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“Nunca senti que era só um filme”: elenco e diretor falam sobre O Deserto de Akin

  • Foto do escritor: Gabriella Ferreira
    Gabriella Ferreira
  • há 5 dias
  • 12 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, Bernard Lessa, Guga Patriota e Reynier Morales compartilham como O Deserto de Akin ressoa com o Brasil de hoje.

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Eleito Melhor Filme pelo júri popular do Festival de Vitória, O Deserto de Akin é uma poderosa reflexão sobre pertencimento, afeto e escolhas forçadas por contextos políticos. Estrelado por Reynier Morales, premiado como Melhor Ator no Festival do Rio, o longa acompanha Akin, um médico cubano que, em 2018, atua no Espírito Santo pelo programa Mais Médicos, até a cooperação ser abruptamente encerrada com a eleição de Jair Bolsonaro.


A partir da convivência com uma comunidade indígena e dos laços afetivos que constrói com brasileiros, Akin se vê diante de um dilema: voltar a Cuba ou permanecer em um país onde já não pode exercer a medicina oficialmente, mas onde criou vínculos profundos.


Para além do contexto histórico, o filme também lida com camadas de memória e emoção. “O filme provoca lembranças, nostalgia, muitas emoções... a gente sabe que é bonito, mas é triste também”, diz Reynier em uma das falas mais marcantes da nossa conversa. O ator compartilha a experiência de interpretar um personagem que fala desde a bondade e que, mesmo diante da dor e da separação, segue buscando acolhimento.


O Oxente Pipoca conversou com o diretor Bernard Lessa, a atriz Guga Patriota e o ator Reynier Morales sobre o processo de criação do filme, as trocas no set e o Brasil de dentro e de fora, visto por quem chega, por quem acolhe e por quem resiste. O Deserto de Akin estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 31 de julho. 

Leia a íntegra da conversa abaixo:


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Bernard, assistindo "O Deserto de Akin", eu fui imediatamente transportada de volta àquela época com toda a sensação de desespero e angústia que aquele momento provocava. O filme me causou esse impacto, esse reconhecimento profundo. Queria te perguntar: como surgiu a ideia de contar essa história? O que te levou a transformar a situação dos Mais Médicos no Brasil em cinema?


Bernard Lessa: Obrigado pelo comentário, Gabi. Fico muito feliz que você tenha sentido isso e trazido essa percepção, porque é algo que tem aparecido muito nas conversas sobre o filme. O Deserto de Akin surgiu justamente naquele momento da pandemia. Comecei a escrever o roteiro enquanto acompanhava as notícias do coronavírus chegando à Europa. Lembro das imagens da Lombardia, com mais de mil mortos por dia, e de como todos que podiam estavam saindo de lá. Na contramão, vimos uma brigada de médicos cubanos indo justamente para o epicentro daquela crise sanitária, enfrentando o desconhecido. Ninguém sabia ainda direito que vírus era aquele, mas eles foram.


O mesmo já havia acontecido durante a epidemia de ebola na África. Enquanto países europeus retiravam seus cidadãos, Cuba enviava médicos para enfrentar a situação, colocando a própria vida em risco. Isso me marcou muito, porque mostra um compromisso humanitário profundo. E aí, inevitavelmente, me veio à cabeça o que foi o programa Mais Médicos no Brasil e a maneira abrupta como os médicos cubanos foram expulsos do país, num episódio marcado por xenofobia nos aeroportos, por agressões verbais da classe médica brasileira e por um discurso extremamente violento do então candidato Bolsonaro durante sua campanha.


O filme também nasce de uma experiência pessoal muito forte relacionada à eleição de 2018. Lembro da tensão daquele período, algo que se sentia no ar, que parecia quase palpável. Me recordo de estar num bar, cercado de amigos, e todos nós sentíamos uma ameaça real pairando sobre a vida. Eu, como homem branco e heterossexual, não era diretamente alvo, mas muitos amigos e amigas com corpos dissidentes sentiam medo real. Medo pela vida, pela liberdade, pelo direito de existir.


O filme conecta esses dois momentos: de um lado, a pandemia e o gesto radical de cuidado dos médicos cubanos; de outro, a ascensão da extrema direita no Brasil e suas consequências sociais. Foi daí que surgiu a necessidade de falar sobre isso, de criar uma espécie de documento sobre esses médicos e esse momento histórico. Comecei a pesquisar as brigadas cubanas e, a partir disso, mergulhei no Mais Médicos. Com apoio de um edital de desenvolvimento, entrevistei médicos cubanos que trabalharam aqui, visitei postos de saúde e também conversei com membros da comunidade cubana que permaneceram no Brasil, mesmo fora da medicina.


A partir disso, entendi melhor a relação que os pacientes tinham com esses médicos e a situação dos profissionais que ficaram por aqui. Muitos estavam desempregados, outros em subempregos, e alguns poucos conseguiram passar no Revalida, que na minha opinião é uma prova pensada para reprovar. Ela existe muito mais para proteger os interesses da classe médica do que para medir a capacidade real desses profissionais.


O filme nasce desse desejo duplo: de dar conta daquela sensação sufocante que a gente viveu e de refletir sobre como a chegada da extrema direita ao poder significou a desassistência de uma enorme parcela da população, especialmente a mais vulnerável. Isso teve consequências diretas na forma como enfrentamos a pandemia.


Um governo que, antes mesmo de assumir, expulsa 10 mil médicos é o mesmo que vai, mais adiante, permitir que milhares de pessoas morram de forma evitável.


O filme tenta trazer essas discussões, mas sempre a partir de uma perspectiva sensível e humana. Apesar de partir de uma questão política macro, ele mergulha na política micro. Ele fala dos afetos, do cuidado, dos pequenos gestos. É um filme que presta atenção a uma mão, a um pé, a uma respiração, ao bater de um coração, a um olhar prolongado. Ele se coloca nesse entrelaçamento entre a política das grandes decisões e a dos vínculos cotidianos.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): É, eu acho que isso que você falou sobre os personagens, sobre essa conexão mais do micro, era justamente a pergunta que eu queria fazer para você, Guga. Os personagens da Érica e do Sérgio, né, eu senti que os dois representam muito esse laço afetivo, quase como se simbolizassem o vínculo do Brasil com as pessoas de fora. Me passou muito essa sensação de acolhimento, sabe? De como o Brasil, em algum momento, acolheu esses médicos.


E teve uma cena que me tocou muito, que é quando a Érica defende eles no bar, quando começa aquele discurso preconceituoso, e ela simplesmente sai com os dois. Aquilo me bateu forte. Então, eu queria te perguntar como foi para você criar esse personagem que está tão próximo da história, tão envolvido com tudo isso. Porque para mim ele carrega essa sensação de afeição mesmo. Como foi construir isso?


Guga Patriota: Sim, e eu acho que isso tem muito a ver com uma palavra que venho usando quando penso no filme: afeição. O Sérgio também não é daquele território, ele vai para lá. A gente pode supor o que o levou a ir e o que o faz permanecer, mas ele, assim como o Akin, é alguém que se desloca. Diferente da Érica, que está naquele lugar e talvez nunca tenha saído ou cogitado sair.


Eu concordo quando você fala dessas afeições como laços, como vínculos que, de certa forma, dão contorno a quem somos. A gente consegue acessar um pouco mais do Akin a partir da relação que ele constrói com a Érica. E conseguimos também fazer novas perguntas sobre ele quando vemos sua relação com o Sérgio.


Acho que a mesma coisa acontece dentro do consultório, na maneira como ele se relaciona com os pacientes. Muito do que sabemos sobre nós mesmos só descobrimos na relação com o outro. E no caso do Akin, que é médico, quando ele coloca a bata, o uniforme, ele não está apenas assumindo uma função técnica. Aquilo não é uma fantasia nem uma máscara. É uma disposição. Uma disposição para estar presente, para trocar, para se construir a partir da relação com o outro.


Estou falando isso e me emociono, porque na minha prática como médica isso também é muito presente. E o filme, como o Bernardo comentou, se demora na mão, no pé, no gesto. Isso é um aspecto da prática médica que, nos dias de hoje, precisa ser quase reconquistado. Porque vivemos uma realidade em que até essas práticas, que dependem fundamentalmente de um olhar humano, acabam sendo atravessadas por uma lógica liberal, acelerada, automatizada.


Existe um esforço para que esse modo sensível de cuidar continue existindo, apesar do modo como a sociedade se organiza hoje. Mesmo nos espaços que exigem escuta, atenção e presença, estamos o tempo todo lidando com estruturas que nos afastam disso.


No campo da arte é a mesma coisa. A forma como estabelecemos relações de trabalho, como construímos criativamente, como imaginamos um futuro coletivo e sustentável para o fazer artístico, também acaba sendo afetada. É preciso construir tudo isso com uma lógica diferente, que vá além da lógica imposta pela extrema direita, pelo neoliberalismo, pela mecanização dos nossos corpos e afetos.


Me vem à memória uma frase de alguém que eu não lembro exatamente quem é, talvez um médico de família ou um economista da saúde, que dizia algo como: o desafio é agir contra, dentro e para além desse modelo opressor de vida que tem sido naturalizado. E eu acho que o filme também nos coloca diante dessa mesma pergunta.

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Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Quando a gente assiste ao filme, dá pra sentir muito essa conexão. Uma coisa que me chamou muito a atenção foi a relação do Akin com a personagem da Ana Flávia. Acho que ela representa muito mais do que apenas uma figura individual — ela simboliza os laços afetivos que o Akin cria com o Brasil, e isso ficou muito bonito na tela.


Queria que o Reynier comentasse um pouco sobre essa relação entre os dois personagens e como foi para você contracenar com a Ana Flávia.


Reynier Morales: Trabalhar com Ana Flávia foi maravilhoso, desde o início. Eu até falei para ela que estar com ela em cena foi um verdadeiro encanto. Ela traz uma alegria para o set, uma espontaneidade e uma sinceridade no olhar que fazem com que seja impossível não se encantar por ela. E eu me senti muito protegido ao lado dela.


Acho que nem cheguei a dizer isso a ela, mas durante todo o processo, tentei entender como o Akin se sentia com cada pessoa, como era estar com ela, com ele, com cada um. São nuances muito sutis. No caso dela, além de ser muito fácil trabalhar juntos, porque sempre senti que ela era muito próxima, foi como reencontrar uma amiga de longa data. Nunca senti que estava conhecendo alguém novo. Eu me sentia verdadeiramente acolhido.


É até raro dizer isso, mas acho que o Akin está apaixonado por ela, não só no sentido amoroso, mas também como alguém que ele vê como um porto seguro. Desde o começo, ela é uma figura de proteção para ele. É quase como uma mãe, um refúgio. É muita coisa junta, sabe?


E tem algo muito concreto nessa relação que fala muito sobre o Brasil também. Quando cheguei aqui, várias mulheres me perguntavam se eu estava gostando do país, como estava sendo a experiência. E eu estava longe da minha família, da minha mãe. O Akin também é uma pessoa solitária, que já perdeu os pais. Então, essa ligação com a personagem da Ana Flávia é muito profunda, porque ela representa esse afeto, essa presença acolhedora que ele encontra aqui.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Eu acho que, além de toda a questão política e afetiva em torno do Akin, ele é um exemplo perfeito da angústia que a gente sentiu naquele período. Eu senti muito isso enquanto assistia, lembrando do momento político que estávamos vivendo.


Queria aproveitar para parabenizar o Reynier pelo prêmio no Festival do Rio e saber um pouco mais sobre como foi criar esse aspecto do personagem. O que te desafiou mais durante o processo, especialmente quando recebeu o roteiro e começou a trabalhar nas imagens do filme?


Reynier Morales: Com o Akin foi, na verdade, bem tranquilo. Não posso mentir. Quando li o roteiro pela primeira vez, me emocionei muito com a história, sabe? Eu já tinha comentado isso com outros jornalistas: é um personagem que transmite bondade, e isso foi o que mais me motivou a aceitar interpretar esse papel.


Ter um roteiro nas mãos geralmente exige construir muitas coisas, principalmente quando você vai interpretar um personagem complexo, mas com o Akin não foi assim.


Claro que fiz uma pesquisa, né? Uma pesquisa de tempo, conversando com outros médicos, amigos cubanos que já estiveram em missões, tanto em Angola quanto aqui no Brasil.


Aqui no Brasil também conheci outros médicos cubanos, tive a oportunidade de falar com eles, e foi um período lindo de muitas conversas, inclusive com o Bernardo, sobre as pesquisas dele. Entender também como é o olhar de várias pessoas aqui no Brasil para esses médicos, como foram suas experiências, e também conhecer relatos de pessoas que foram atendidas por eles.


Para mim, isso trouxe uma grande responsabilidade, sim. Mas não foi difícil. Foi um processo que fluiu naturalmente, e eu adorei esse lado do processo porque eu amo o estilo de atuação que se aproxima do documentário.


São modos diferentes de interpretar. Normalmente, quando um ator enfrenta uma ficção, tende a fazer uma atuação mais demonstrativa, por assim dizer. Eu queria que o Akin fosse exatamente o oposto disso, trabalhar fora dessa zona do ator, conseguir acreditar que eu não sou um ator. E isso foi, de longe, o maior desafio para mim.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Eu queria saber de vocês como esperam que o filme ressoe nas pessoas que vão ter contato com ele a partir do dia 31 de julho, quando ele estreia. O que vocês gostariam que ficasse no público depois desse encontro com "O Deserto de Akin"?


Bernard Lessa: Bem, a gente está com muita expectativa em relação à distribuição comercial do filme agora no dia 31 de julho. É um filme que foi feito para dialogar com o público. Claro que a gente circula pelos festivais, busca reconhecimento, mas tudo isso tem como objetivo final alcançar as pessoas. O nosso maior desejo é que o filme consiga chegar às salas, que esteja disponível em um bom número de cinemas e que o maior número possível de pessoas no país tenha acesso a ele.


A nossa esperança é que o público vá assistir ao filme com olhos livres. Que consigam se abrir para o que ele propõe, sem necessariamente levar consigo tantas certezas ou expectativas prontas. Porque, por mais que o filme tenha um tema e esteja inserido numa sociedade dividida, ele se constrói a partir de relações cotidianas, pequenas, repetitivas, que fazem parte da vida real.


Então o que eu mais espero é que as pessoas consigam assistir desarmadas, que se deixem afetar, se envolver. Que tirem as próprias conclusões, mas que permitam esse encontro. Que estejam abertas ao filme. Acho que é isso: que cheguem até ele com olhos livres.


Guga Patriota: A minha expectativa é que as pessoas estejam nos cinemas. Dizer "todas" é difícil, eu sei, mas o desejo é que muita gente vá assistir, especialmente na primeira semana, que é tão importante para dar força ao filme e garantir a continuidade dele em cartaz nas semanas seguintes. Que, gostando ou não do filme, essas pessoas falem sobre ele, indiquem para outras assistirem, para que a gente consiga ampliar nossa rede de conversa em torno das perguntas que o filme propõe.


Porque o filme não tenta dar respostas, nem resolver nada. Ele lança questões, provoca reflexões. E é justamente esse tipo de cinema que me interessa. Um cinema que só faz sentido quando encontra o público.


O desejo é que o maior número possível de pessoas se coloque disponível para experimentar um outro tempo, entrar nessa história e, quem sabe, viver algo parecido com o que você comentou, Gabi. Talvez sentir que voltou no tempo, revisitar memórias, pensar no que ainda está por vir, no que não queremos mais repetir, no que ainda não está certo, no que ainda está em aberto.


Reynier Morales: O filme tem essa coisa que provoca lembranças nas pessoas, né? Provoca também uma certa nostalgia e muitas emoções. Muitas emoções mesmo. É até difícil descrever o que acontece com quem assiste, mas a gente sabe. E a gente sabe que é bonito, mas é triste também.


E ali se entende que é necessário. Ali se entende que há muitas pessoas que realmente precisam desse tipo de atendimento. Eu conheci várias pessoas que foram atendidas, que me contaram suas lembranças desses médicos, desses amigos cubanos. O cubano é um povo um tanto diferente no mundo, sabe?


Porque o cubano tem uma característica muito quente, muito afetuosa. Acho que nossos países são quentes na qualidade humana, mas o cubano se destaca muito nesse aspecto. Seria loucura dizer o contrário.


E dá para sentir a pressão, dá para sentir o peso da responsabilidade, porque eu também sei o que representa ser um médico cubano no Brasil, e o que representa ser um médico cubano em outros lugares do mundo, o que é diferente.


E aí a gente percebe as grandes diferenças entre os contextos, o que acontece com esses médicos depende muito de onde eles estão. E o que continua acontecendo com eles ainda hoje. É uma pressão, é uma carga pesada, e eu sei disso.


Gabriella Ferreira (Oxente Pipoca): Eu sempre faço essa pergunta para todo mundo que entrevisto aqui no Oxente: qual seria o filme brasileiro favorito de vocês ou aquele filme que vocês gostariam de indicar para o nosso público? Um filme que, de alguma forma, faça sentido para o momento que estamos vivendo, sabe?


Bernard Lessa: Bem, eu vou falar Copacabana Mon Amour, do Rogério Sganzerla. É um filme pelo qual eu sou completamente apaixonado. Não sei se tem a ver exatamente com o momento que estou vivendo agora, mas é um filme que eu sempre volto a ver, que revejo eternamente. É um daqueles filmes que nunca saem da minha cabeça.


Guga Patriota: Então, não sempre, mas nos últimos anos, quando me fazem uma pergunta assim ou quando eu mesma penso nisso, o filme que vem logo à minha cabeça é Inferninho, do Guto Parente e do Pedro Diógenes, que são do Ceará. Eu lembro muito bem da minha experiência assistindo esse filme e do impacto que aquela história teve em mim.


Ele acompanha pessoas que eu diria serem extraordinárias. Falo isso porque cada uma delas tem um aspecto quase fantástico na personalidade, algo que eu realmente percebo. Elas convivem num espaço comum, estão juntas e parecem sempre ir para o mesmo lugar, mas ao mesmo tempo há algo que as distancia. Cada uma carrega uma solidão própria, que acompanha essas personalidades.


Eu acho que esse filme é muito inventivo, muito bonito, e eu sou fã.


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