Crítica | Cover-Up (Mostra de SP 2025)
- Vinicius Oliveira

- há 2 dias
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O poder e os limites do jornalismo expressos em um personagem singular.

A primeira vez que assisti Todos os Homens do Presidente foi no meu primeiro semestre da graduação em Jornalismo. Era uma espécie de “rito de passagem” ver Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman) desafiarem os grandes poderes em prol da verdade e da notícia. Mesmo depois de todos esses anos, onde o jornalismo se vê cada vez mais em crise com a ascensão da extrema-direita e de regimes autoritários, a onda de fake news e da famigerada “pós-verdade”, lembrar do filme é como olhar para um farol que nos diz aquilo que o jornalismo poderia e deveria ser, independentemente das suas mudanças e desafios.
Tive uma sensação remotamente parecida vendo a trajetória de Seymour Hersh em Cover-Up, de Laura Poitras e Mark Obenhaus. O jornalista veterano de 88 anos esteve no centro de algumas das denúncias mais contundentes feitas contra o governo dos EUA e suas forças militares e agências nas últimas décadas, como a reportagem sobre o massacre de My Lai durante a Guerra do Vietnã e suas tentativas de acobertamento (o que lhe rendeu o prêmio Pulitzer em 1970), bem como o vazamento das fotos das torturas na prisão de Abu Ghraib durante a Guerra do Iraque, em 2004.
Apoiando-se em entrevistas com o próprio Hersh e alguns de seus colegas, bem como em diversos materiais de arquivo dos últimos 50 anos, Cover-Up segue uma abordagem bastante tradicional em termos de forma, adotando o modelo de talking heads nas entrevistas, mesmo que opte pela figura de Hersh (seja na atualidade ou nos registros de arquivo) como o fio condutor dessa narrativa que se concentra em dois períodos distintos. A abordagem mais crua, com uso mínimo de trilha sonora e diversos momentos de silêncio, até cansa em alguns momentos, especialmente porque o conteúdo visto em tela não é fácil. Relatórios, entrevistas, matérias jornalísticas, fotografias de massacres, torturas e abusos: há uma densidade temática e imagética que pode sobrecarregar tanto pelo que denuncia quanto por um ritmo que se faz muito sentido em determinadas porções do filme.

O que ajuda a engrandecer Cover-Up é justamente a figura de Hersh, exposta aqui em toda a sua complexidade. Sua versão mais velha é um homem ranzinza, desconfiado e até levemente paranoico – e como não ser depois de uma carreira de 60 anos, onde era chamado de “filho da p***” até por Nixon, enquanto a CIA o espionava? Por vezes intratável na sua relação com Poitras e Obenhaus, Hersh poderia ser apenas uma pessoa antipática e impossível de lidar, não fosse o fato de que sua teimosia, persistência e desobediência foram e são os motores do seu fazer jornalístico, e também características fundamentais para que ele tenha conseguido expor tantas atrocidades cometidas pelos EUA ao longo dessas décadas.
Será esse o jeito certo de se fazer jornalismo? Poitras e Obenhaus não nos dão uma resposta definitiva. Na verdade, eles usam Hersh como uma vitrine das diversas maneiras pelas quais o jornalismo atua em nome da verdade e do impacto que pode causar na sociedade e na geopolítica. E ainda que as falhas e erros na carreira do protagonista não recebam tanta atenção quanto seus acertos (como, por exemplo, o seu apoio a Bashar al-Assad antes da guerra civil na Síria), ajudam a ilustrar também que o jornalismo tem seus limites e contradições, tanto aquelas inerentes à profissão quanto àqueles que a exercem.
Ver Cover-Up quase dez anos após Todos os Homens do Presidente significa pensar numa relação menos idealizada com a profissão, mas não necessariamente cínica ou desesperançosa. Figuras como Hersh, em que pesem suas falhas e os limites que tentaram ultrapassar, foram e são fundamentais para nos lembrar que o jornalismo não existe para ser conveniente ou mera peça publicitária. Mesmo quando o documentário assume caminhos demasiadamente convencionais em sua estrutura, ele se mostra seguro de que tem em mãos um personagem tão fascinante ao ponto de estar acima do próprio filme, e o deixa brilhar.
Nota: 3.5/5





