Entrevista | Renata Pinheiro fala sobre “Lispectorante”, seu novo filme
- Vinicius Oliveira
- há 1 dia
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, a diretora falou sobre as influências de Clarice Lispector no longa, a gentrificação de Recife e o trabalho com Marcélia Cartaxo e Grace Passô.

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Estreia nos cinemas brasileiros no dia 08 o longa-metragem Lispectorante, dirigido por Renata Pinheiro (Amor, Plástico e Barulho e Açúcar). O filme acompanha Glória Hartman (Marcélia Cartaxo), uma mulher madura que atravessa uma crise existencial e financeira e volta à sua cidade natal, Recife, que também passa por um processo de abandono. Por meio de uma fenda nas ruínas onde morou a escritora Clarice Lispector, Glória começa a ver cenas fantásticas que vão alterar a sua vida.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Renata a respeito do filme. Ela pôde comentar sobre a escolha de trazer o espírito da obra de uma das maiores escritoras brasileiras para o longa, a abordagem a respeito dos processos de gentrificação que Recife vem sofrendo e a oportunidade de trabalhar com atrizes do calibre de Cartaxo e Grace Passô. Você pode acompanhar a entrevista abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Lispectorante, como seu título indica, tem como base não só a casa de Clarice Lispector, mas sobretudo o espírito de sua obra. Como foi trazer Marcélia Cartaxo - que ganhou notoriedade justamente pelo seu papel em A Hora da Estrela - para o filme e fazê-la se reencontrar de certa forma com Clarice?
Renata Pinheiro: A obra de Clarice Lispector como um todo sempre me motivou muito e principalmente também porque eu sou uma mulher que me descobri artista desde criança. A gente tem aquele vazio dentro da gente que só é preenchido em alguns momentos quando você encontra obras como a de Clarice. Eu me lembro que li ela muito criança, depois na adolescência, e nem sei se eu entendia tudo, mas aquilo me deu um certo alívio dessa complexidade que é ser mulher, ser artista.
Aí esse filme vem por uma grande coincidência do acaso, que foi essa construção toda. A personagem nasceu antes, é essa mulher de meia idade, uma mulher madura que está passando por um momento de grande crise existencial, financeira, termina um casamento. É uma artista frustrada porque se dedicou muito mais à carreira do ex-marido, e agora, o que fazer com isso? E foi numa ida furtiva ao centro da cidade que Sérgio Oliveira, que também é criador desse projeto, chegou para mim e falou: "Pô, você já reparou na casa de Clarice Lispector na praça Marciel Pinheiro, lá no bairro da Boa Vista, que é bem o centro da cidade?”. Eu disse: "Não, é mesmo, é ali a casa dela". Então é algo que realmente estava esquecido, e aí veio essa conexão, porque na verdade essa construção da Glória tinha tudo a ver com esse universo único de Clarice Lispector.
Então, eu acho que o filme se aproxima mais dessa minha necessidade de falar o quanto que Clarice Lispector viveu em Recife. Ela habitou aquela praça, andou por ali igual a igual a todos nós daqui, respirou aquele ar, foi ali no rio Capibaribe, voltou pra praça, enfim. Uma coisa que até eu, que sou recifense, estava esquecida, de que ela tinha aquela casa dela num lugar tão turístico e central. Então o filme tenta resgatar, fazer um contato com a pessoa da escritora Clarice Lispector e traz, claro, essa aura que está nas obras dela.
E para a gente ter essa personagem no filme, logo chegamos à conclusão de que Marcélia Cartaxo seria perfeita, pela idade dela, pela complexidade, por ela ter feito Macabeia [em A Hora da Estrela]. Ela vem com uma carga muito intuitiva, de uma atriz intuitiva. Ela tem uma aura de estrela mesmo, e imprime um elemento de mulher-criança, o que dá uma humanidade incrível à personagem. E por isso me sinto uma artista recifense em comunhão com outras duas grandes artistas, uma pernambucana e uma paraibana.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): O filme também trata muito de questões de gentrificação, ainda mais nesse contexto pós-pandêmico. Inclusive eu tive a infelicidade de ser assaltado no centro de Recife ano passado. Para você, de que forma se deve discutir a memória e a ocupação desses espaços para conter o avanço dessa degradação e abandono?
Renata Pinheiro: Eu acho que é preciso juntar muitas pessoas, de várias áreas, multidisciplinares, para entender o que fazer com o espaço tão rico de memória e inclusive nobre. Ele fica à beira do rio Capibaribe, e esse bairro da Boa Vista tem o cinema São Luís, tem o teatro do parque. Então está tudo ali e eu acho que partindo de uma economia limpa como o turismo talvez fosse o mais interessante. Traçar um mapa sentimental da cidade do Recife, que é algo que o filme também traça um pouco, ao mostrar que foi onde nasceu o físico Mário Schenberg, além da própria casa de Clarice.
Eu acho que a cultura sempre salva, então acho que através de centros culturais naturais poderia se deixar mais vivo aquilo tudo. Poderia se trazer um outro tipo de ocupação para essas áreas, porque acontece em outras cidades também. Desde o final dos anos 80, quando começaram os shopping centers a tomar esse lugar do centro da cidade, até agora, onde o comércio virtual tem dominado e muitas lojas físicas têm fechado, tudo isso tem sido um fenômeno mundial.
Eu acho que as cidades têm que estar preparadas para se adaptarem a essas novas tendências, principalmente privilegiando a vida humana. Então têm muitos espaços que estão vazios, com pessoas que não têm casa, e tem que ter uma política de ocupação desses espaços, além da preservação da nossa história, isso é cultura. Tem museu também por ali, que ninguém sabe que existe, cara, ninguém sabe porque é uma portinha. Trata-se de uma história, o nosso passado, que estão esquecidos.
É realmente uma pena, porque a gente que faz cinema tem essa função de às vezes até de colocar na roda as questões, as temáticas para se fazer, conversando sobre temas que, se não for a gente para puxar, ninguém fala. Temos essa função e a gente vai fundo, é a nossa arma, mas é preciso que venha um pouco lá de cima, infelizmente.

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Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Algumas das minhas partes favoritas são as envolvendo a grande Grace Passô, nesse lance meio surrealista onde realidade, sonho e fantasia se sobrepõem, mas também estão em constante conflito. Para mim me pareceu muito representativo do ofício criativo de um(a) artista como a personagem de Marcélia, mas queria saber o que você propôs com essas sequências e também como foi o processo de trazer Grace para o filme.
Renata Pinheiro: A Grace é uma grande atriz, e como se trata desse universo lúdico, de sonho, precisaria de uma atriz do porte dela. Porque Grace chega chegando, ela teve uma compreensão desse lugar, que é um lugar imaginado pela protagonista, e que tem sim um cunho surreal no sentido de que ele, de fato, utiliza traços de realidade para construir uma realidade paralela, e eu acho a performance dela incrível.
Ela fez uma diária e meia só de filmagem, teve uma preparação com Tavinho Teixeira [diretor de atores do filme] e ela surpreendeu, foi além do que eu tinha imaginado. E essa é a grande cena do filme, que é quando a gente vê se materializando lá o que é o tal do Lispectorante, essa bombinha de confete que ao explodir te transporta para um lugar alucinógeno contra a caretice. Você expurga as mágoas, enfim, vê a vida de uma forma diferente.
Acho que esse não poderia ser meu primeiro filme, porque é um filme muito sofisticado, ousado e corajoso. E você precisa ter parceiros também corajosos, ousados e, vamos dizer, maduros para entrar nessa, como a Grace Passô, o Pedro Wagner e a Marcélia Cartaxo.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos aos nossos entrevistados que nos indiquem seus filmes nacionais favoritos, ou aqueles que acham que todo mundo deveria estar assistindo. Quais seriam suas indicações de filmes nacionais para o nosso público?
Renata Pinheiro: Como a gente está falando tanto aqui de Clarice e de Marcélia, eu vou indicar A Hora da Estrela, de Suzana Amaral. Parêntese, eu trabalhei com Susana Amaral, uma diretora incrível, fui diretora de arte do último filme dela, Hotel Atlântico. Também pensei aqui em Madame Satã, do Karim Ainouz. Acho que os dois filmes mergulham num Brasil muito interessante, que, como diz Matheus Nachtergaele, é o “Brasil com S”. Também são filmes que se passam nos centros das cidades, então eu os indicaria para as pessoas que são muito jovens, principalmente, que talvez não tenham assistido ainda.
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