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Crítica | Suçuarana

  • Foto do escritor: Caio Augusto
    Caio Augusto
  • há 6 dias
  • 4 min de leitura

Quando a jornada importa mais que o destino.

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Divulgação


Suçuarana, road movie dirigido por Clarissa Campolina e Sérgio Borges e grande vencedor da última edição do Festival de Brasília, onde conquistou cinco Candangos, estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 11 de setembro. O longa poderá ser visto em salas de Belo Horizonte, Fortaleza, João Pessoa, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Vitória.


Dora (Sinara Teles) é uma mulher sem raízes. Há mais de uma década percorre as estradas do Brasil, passando de cidade em cidade sem se fixar em lugar algum. Não tem família, filhos ou amizades que a prendam a um ponto específico. Até mesmo o cachorro que insiste em acompanhá-la parece mais um fardo do que uma companhia, e ela tenta se livrar dele sempre que pode. Aos que encontra pelo caminho, diz estar em busca de Suçuarana, um Eldorado íntimo, lembrado apenas pelas palavras da mãe já falecida e cuja existência é incerta. No fundo, sua jornada precisa de uma razão, ainda que imaginária, para que ela continue a se mover.


Suçuarana é um ótimo exemplo de um cinema brasileiro que lida bem com a ideia de deslocamento, de modo que ele se manifesta tanto no espaço físico quanto nas escolhas estéticas do filme, construindo uma estética movente que ultrapassa o simples registro para se afirmar como gesto político. Ele não apenas revela trajetórias individuais ou coletivas, mas produz novas formas de ver e sentir o mundo através da vivência da personagem. Nesse sentido, o cinema não registra deslocamentos, ele os cria, reconfigurando paisagens, memórias e relações sociais. 


E Suçuarana não se trata de um exemplo isolado, mas sim de uma construção de um cinema brasileiro perceptível nas últimas duas décadas: a de narrativas que fazem da caminhada, da errância, do andarilho e do trânsito de seus personagens pelo território nacional mais do que uma coincidência formal, mas uma verdadeira matriz de sentido, como é visto no filme Arábia (2017). Dora parte em busca de um lugar que talvez exista apenas na memória fragmentada ou na imaginação, em que de algum modo o seu corpo ocupa esses espaços de forma política.


Pelo caminho, Dora cruza com pessoas que oferecem ajuda, e o olhar da obra se volta, sobretudo, para as mulheres, como operárias, mães solo, cobradoras de ônibus e donas de boteco. Além da figura masculina representada aqui pelo personagem de Carlos Francisco que, após esquecer um casaco, retribui a devolução com dinheiro escondido no bolso. Esses encontros funcionam como lembretes de uma vida enraizada, que a vida de andarilho inevitavelmente deixa para trás. 


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Os diretores retratam como esses encontros, mesmo que não levem a lugar nenhum, perpetuam as simplicidades da vida como a de compartilhar uma simples conversa durante a noite. Em vez de romances transformadores ou amizades consolidadas pelo acaso, o filme adota a lógica de uma personagem em constante movimento que não se prende a nada nem a ninguém, mas que carrega um pouco desses encontros à medida que avança a um destino que pouco importa. Penso que no cinema, o clímax é menos prazeroso que a jornada que percorremos, mesmo que ela não nos leve a lugar algum, e a personagem da Dora representa muito bem esse sentimento.


O filme ecoa, de maneira contemporânea, ao cinema de Kelly Reichardt (Wendy e Lucy) e Agnès Varda (Sem Teto Nem Lei), trazendo um diferencial que se apoia em uma realismo mágico, que surge através do personagem do cachorro que acompanha Dora em diferentes momentos do filme, e que mesmo rejeitado inicialmente, retorna sobrevivendo a intempéries e obstáculos. Tornado metáfora de afeto e pertencimento, o animal funciona como contraponto à recusa da personagem em aceitar vínculos. O cachorro “Encrenca” surge como um guia ambíguo, uma presença que dialoga com Dora e suas necessidades, mas nunca da maneira esperada.


Clarissa Campolina e Sérgio Borges trazem para a obra uma sensação de suspensão do tempo como uma das marcas mais fortes do filme. O longa parece deslocar-se de uma lógica cronológica linear para criar uma atmosfera em que o tempo deixa de ser medida e passa a ser sensação. Dora, a protagonista, vive há mais de uma década na estrada, mas nunca sabemos ao certo quanto tempo, de modo que a passagem temporal se dilui na rotina de deslocamentos, encontros passageiros e silêncios. São fragmentos do cotidiano que surgem através da forma do filme, que valoriza o desgaste dos espaços e dos corpos sugerem um tempo que não corre para frente, mas que se dobra sobre si mesmo, e em instantes quase banais que ganham peso pelo modo como são observados.


Por fim, Suçuarana é a materialização desse devir, de um cinema que não busca respostas definitivas, mas abraça o movimento incessante da vida. Suçuarana, mais do que a utopia que a protagonista persegue, pode ser entendida como a própria onça-parda, um ser solitário, noturno, que insiste em existir em territórios transformados pela ação humana. 


Nota: 4/5


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