Crítica | Lispectorante
- Vinicius Oliveira
- 9 de mai.
- 3 min de leitura
O espírito da obra de Clarice Lispector serve de pano de fundo para a gentrificação de Recife e mais uma atuação fenomenal de Marcélia Cartaxo.

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Em sua entrevista para o Oxente Pipoca (que pode ser conferida aqui), a diretora de Lispectorante, Renata Pinheiro, comentou sobre como se deu seu contato com a literatura de Clarice Lispector ainda durante a infância, quando começou a se entender artista. “A gente tem aquele vazio dentro da gente que só é preenchido em alguns momentos quando você encontra obras como a de Clarice. (...) Eu me lembro que li ela muito criança, depois na adolescência, e nem sei se eu entendia tudo, mas aquilo me deu um certo alívio dessa complexidade que é ser mulher, ser artista”, disse ela.
Que apropriado e poético, portanto, que 40 anos após uma das obras seminais de Clarice (A Hora da Estrela) ter sido adaptada ao cinema e revelado ao mundo o talento de Marcélia Cartaxo, a atriz paraibana volte a atuar num projeto de alguma forma ligado à escritora. Embora Lispectorante não seja uma adaptação direta de um dos seus livros, pega o espírito da sua obra – aqui “personificado” na casa em que ela viveu no centro de Recife – para atrelá-lo à protagonista de Marcélia, Glória Hartman, uma mulher de meia-idade que retorna à cidade depois de anos.
Vivenciando um sentimento de abandono após o término do seu casamento, Glória parece de alguma forma espelhar o próprio abandono pelo qual o centro de Recife está passando. A gentrificação é um dos tópicos mais importantes do filme, mas Renata opta por não abordá-lo de maneira direta e se limitar a um mero comentário social: prefere retratar esse centro como um espaço sim degradado e negligenciado pelo poder público, mas também cheio de vida, povoado por figuras quase fabulosas (como o par romântico de Glória vivido por Pedro Wagner ou até artistas da vida real em pontas, como Karina Buhr).
Nesse sentido, a casa de Clarice Lispector emerge como uma representação desse universo, que abraça ares cada vez mais surrealistas à medida que imerge mais e mais na mente criativa, mas também conturbada, de Glória. Alguns dos melhores momentos do filme vêm com as inserções de sequências oníricas estreladas por ninguém menos que Grace Passô, que surge como uma representação do processo criativo que tantos artistas possuem. Mesmo que curtas dentro da metragem do filme, elas se destacam não só pelo prazer de se assistir Passô, mas por se integrarem à lógica interna da obra e aludirem ao fluxo característico das obras de Clarice.

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É inegável, porém, que o filme acabe adotando um tom ligeiramente repetitivo a partir da sua segunda metade, ainda mais porque alguns dos conflitos inseridos no decorrer da trama (como aquele entre Glória e seu primo, vivido por Tavinho Teixeira) pouco se sustentam ou recebem algum desenvolvimento satisfatório. É como se o longa quisesse trabalhar Glória e aquele macrocosmo de diversas perspectivas, mas fosse mais bem-sucedido em algumas do que em outras.
Apesar destes percalços, Lispectorante é eficaz no processo de integrar o caráter único da bibliografia de Clarice Lispector a um universo dotado de um sotaque (inclusive fílmico) deliciosamente próprio. Ajuda muito ter uma atriz do cacife de Marcélia Cartaxo, uma das maiores que já vimos neste país, adentrar de corpo e alma na obra para mostrar que sua relação com a autora não se encerrou lá em A Hora da Estrela, mas segue muito viva, 40 anos depois.
Nota: 3.5/5
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