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Entrevista | Diretores e elenco falam sobre “Suçuarana”: “É resistência em estado bruto”

  • Foto do escritor: Caio Augusto
    Caio Augusto
  • 10 de set.
  • 7 min de leitura

Em entrevista ao Oxente Pipoca, equipe destacou como o filme constrói sua atmosfera noturna, marcada pelo mistério, vazio e resistência da protagonista Dora.

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Suçuarana é o mais recente lançamento distribuído pela Embaúba Filmes teve uma longa jornada através do circuito de premiações e chega no dia 11 de setembro nos cinemas. No longa, Dora vive há mais de 10 anos pelas estradas brasileiras. Sem raízes que a prendam a algum lugar, Dora viaja de uma cidade a outra sem estabelecer morada em lugar nenhum. Dora, porém, está em busca de Suçuarana, uma terra desconhecida e aparentemente misteriosa que sua falecida mãe mencionava. Pela região mineradora, Dora vaga na procura desse espaço e de trabalho. Sua jornada se complica quando, após um acidente, a mulher reencontra um cachorro que havia abandonado. Entre as dificuldades e os riscos desse movimento constante, ele a guia até uma aldeia afastada de trabalhores fabris onde Dora encontra abrigo e consolo temporário.


O Oxente Pipoca entrevistou Clarissa Campolina, Sérgio Borges e Sinara Teles sobre Suçuarana, destacando como a noite, a estrada e o cachorro funcionam como elementos centrais na construção da atmosfera do filme e da trajetória de Dora. Os cineastas também compartilharam referências do cinema mundial e indicaram obras brasileiras que dialogam com os temas do longa.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): O filme tem várias cenas noturnas que criam uma atmosfera particular, quase de suspensão, especialmente nas estradas percorridas por Dora. Muitas vezes a iluminação é bem baixa, reforçando a ideia de vazio. Como vocês pensaram essa estética da noite, a iluminação e o silêncio no filme?


Clarissa Campolina: A gente queria uma imagem que pudesse ser preenchida, que não entregasse tudo. Trabalhamos muito nesse jogo entre o que se vê e o que não se vê, que dialoga diretamente com a própria Dora, que busca algo que não sabe se realmente existe. A noite escura trazia esse lugar do mistério, da solidão e do vazio, mas também a sensação de “o que está acontecendo aqui?”. Isso se conecta até com a presença do cachorro, um personagem misterioso e fantástico.


Sérgio Borges: Também havia essa ideia de reforçar o caráter destemido da Dora, de ser uma personagem não domesticável. A imagem dela caminhando sozinha por estradas à noite ajuda a construir isso. Quando ela encontra a comunidade pela primeira vez, por exemplo, é também numa cena noturna, que vai revelando aos poucos o espaço. A noite contribui para o extra-campo, algo que foi um norte da fotografia em todo o filme, de dia ou de noite.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): Dora é uma personagem marcada pela ausência de pertencimento. Como foi o processo de criação para dar vida a essa personagem?


Sinara Teles: Não sei se a Dora é exatamente marcada por uma ausência de pertencimento. Talvez seja mais uma escolha pela não permanência. E, a partir disso, surge um outro tipo de pertencimento: ela se torna parte dos lugares onde escolhe estar, mesmo que por um breve espaço de tempo, seja num posto de gasolina, numa conversa dentro de um ônibus ou numa carona.


Ela busca sempre uma honestidade nas relações. Busca não atrapalhar, não sacanear o outro. Está em busca da própria sobrevivência, claro, mas sem passar por cima das pessoas. Existe um sentimento de injustiça que paira sobre ela, ligado à precariedade da vida e à dureza das próprias escolhas. Mas, ao mesmo tempo, há uma casca dura que já se acostumou a isso e que torna possível uma presença sincera, real, no momento em que está. Por isso, eu penso que o pertencimento da Dora não está necessariamente no entorno, mas sim nela mesma. Ela sabe quem é, onde está e o que quer. Essa certeza interna é o que a faz optar, escolher e continuar a caminhar.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): Clarissa, você citou o cachorro. No roteiro, ele funciona como uma figura guia, ligada a esse realismo mágico e ao fantástico do filme. Como surgiu a ideia desse personagem e como ele dialoga com Dora?


Clarissa Campolina:  O filme nasceu do impacto de um livro chamado A Fera Nasceu. A gente usou o livro como inspiração, mais para uma transcrição do que para uma adaptação literal. Desde o início, existia essa ideia de uma fera que ronda a personagem, e o cachorro surgiu desse lugar. Aos poucos, ele foi ganhando outros contornos. Não queríamos que fosse só um fantasma ou uma alegoria, mas um personagem que também tem materialidade: ele come, aparece, desaparece, interage. Ao mesmo tempo, funciona como espelho da Dora, com quem ela pode expressar afeto. Ele a guia não de forma realista, mas como se fossem conectados.


Sérgio Borges: Para mim, ele começou como uma fera fantasmagórica, mas logo quisemos materializar essa presença. Ele não é apenas psicológico, está de fato na narrativa. Vejo o cachorro como um guia, um abridor de caminhos. Como o filme tem muitos personagens negros, e a trilha dialoga com música de Orixá, houve quem dissesse que parecia um filme de Xangô, e o cachorro carrega esse simbolismo também. Ele soma significados, além de ser reflexo da própria Dora.


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Caio Augusto (Oxente Pipoca): Dora rejeita vínculos e prefere contar apenas consigo mesma. Você acha que ela representa um tipo de resistência, ou mais uma adaptação forçada às condições de vida?


Sinara Teles: Com certeza, eu vejo a Dora como uma forma de resistência. Ela é uma mulher que reivindica ser dona de si, dona da sua própria liberdade, sem se curvar às regras, aos vínculos e às amarras que a sociedade impõe. Quantas mulheres batalham todos os dias para conquistar esse lugar de autonomia? A Dora paga o preço por isso, claro — muitas vezes esbarrando numa condição de vida precária. Mas, no fundo, essa precariedade nasce da resistência em permanecer fiel à sua escolha, ao que ela quis ser. É uma escolha de liberdade, e acho importante deixar isso evidente.


Em Suçuarana, acho que as condições de vida se apresentam e se traduzem nas paisagens devastadas pela mineração no território de Minas Gerais. Essa devastação, que à primeira vista parece restrita a uma região, também fala de algo maior e mais universal: a destruição do meio ambiente e a dificuldade de pensar uma vida que abrace o coletivo, que possa ser uma vida de cuidado, de olhar para o outro, e que abrace o coletivo. A Dora carrega uma força dentro, uma força de resistência. É coragem de não olhar pra trás e ousadia de olhar pra frente, de se lançar pra frente. Isso, pra mim, é resistência pura. É desprendimento total. É não se deixar domesticar. Enfim, resistência em estado bruto.


Caio Augusto (Oxente Pipoca):  Assistindo ao filme, me vieram algumas referências cinematográficas, como o cinema de Kelly Reichardt, com Wendy e Lucy, e Agnès Varda com Sem Teto Nem Lei. Vocês tiveram essas referências na concepção do filme?


Sérgio Borges: Sim, totalmente. Tanto Kelly Reichardt de forma geral, quanto Sem Teto Nem Lei, em especial. Esse filme também traz a figura de um cachorro de forma muito marcante. Clarissa já havia trabalhado antes com o tema do andarilho, então algumas referências também vêm dos trabalhos anteriores dela.


Clarissa Campolina: Além dessas, tivemos também como referência Wanda, da Barbara Loden, filmado em 16mm, o que dialoga com a segunda parte do nosso filme. Há outras que me fogem de nome agora, mas Sem Teto Nem Lei foi certeiro no seu olhar.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): A estrada é quase outro personagem do filme. O que mais te marcou na experiência de filmar nesses cenários de deslocamento constante?


Sinara Teles: Sim, a estrada é um personagem do filme. Eu sinto que existe uma alma que antecede, um histórico desse personagem-estrada. Essa alma, que também é a alma da Dora, nasce muito da colaboração e da provocação da diretora Clarissa Campolina. Já em um trabalho dela de 2006, aparece a figura de um andarilho que atravessa o país, caminhando de Belo Horizonte até Recife ao longo de oito anos. Essa travessia, essa condição de transitoriedade e insistência, de paisagens que mudam com o tempo, foi algo muito inspirador para mim.


Trago também, na minha bagagem, a pesquisa com a personagem Luisa, que interpreto desde 2010 no espetáculo Meu Canto de Graça, da Cóccix Companhia Teatral. Luisa é uma pessoa em situação de rua, que vive à margem, exposta ao perigo, à selvageria, à ferocidade da vida urbana. Esse lugar da vulnerabilidade e da rua trouxe reflexões que se somaram na construção da alma da Dora. Foi assim que fomos moldando essa estrada interior, esse lançar de Dora para o mundo.


O que mais me marcou no processo foram justamente essas sensações contraditórias da estrada: o perigo, a porosidade, e a aspereza. Os carros e caminhões que passam muito perto, a mineração cortando o horizonte, o cano de descarga que solta CO₂ no rosto. É tudo aquilo que nos desconecta da nossa essência, do que somos de fato. Mas, ao mesmo tempo, havia a liberdade: o vento no rosto, os pés fincados na terra, a sensação de ser parte do todo, do mundo. É um estado de risco, mas também de potência e de liberdade.


Caio Augusto (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca temos uma tradição de pedir aos nossos entrevistados que indiquem filmes brasileiros que achem que o público deveria assistir. Quais são as indicações de vocês?


Sérgio Borges: Eu indicaria Iracema – Uma Transa Amazônica, do Jorge Bodanzky. É um filme híbrido, que mistura ficção e documentário, e sempre foi uma grande referência para mim. Acho que dialoga bem com o que buscamos nesse filme.


Clarissa Campolina: Eu sugeriria A Hora da Estrela, da Suzana Amaral. Apesar da distância de linguagem, ele traz uma potência do feminino que faria uma bela sessão dupla com o nosso filme.


Sinara Teles: Olha, eu poderia indicar muitos filmes brasileiros maravilhosos que estão aí em grande destaque, mas vou escolher alguns que me tocaram profundamente, no meu quentinho do coração. O primeiro é A Vida Invisível, do Karim Aïnouz, um filme delicado e poderoso sobre as ausências e silêncios que atravessam a vida de duas irmãs. Depois, indico O Dia que Te Conheci, do André Novais Oliveira, da Filmes de Plástico, que me emocionou pela sensibilidade com que fala do encontro e do afeto em meio ao cotidiano.


Quero também destacar o documentário Estou Me Guardando Para Quando o Carnaval Chegar, do Marcelo Gomes, que traz um retrato belíssimo e crítico sobre trabalho, festa e sobrevivência em Toritama, no agreste pernambucano. E, por fim, Jogo de Cena, do Eduardo Coutinho, que é sempre uma experiência arrebatadora, nos fazendo refletir sobre as fronteiras entre realidade, ficção e memória. São filmes que mexeram comigo e que eu gostaria muito que o público tivesse a oportunidade de assistir.


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