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“Essa é uma história de mulheres, e tenho que ter mulheres para ilustrar isso”: Carla Di Bonito fala sobre seu próximo filme, “Nossos Caminhos”

  • Foto do escritor: Vinicius Oliveira
    Vinicius Oliveira
  • 19 de jul.
  • 7 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, a diretora cearense radicada no Reino Unido falou sobre seu ingresso no audiovisual e a produção de um filme com elenco e equipe majoritariamente femininos.

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Divulgação


O longa-metragem Nossos Caminhos, novo projeto da diretora e roteirista Carla Di Bonito, já está chamando atenção no circuito internacional antes mesmo de ser filmado. Com mais de 75 premiações, além de seleções em festivais ao redor do mundo — incluindo reconhecimentos independentes durante os festivais de Cannes, Sundance, Berlim, Roterdã, Veneza e Tribeca —, o filme, que atualmente se encontra em fase de desenvolvimento, acompanha Carla, jornalista brasileira em Londres que enfrenta traumas do passado e resgata suas origens após a morte da irmã por overdose.


O filme é o terceiro trabalho da diretora cearense Carla Di Bonito, que é radicada no Reino Unido há mais de 30 anos e atuou como jornalista na BBC. Carla é formada em Jornalismo na Itália e em cinema pela London Southbank University em Londres, onde se especializou em Audiovisual aos 56 anos e dirigiu os curtas-metragens Friday, Saturday and Sunday e Luzinete, este também baseado na morte de sua irmã por overdose, tal qual Nossos Caminhos.


O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Carla, que falou sobre seu ingresso “tardio” no audiovisual, as principais diferenças entre o cinema britânico e brasileiro e o processo de produção de Nossos Caminhos, que vem se destacado por contar com um elenco e equipe de produção 80% formado por mulheres. Você pode acompanhar a entrevista na íntegra abaixo e também conferir o pôster do filme, divulgado com exclusividade pela gente:

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Você começou a estudar o audiovisual após os 50 anos. Como se deu esse processo num momento posterior da sua vida, especialmente considerando o quanto o etarismo e o machismo ainda são problemas frequentes no meio audiovisual?


Carla Di Bonito: Eu nasci e fui criada até os 19 anos em Fortaleza. Então entendo e sei muito bem o que é sofrer com o machismo, é uma coisa que a gente sofre na pele. Então assim, não é algo novo para mim. Agora essa ida pro audiovisual... veja bem, eu me formei em jornalismo e depois de alguns anos eu trabalhei durante 9 anos para BBC. Então eu já tava naquele meio do audiovisual. Eu queria fazer documentário, aí fiz documentários, mas não era só o que eu queria fazer, eu queria fazer mais, mas eu não sabia justamente por aquelas questões que ficam guardadas lá: “mas será que eu posso? Eu, mulher e tal”. Já tinha tido filhos, mas aí eu disse: "Não, eu vou tentar".


Fiz meu primeiro curta [Friday, Saturday and Sunday] numa época em que tava saindo da BBC. Tinha escolhido sair e fiz dois cursos, um na Escola de Cinema em Cuba e outro na Polônia, e esse curta foi para um festival na Itália e também esteve no Marché du Film do Festival de Cannes. E aí depois eu parei, porque tinha duas crianças pequenas, minha mãe foi diagnosticada com Alzheimer, depois eu decidi adotar uma criança. Então isso tudo vai tirando o seu tempo, mas havia aquela coisa dentro de mim me dizendo: “você precisa, você tem que fazer”.


E aí, aos 53 anos foi quando eu pude ver que conseguia voltar ao mercado de trabalho, porque a minha filha tem necessidades especiais, a que eu adotei. E aí eu digo: "Bom, e agora o que eu vou fazer? Eu preciso voltar pra universidade, né?". E aí entra a questão do etarismo, porque eu lembro como como se fosse hoje, cheguei pro meu primeiro dia de aula e olhei, tinham mais ou menos 100 pessoas, 100 crianças de 19, de 20 anos [risos]. Mas olha, foram três anos maravilhosos. Eles gostavam de trabalhar comigo porque eu já tava vindo da BBC, então foi diferente. Eu vejo que aí no Brasil às vezes tem muito essa questão do etarismo, mas aqui eu com os meus colegas de faculdade, sinceramente eu não encontrei isso. Ao contrário, eu encontrei respeito, fiz amizades, uma das minhas melhores amigas é uma polonesa que na época tinha 19 anos. Sem falar do respeito dos meus tutores, professores da universidade, foram maravilhosos.

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Como uma brasileira radicada no Reino Unido há 3 décadas, quais são as principais diferenças que você observa entre o cinema brasileiro e o cinema britânico? Como é estar aí, mas falar "daqui"?


Carla Di Bonito: Com relação aos britânicos, seja na narrativa ou na estética, eles tendem a ser mais “podados”, e acho que isso é uma questão histórica também. Nós temos uma tendência maior a experimentar, é aquela emoção, aquela cor, aquela coisa vibrante. O britânico tem aquele senso de humor que eu acho fantástico, mas no geral o cinema deles tem menos “cor”. Também é um cinema mais voltado para as classes sociais, como a gente vê nos filmes do Mike Leigh e Ken Loach. 


Mas eu começo a ver um pouco mais de calor, talvez seja a influência que que eles estão talvez começando a pegar devido a essa diáspora toda aqui de gente que vem de toda parte do mundo. Temos muitos latinos aqui, é uma das comunidades que mais cresce, apesar da gente ser considerada ainda uma “comunidade invisível”, estamos em todos os lugares e em lugar nenhum. E o mercado também é diferente. Aqui a gente tem o BFI [British Film Institute], a BBC Films e outros, uma participação muito grande do mercado privado e empresarial. Já o Brasil ainda é muito dependente dos editais da ANCINE.


Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Quais as principais diferenças entre "Nossos Caminhos" e "Luzinete"? Ambos partem da sua experiência com a perda de sua irmã pela overdose, mas de que maneiras você acha que pôde trabalhar essa experiência num longa-metragem que não poderia num curta?


Carla Di Bonito: O curta foi sobre o último dia de vida da minha irmã, enquanto o filme é um projeto totalmente diferente. É como se Luzinete fosse uma cena dentro de Nossos Caminhos, porque os dois têm estruturas totalmente diferentes, narrativas diferentes, símbolos diferentes. O Nossos Caminhos vai ter voz e personagens que têm todo aquele arco que Luzinete não podia por ser curta.


Tem as diferenças geográficas também. Luzinete era concentrado ali naquele último dia dentro daquele apart hotel em Salvador, dentro de um quarto. Nossos Caminhos não, ele atravessa gerações, são cinco gerações. Ele atravessa, por exemplo, o Brasil, vai para a Itália, vem para cá. Então é uma diferença enorme.

 

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Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Um dos principais destaques do filme é o seu elenco e equipe de produção majoritariamente femininos, inclusive com atrizes gigantes como Marcélia Cartaxo e Hermila Guedes no elenco. Como você acha que dar esse espaço maior a mulheres a frente e atrás das câmeras influencia no seu trabalho com "Nossos Caminhos"?


Carla Di Bonito: Antes de responder isso, eu queria falar uma coisa. A Marcélia foi a primeira atriz a integrar o elenco. Eu lembro que eu liguei para a Marcélia e tenho uma admiração por ela que vem desde A Hora da Estrela. Eu sou nordestina, você é nordestino, sei lá o que que a gente tem em comum, uma coisa assim maravilhosa. E quando eu falei com ela, eu disse: "Marcélia, eu amo você”, ela perguntou: "O que é a história, Carla?", e aí eu fui contar a história, eu não tinha nem o argumento. Comecei a falar, e ela: "Tô dentro”. E a Marcélia vai fazer o papel da minha avó Raquel, uma pessoa que teve um significado enorme na minha vida, porque foi ela, pelo fato de não me querer dentro de casa, quem transformou minha vida sem saber. Nunca tive mágoa dela, pelo contrário: sempre a amei e sei que ela me ama muito aonde estiver.


Depois que escrevi [o roteiro] e tava lendo, eu me perguntei: “sobre o que é essa história?” É uma história de mulheres que vem de todas as partes da sociedade. Eu tenho que ter mulheres para ilustrar isso. Então, não é uma questão de concessão, é uma questão de ética e de afeto. É a minha avó, é a minha mãe biológica, são as minhas irmãs, é a minha mãe adotiva, aí vem as amigas da minha mãe adotiva, é mulher chegando de tudo quanto é canto.


Tem os homens, mas nunca foi a intenção falar do homem de forma negativa, ao contrário. Existem sim três dos personagens que foram negativos na minha vida, mas existem outros dois que foram muito positivos. E aí não só o elenco, mas por trás também: eu como diretora e roteirista, mulher, a minha primeira assistente mulher, e vai até a montagem, o som. Tem homem também, tem uns míseros [risos], têm uns dois, três, quatro no máximo na parte técnica, mas o resto é tudo mulher.

 

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos indicações de filmes nacionais que nossos(as) entrevistados(as) recomendem ao público. Quais seriam suas indicações?


Carla Di Bonito: Vou primeiro falar de uns não tão recentes, mas também não tão antigos. Eu adoro Madame Satã, tive a oportunidade de conhecer o Karim [Ainouz] há uns dois anos quando ele esteve aqui no BFI. Também adoro O Auto da Compadecida, é um filme que eu quero muito que meus dois filhos adultos vejam e entendam, mas é um filme que eu queria que todo mundo visse. Dos mais antigos, tem Macunaína e Vidas Secas, que inclusive é um filme que tá influenciando o novo roteiro que estou escrevendo com um roteirista cearense, o Gleison Castro.


Nós temos filmes fantásticos e eu gostaria que as pessoas pudessem valorizar mais o que a gente tem. É tão poético o cinema brasileiro, por mais que eu saiba que têm problemas. E agora encerro com um pedido: é hora da gente acabar com essas coisas de “barreirismo”, com essas coisas assim, porque não pode existir barreirismo em arte, não pode existir nada que não seja arte na arte. Essa expressão tão profunda que que o artista encontra para dividir a dor, para dividir a alegria, para dividir o conhecimento, para dividir a experiência de vida. E isso não pode funcionar na lógica do “vamos fazer mais coisas com pessoas assim e assado, que venham dessa e dessa parte do Brasil”. Não, isso tem que acabar.

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