Entrevista | Marcélia Cartaxo fala sobre "Lispectorante" e sua relação com a autora Clarice Lispector
- Ávila Oliveira
- há 20 horas
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, a atriz falou da construção de sua personagem e sobre as temáticas do espaço urbano e do legado de Clarice na obra.

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No próximo dia 08 de maio entra em cartaz Lispectorante, novo filme da cineasta Renata Pinheiro, que teve sua estreia no Festival do Rio de 2024. No filme, Glória Hartman (Marcélia Cartaxo), uma mulher madura que atravessa uma crise existencial e financeira, volta à sua cidade natal, que passa por um processo de abandono. Através de uma fenda nas ruínas de onde morou a escritora Clarice Lispector, Glória começa a ver cenas fantásticas que vão alterar sua vida.
A premiada atriz Marcélia Cartaxo, que protagoniza o longa-metragem, conversou com exclusividade com o Oxente Pipoca e falou sobre seu processo de construção da personagem, sobre memórias de centros urbanos e sobre sua relação com a autora Clarice Lispector.
Confira a entrevista na íntegra:
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): "Lispectorante" não é uma cinebiografia da Clarice Lispector, mas tem ela como ponto de partida para contar a história da protagonista. Eu gostaria de saber como é sua relação com a autora desde "A Hora da Estrela" até aqui. Você chegou a estudar algo especificamente para esta personagem e descobriu algo que não sabia dela, ou você usou da sua carga que já tinha?
Marcélia Cartaxo: Olha, ao longo da minha carreira eu vi muita coisa sobre Clarice, muitos estudos acadêmicos. Quando a Suzana Amaral me preparou para fazer A Hora da Estrela e me fez conhecer a Macabéa, ela me contou um pouco a história da Clarice. Que ela tinha passado por Alagoas, tinha morado lá, depois ela morou no Recife e com isso ela foi observando muitas questões sociais do povo nordestino. E isso se deu principalmente assim, na infância dela, que é onde as coisas mais cristalizam na nossa vida. Então, a Clarice teve um conhecimento muito profundo sobre a realidade das mulheres, das estruturas sociais, da coragem, da força e do trabalho dos nordestinos, por conta das vivências dela. E sempre também notando as lutas existenciais, de sobrevivência e de resistência.
E foi muito incrível conhecer o livro A Hora da Estrela e vivenciar a Macabéa. E depois ao longo da minha história, porque esse ano se completam 40 anos do filme A Hora da Estrela, eu fui acompanhando devagar e com tempo toda a trajetória da Clarice e da literatura dela. Participei de muitos eventos, baladas literárias, vi no teatro, vi filmes, li muitas dissertações, sabe?
E sempre tinha algo a descobrir sobre aquela mulher forte que ela foi, a mulher presente e importante na nossa história. Ela se fez presente nas crônicas, no jeito dela ser, no jeito de falar das mulheres e pelas mulheres, na forma de colocar em termo pessoa tudo aquilo que as mulheres não podiam falar, não tinham a liberdade de falar.
Então ela aplicou na sua obra muitas coisas que ela vivenciou pelo Brasil e pelo mundo. Então, eu fiquei muito lisonjeada de representar essa mulher que tem como base essa outra grande mulher. Muitas pessoas me perguntam sobre essa minha relação com ela por conta de A Hora da Estrela. E eu falo que as minhas referências foram mais na mulher que ela foi do que na escrita especificamente, porque ela tinha aquele estilo muito sofisticado e rebuscado no texto. Mas quando a gente toma conhecimento e acompanha tudo no dia a dia, vai percebendo os assuntos aos miúdos, e vendo adaptações no teatro, no cinema, e na própria literatura, a gente toma conhecimento da importância dela.
E acho que o trabalho dela nunca vai morrer. Enquanto houver literatura, e presenças de professores, alunos e gente apaixonada, nem ela e nem a obra dela vão morrer. E eu me sinto imortal através da Clarice Lispector.

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Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Eu queria falar agora sobre Recife. Eu sei que você é paraibana, mas já rodou o Nordeste e o Brasil todo à trabalho. Qual era seu grau de afinidade com aquele cenário, com o bairro da Boa Vista, com a Praça Maciel Pinheiro, com o Rio Capibaribe... você fez alguma pesquisa específica sobre o lugar como sua personagem faz naquela cena do hotel?
Marcélia Cartaxo: Na verdade, eu não conhecia Recife, aqui do lado, né? A gente conhece tão pouco as nossas regiões. E eu fui conhecer Recife, na verdade, no papel da Glória. Eu imaginei que tive que sair muito cedo de Recife. E ao voltar para aquele lugar, eu me senti uma mulher renovada de tudo, diferente. Ela resgatando aquelas memórias, a família, a casa que era da mãe dela. Isso foi me ajudando.
E as referências também, porque ela voltou bem madura, vamos dizer, quase uma mulher sessentona ali, né? E quando ela chegou ali ela começa a ver que aquele bairro dela já não tinha mais aquele frescor da sua memória, que o frescor estava dando lugar a um pouco de degradação, de tudo. Assim como assim, a vida dela. A vida dela, a casa da família dela, a tia dela também, todas as lembranças estavam se deteriorando. Então eu senti um pouco aquilo ali, sabe? Imaginei a mesma coisa ao voltar para minha casa, ao voltar para João Pessoa. Me senti um pouco deslocada daquele lugar, mas ao mesmo tempo com uma alegria que só realmente quem retorna para um lugar que você ama, sente. Imaginei a saudade dela, o desejo de passar por aquelas ruas.
E eu fiquei com vontade de conhecer aquele lugar, aquela casa da Clarice que já teve vida, já morou uma família. Eu imaginei que aquele lugar ali da casa dela, da estátua dela, deveria ser um lugar muito lindo, muito vibrante. E hoje a gente vê aquela praça precisando de um trato, a casa dela, só as paredes em volta com aquela placa em frente. E os outros monumentos resistindo a tudo isso também. Sim. né? Vi uma reportagem recentemente, falando sobre a degradação das estátuas que representam as personalidades de uma cidade, e falta de manutenção delas, todas pichadas, todas já em estado meio degradante.
Aí a gente olha e fica imaginando o tempo, as memórias, e isso me dá uma nostalgia muito grande. Esse filme me traz um pouco de nostalgia, de como era, do que já foi, de como a arte poderia mudar. Porque eu penso que os Centros das cidades deveriam ser entregues a todos os artistas, porque os artistas transformam, transgridem, refazem as estruturas, e eles ajudariam a ocupar os espaços para a gente não os perder. E isso ia atrair o comércio, atrair a movimentação, atrair as artes, manter a nossa história.
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Queria saber como foi o processo de construção da sua personagem e do filme. Porque este é um filme que tem um estilo próprio, a Renata [Pinheiro] tem um estilo bem distinto de filmar. Como foi seu primeiro contato com o texto e o que foi mudando, ou o que você só foi percebendo quando estava filmando?
Marcélia Cartaxo: Eu conheço bem o trabalho da Renata desde o filme de Cláudio Assis que participei e que ela fez a cenografia (Baixio das Bestas). E aos poucos eu fui vendo os filmes da Renata, fui vendo que ela tem uma diversidade muito grande de referências, né? Renata não fica só num tema. E quando ela me falou que ia ser a história de uma artista plástica eu já comecei a estudar, como eu faço com todos os outros trabalhos meus.
Já comecei a ver como é um artista, visitei artistas plásticos. Fui observar, porque o meu trabalho é assim de muita concentração, muita observação. E procurei entender e sentir as memórias, as memórias das emoções e as memórias corporais que ajudam a compor o ritmo e a caracterização. Então, eu junto tudo isso, que na verdade são parte de uma coisa só. Mas eu realmente busco lá fora, eu sempre busco no tipo de personagem, busco no tema em que o diretor me dá, para poder eu começar a criar visualmente como vai ser essa personagem. Como ela vai se relacionar, como é que ela vai se mostrar parte desse jogo, da trama dessa história.
E aí eu procuro ver um pouco um lado com muito humor também. Porque do outro lado eu já conheço bastante, que é o lado de transbordar as emoções. Então eu procuro ver com humor, procuro ver um desenho dessa personagem que não canse assim o espectador. Tem que ter um gracejo, tem que ter um molho, algo que crie uma liga com quem está assistindo.
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Para finalizar, a gente sempre pede indicações de filmes brasileiros que você tenha como favoritos, tenha como referência, ou que você ache que mais pessoas precisam conhecer.
Marcélia Cartaxo: Eu gosto muito de O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira) (2019), do Bertrand Lira. Esse é um filme que deveria ser mais visto, porque ele é um documentário, mas ao mesmo tempo tem muito humor, e tem muitos atores fazendo depoimentos importantes em relação ao amor, às frustrações dos amores, e mesmo assim sempre querem ele de volta.
Gosto muito de Bye Bye Brasil (1979), o filme de Cacá Diegues que foi feito com Zé Wilker e a Betty Faria. É um filme muito lindo, é uma delícia, porque ele mostra aquela dinâmica de circo itinerante e tem humor bem brasileiro.
E O Céu de Suely (2006), acho também lindo e sinto uma nostalgia daquele trabalho sempre que vejo. Embora eu tenha uma participação pequena, eu acho que o tema dele é importante por mostrar uma mulher, mãe solteira, naquela situação, o contexto social e as dificuldades da vida. Gosto muito do João Miguel, que trabalhou comigo em Pacarrete (2019), e acho que ele e Hermila Guedes estão muito bem no filme.
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