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Foto do escritorDavid Shelter

Crítica | Estranho Caminho

Quando a perda se transforma em arte

Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes


“Se eu ouso olhar além, vejo onde não tem, e eu vou te procurar depois do entardecer, fiz esse som pra inventar um jeito de te ver.” Enquanto ia assistindo o desenrolar do filme, esse início de Um Jeito de Te Ver, da banda Bratislava, ficou batucando na minha cabeça e me fazendo reparar nas semelhanças e divergências de trabalhos artísticos envolvendo perdas e saudade. Enquanto na música há algo explícito, no longa de Guto Parente temos um olhar menos linear que vai se moldando com a passagem dos minutos, e a obviedade em determinado momento não anula os sentimentos que foram construídos. 


Sou um eterno entusiasta de Inferninho (2018) e também alguém que ficou encantado com O Clube dos Canibais (2018). Guto trabalha bem tanto roteirizando quanto dirigindo, e em Estranho Caminho ele volta utilizando elementos já mostrados em trabalhos anteriores e consegue fazer uma mescla que dá uma vida diferente ao filme. Há uma junção de sentimentalismo com um toque de mistério que só ele sabe como compor para ficar bem em cena. O seu trabalho no roteiro foi bastante pé no chão, mas é a direção quem se destaca, tem a sua assinatura como diretor, mas se eleva. Tem uma marca já sua que continua presente aqui. A forma como se guia as cenas em ambientes mais fechados e limitados sem ficar claustrofóbico ou entediante é, sem dúvidas, um dos pontos mais positivos.

Foto: Divulgação/ Embaúba Filmes


Lucas Limeira e Carlos Francisco são a base da história e os pilares em que tudo se ampara. Ambos já vêm de trabalhos recentes sensacionais, Lucas, que protagonizou Cabeça de Nêgo (dirigido por Déo Cardoso, que fez uma pontinha aqui também), e Carlos Francisco vem de Marte Um, o filme escolhido para tentar uma vaga no Oscar em 2023. O David de Lucas puxa o peso e a responsabilidade para o ator, que mostra com muita competência todo o seu talento, e comprova que chegou ao cenário cinematográfico cearense e brasileiro para ficar e que merece toda a atenção possível. Ele tem uma maestria incrível em cena e um controle absoluto em tela. Carlos Francisco, a outra ponta, traz um personagem que contrasta com o protagonista, sua atuação em posições mais reativas estimulam o espectador a ficar ligado nessa dinâmica incomum entre pai e filho. 


O uso da fotografia é um dos destaques mais notáveis. A utilização dela para emoldurar as reações e sentimentos dão o tom certo para o filme, além de belos enquadramentos em cenários ao ar livre. Já disse anteriormente em outro texto, mas acho necessário repetir: é uma sensação maravilhosa enxergar no cinema pedaços de nossa terra e reconhecer pontos da cidade tão comuns do cotidiano. Poder ver pelas cenas de uma produção uma história ser montada em sua própria terra é algo gratificante. Morro e vivo pelo cinema cearense. 


Para encerrar, os aspectos mais abstratos são elementos que agregam muito à forma que o filme é contado, as sutilezas das emoções tão transparentes elevam o longa. A maneira como a arte, seja ela em qualquer formato, pode ser utilizada para expor sua ‘pessoalidade’ é uma das maiores riquezas adquiridas pelo ser humano. Poder enxergar na tela a dor de uma perda e ver a saudade materializada é algo que nos faz refletir, e é muito bom saber que dá para canalizar um sentimento e transformá-lo em algo não apenas real, mas muito bem produzido. Contrastando com a frase que dei início, e mostrando que um mesmo sentimento pode trazer visões diferentes, finalizo com a máxima com a qual Guto encerrou seu filme: “que estranho caminho eu tive que percorrer para chegar até a ti”.


Nota: 4/5

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