opressão que se instauram no decorrer das quase 2h40 do longa. A ditadura aqui é menos um elemento central e mais um pano de fundo que colabora para esse clima, expresso tanto em figuras individuais (como o deputado corrupto interpretado por Robério Diógenes e seus filhos) quanto na associação com o capital privado, que se revela a força antagonista motriz.

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Foto: Reprodução


Aliás, é através dessa atmosfera que O Agente Secreto trabalha uma das suas premissas principais: a disputa pela verdade, e a manipulação desta. Dentre as muitas subtramas abertas no decorrer do filme, a mais instigante é certamente a da “perna cabeluda”, que não apenas permite a Kleber flexionar sua paixão pelo cinema de horror, mas também reflete as muitas maneiras pelas quais a verdade foi controlada e imposta à população. A ambientação do filme durante o Carnaval faz com que muito do que vemos em tela pareça um sonho febril, onde a euforia do momento é contraposta à violência praticada nas sombras e disfarçada sob as premissas mais absurdas. Uma das cenas mais emblemáticas é aquela com a impressão do jornal com a matéria sobre a perna cabeluda, enquanto a população entoa um canto carnavalesco e é filmada em ângulos holandeses que apontam para o desequilíbrio do momento.


Assim, essa Recife de 1977 é um caldeirão prestes a explodir, mesmo que vá sendo cozinhada em fogo lento. Kleber passeia pela cidade e o faz com um profundo senso de reverência e paixão que não esconde suas contradições. O trabalho de direção de arte de Thales Junqueira merece e muito ser aplaudido nesse aspecto, pois transforma a cidade numa personagem à parte, de maneira ainda mais intensa e imersiva do que nos filmes anteriores do diretor (que já eram excepcionais no trato ao espaço urbano). Cenas como aquela em que Marcelo olha pela janela do cinema São Luiz são para serem guardadas na memória, tamanha é a capacidade de nos transportarem para este período. Talvez seja outra das heranças de Retratos Fantasmas, já que aqui a arquitetura, os figurinos, os veículos nas ruas, a cacofonia, tudo se revela muito orgânico e bem pensado nessa reconstituição de época, numa articulação entre direção de arte, figurinos, fotografia e outros elementos através da direção de Kleber que fazem de O Agente Secreto seu longa mais primoroso em termos técnicos.


Já sobre as pessoas, um dos grandes méritos (e falhas) da obra reside em como ele abre seu mundo para além de Marcelo. O filme é povoado de uma galeria colorida de coadjuvantes, alguns beirando o caricatural (em especial os antagonistas), mas com uma organicidade que não apenas reflete o período, mas sobretudo o local. Há muito daquilo que o pesquisador Hamid Naficy chama de “sotaque fílmico”, termo apropriado pela pesquisadora pernambucana Angela Prysthon para descrever essa produção cinematográfica do estado que se afirma através da caricatura, do estranhamento, do excesso de caráter local, acentuando-se o folclórico na mesma medida que se adere a um discurso modernizante e tecnológico.


Sobre o próprio Marcelo, é fundamental perceber como ele é tratado quase como um reagente ao mundo ao seu redor, enquanto carrega suas inquietações. Wagner Moura entrega uma atuação contida, onde o trabalho de maquiagem (seja com a barba, cabelo e as olheiras) indicam os diferentes momentos deste personagem, o quanto ele está cansado de fugir e isso pode tanto ser sua glória quanto sua ruína. Não diria que é a melhor atuação da sua carreira, mas certamente é uma das mais instigantes, porque rejeita noções típicas do processo atoral para fazer de Marcelo um personagem que navega entre essas múltiplas identidades, ao ponto de que em nenhum momento o filme parece querer nos responder em definitivo quem ele é, ou preencher certas lacunas do seu passado e futuro. Isso pode levar a um certo sentimento de frustração (especialmente com o final do personagem), mas uma das marcas do cinema de Kleber Mendonça Filho é justamente essa natureza mais aberta e menos “redonda” tanto em termos de narrativa quanto de construção dos personagens.

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Foto: Reprodução


Mas quando eu digo que essa abertura do mundo proposta pelo filme se converte também numa falha, é porque esse deslocamento entre a trama de Marcelo para essas subtramas muitas vezes o incha e compromete seu ritmo, especialmente quando enfoca os personagens antagonistas; não digo que essas cenas precisassem ser extirpadas do filme, mas é visível que um trabalho de montagem se fazia mais necessário nestes momentos. Por outro lado, o núcleo de dona Sebastiana (vivida pela maravilhosa Tânia Maria, a qual rouba cada cena em que aparece) acaba sendo subutilizado durante a narrativa, mesmo carregando alguns dos melhores momentos do filme. Ele não apenas consegue trazer leveza e respiro necessários a uma obra tão densa e repleta de maus agouros, mas também por reforçar a noção de um “sotaque fílmico” repleto de estranhamentos e elementos caricaturais que, na verdade, são bem comuns a nós nordestinos – por exemplo, eu vi tanto em dona Sebastiana a antiga dona dos kitnets em que morei em Aracaju que era como estar de frente a ela mais uma vez.


Outra grande questão do filme reside nos interlúdios que levam à narrativa ao presente para enquadrá-la como uma espécie de relato, onde a figura de Marcelo é apreendida a partir das suas interações com os outros personagens. Esses interlúdios se amarram ao epílogo da obra, destacando enfim como a obra é voltada para a perpetuação e disputa pela memória, mas isso não quer dizer que não haja um custo, tanto em termos de duração quanto de própria construção narrativa. Ao contrário de muitos, não desgosto do epílogo em si (até porque ele se conecta, ainda que indiretamente, com Retratos Fantasmas), mas desgosto sim do encerramento anticlimático que se dá logo antes dele, além da ênfase desproporcional na personagem Flavia (Laura Lufési), que é nitidamente utilizada mais como um motor narrativo durante os interlúdios e epílogo do que como uma coadjuvante mais trabalhada tal qual outras do filme. Acaba sendo um encerramento que se prolonga de maneira insatisfatória, especialmente considerando o quão abruptamente Kleber encerra o clímax que marcava o momento em que o filme enfim libera a explosão cozinhada a fogo lento durante as duas horas anteriores.


Estes inchaços narrativos e decisões controversas quanto ao final comprometem o saldo final de O Agente Secreto, impedindo-o de ser o melhor longa de Kleber Mendonça Filho até agora. Mas é certamente o seu mais denso, exigente, ousado e complexo – não necessariamente em termos de narrativa, mas talvez de culminar seu projeto de cinema feito até aqui, enquanto se abre para novas possibilidades que aludem tanto a Recife quanto ao Brasil em si. Neste percurso atmosférico e cheio de pirraça, o diretor pernambucano mostra que, seja em 1977 ou 2025, continuamos a disputar pelas memórias, verdades e identidades que fazem da sua cidade (e do nosso país) o que é.


Nota: 4/5


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