Duas décadas do último reset cultural da televisão estadunidense pré-streaming
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Se você minimamente acompanhava séries de televisão estadunidenses no início dos anos 2000, ou mesmo se você tinha acesso a internet nessa época, sem dúvidas você sabe o tamanho do fenômeno internacional que foi Lost. Tenha você comprado a ideia ou não, poucas pessoas do nicho supracitado passaram ilesas a dimensão da repercussão que o programa levantou.
Ano passado a nossa enciclopédia da televisão estadunidense, Filipe Chaves, escreveu um baita texto sobre os porquês de até hoje Lost não ter tido uma sucessora oficial, apesar de terem tentado à exaustão. Então esse artigo vai procurar evitar pontos citados pela autoridade no assunto, tentando complementar porque a série é influente até os dias de hoje e porque ela nunca sairá de moda.
Vários astros tiveram que se alinhar para que em 2004 J.J. Abrams, Damon Lindelof e Carlton Cuse estivessem juntos e comandassem a primeira temporada do programa. Entre ideias geniais de grandes talentos e polêmicas de abuso, a sala de roteiristas de Lost criou um conteúdo encorpado que em tudo imprimia as personalidades desses três homens. Basta olhar seus currículos antes e depois da série para entender como um acidente aéreo numa ilha tropical culminou num terreno pra lá de fértil e serviu como denominador comum de suas criatividades.
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E as temáticas de Lost serão sempre citadas como um de seus principais atrativos, talvez o principal. A amálgama de gêneros que passava pela ficção científica, suspense, drama e romance permitiu que as mais diversas questões universais da existência humana fluíssem com muita naturalidade das linhas e entrelinhas. Temas antológicos, científicos e metafísicos recorrentemente mostravam que aquelas pessoas e aquela ilha eram apenas a superfície de um profundo material bem embasado na filosofia, literatura e ciência. Temas como fé, morte, propósito, passado, presente e futuro andaram lado a lado de forma inteligente, ilustrativa e supersensível, sem negar ou contrapor as diferentes interpretações que porventura um espectador tivesse. E se alguém se recusasse a queimar seus neurônios em teorias mais demoradas e quisesse apenas saber o que diabos estava acontecendo naquele lugar e como os sobreviventes sairiam dali, Lost também funcionava/funcionou/funciona em sua camada mais externa e imediata do processo.
Estamos falando de uma época em que basicamente apenas a HBO produzia programas mais enxutos, com menos de 15 episódios; fora isso os canais de televisão abertos dos EUA faziam séries com mais de 20 capítulos por temporada. O que era um prato cheio para as farofas médicas e policiais, já que cada episódio era um caso a ser resolvido, e no plano de fundo um arco maior que ia se arrastando até o episódio final. Até hoje é assim e para quem gosta é bom. Lost resolveu levar sua estrutura mais a sério e valorizar o elenco que tinha em mãos. Suas três primeiras temporadas contaram com mais de 20 episódios. A fórmula inicial aplicou cada episódio a um passageiro (ou a um par deles que se acompanhavam no voo), e através de flashbacks apresentava o que estava acontecendo em suas vidas até que o ponto de convergência de todos eles, a queda do Oceanic 815.
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E por mais houvesse mortes de personagens com certa frequência – algumas para o alívio tardio dos fãs e outras para o sofrimento –, eles não sucumbiam à trivialidade de episódios-casos, e sempre voltavam para somar à trama. Todos os coadjuvantes acabavam por se tornar recorrentes e o texto sabia aproveitar as possibilidades de um elenco versátil, diverso e internacional. Lost colocou em evidência mulheres e homens negros, latinos, asiáticos e africanos. A variedade de corpos e rostos era, claro, mais uma ferramenta de identificação com o público, mas não deixou de ser um dos primeiros grandes espaços na televisão estadunidense a misturar coreano, francês, português, espanhol, árabe e forçar os norte-americanos a lerem algumas legendas. Entre os personagens, a série tinha seu casal protagonista que ora virava trio-protagonista, ora virava quarteto, o que era natural para a estrutura argumentativa e importante para o marketing, mas em momento algum o roteiro os deixava serem os únicos pilares de uma gigante construção.
Lost tinha suas influências bem à mostra, fosse nos famosos easter eggs (mensagens subliminares colocadas à vista ou meio que escondidas em cena) ou fosse em citações diretas, como nomes de episódios e nomes de personagens. E era o que a série fazia com essas referências que tornava a brincadeira ainda mais saborosa. Como se fosse uma caça ao tesouro tentar entender: por que aquela música tocou naquele momento? Será que aquela francesa tem o nome de um filósofo por acaso? Aquele livro citado tem a ver com algum personagem? Tudo poderia ser um quebra-cabeças que fazia o espectador se debruçar naquele universo. E, mais uma vez, se o espectador em questão não fazia tanto caso de se aprofundar, não faltavam questões mais explícitas e unânimes como “por que tem um urso polar numa ilha tropical?”.
Como tudo que faz sucesso, não demorou a aparecer os primeiros críticos-haters-trolls de Lost. E durante a sua terceira temporada os impacientes e ineptos que não conseguiram engatar no ritmo e na frequência da série logo começaram a fazer tumultos virtuais nas saudosas redes sociais de outrora, e em blogs de longo alcance, atacando precisamente tudo de novo que Lost trazia em contraponto ao programas tradicionais e mais, digamos, lineares, da televisão gringa. A piadoca viral era de que os roteiristas é que realmente estavam perdidos e andavam em círculos por não saber como chegar a uma conclusão.
Bem, não sejamos hipócritas, atire a primeira pedra quem, depois da quarta temporada, não chegou a pensar que de fato algumas coisas estavam saindo do lugar de origem e o rumo que a série estava tomando não era bem o que o senso comum estava esperando. E não era mesmo. Foi quando a série começou a apontar para o sentido de seu encerramento que houve uma ruptura entre os que de fato haviam comprado a ideia até o final e os que queriam respostas mais simples. Daí para frente os desencontros começaram a ser mais frequentes, os ritmos dos episódios já não dialogavam tanto entre si (o número de episódios diminuiu), mas as resoluções estavam aparecendo aos poucos, gostasse o público ou não.
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O que não se pode dizer é que Lost deixou de ousar até seu último segundo. O para sempre famoso episódio final (não vou tacar spoiler, por mais que se tenha se passado todo esse tempo) foi a consagração de um apoteótico produto cultural que não teve medo de se apresentar e se desdobrar ao seu público entre erros e acertos. Ele contemplou aqueles mesmos assuntos que a série trazia desde seu início, respeitou seus personagens, suas narrativas, suas diretrizes, e deu aos fãs um material para se aproveitar, rever e comentar sem prazo de validade. A televisão norte-americana pré-serviços de streaming jamais veria outro acontecimento naqueles moldes, com aquela coragem e com tanta vontade de prosperar. Lost foi a série perfeita? SIM Não, mas ela também sequer perdia tempo tentando se polir, se arrumar ou se disfarçar de algo que não tinha intenção.
Papo de velho, mas vou dizer: os tempos eram outros. O mundo antes dos smartphones tinha mais espaço para os encantos analógicos, para as páginas de revistas, os volumes especiais, os jornais, os outodoors - tudo respondia ao sucesso de um conteúdo que através do brilho da globalização colonial existia também fora do virtual e dos pixels. E junto com as locadoras e seus banners e posters criativos e lançamento dos boxes de DVD era fácil comprovar que a gente estava testemunhando um reset cultural e um fenômeno comercial. E quem era fã se orgulhava de ostentar tanta bugiganga quanto cabia num quarto; eu pelo menos me orgulhava. Mas que bom que Lost viveu e sobreviveu a tudo isso, basta volta e meia deixar e retornar ao catálogo de um canal online que a série entra no top 10 de programas mais assistidos. É, portanto, a prova final, a prova do tempo, que mostra que Lost não envelhece, ou que envelheceu bem, e que continua deslumbrando a minha e outras gerações.
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