Crítica | Um Minuto é Uma Eternidade Para Quem Está Sofrendo (Curta-se 24)
- Caio Augusto

- 10 de nov.
- 5 min de leitura
O homem que contempla em seu “material de vida” a própria pulsação do existir.

Me permito escrever este texto me colocando em um fio de navalha, no qual sou amigo de um dos realizadores há muitos anos e que, ao saber que eu assistiria ao filme, me cobrou honestidade em minhas impressões. O que é algo que prezo bastante, pois busco me colocar, de algum modo, como reagente à linguagem cinematográfica, um exercício de deixar que o filme revele minhas emoções, ainda que elas não coincidam entre si. Assumindo esse lugar, eu poderia afirmar que, de algum modo, estou habituado com algumas imagens que vemos no filme, já que se trata de um filme em que Wesley Pereira de Castro e Fábio Rogério propõem uma sequência de um personagem enclausurado em sua própria casa, preso com seus próprios pensamentos, tendo que lutar para sobreviver entre alucinações provocadas por sua saúde mental.
Apesar de ter sido filmado durante a pandemia de Covid-19, eu estaria sendo injusto ao reduzir esse filme àquela famosa caixinha de "filmes pandêmicos". Não me leve a mal, não é que não haja bons filmes de pandemia; lembro do ótimo Seguindo Todos os Protocolos (2022). Mas recuso reduzir o filme em questão a isso, pois, apesar de acompanharmos Wesley de fato enclausurado em sua própria casa, é mais complexo do que isso, já que a sucessão de cenas prova que, na verdade, ele está enclausurado em sua própria mente e o tempo o perfura nas entranhas. Afinal, um minuto é uma eternidade para quem está sofrendo.
Dentro da dinâmica do filme, embarcamos em sucessivas sequências de uma espécie de diário filmado pelo próprio Wesley, remetendo a um cinema devaneador de Jonas Mekas. Mas aqui Wesley filma tudo com um celular, dado de presente por uma vizinha, como um diário visual apto a captar pensamentos, contemplações, banalidades. Quase como uma lógica das redes sociais, do feed infinito, das selfies, mas a grande diferença é que Wesley se põe totalmente inverso ao funcionamento desses meios. Claro que, ao se filmar de forma até narcisista, a performance acaba existindo; não há como fugir disso. Mas ele se expõe enquanto homem LGBT, periférico, que permite que o espectador o enxergue às avessas, não para ser digno de pena, mas sim para se mostrar de fato nu, em carne e osso, como uma pessoa que constantemente se afunda em melancolia e depressão, e que muitas vezes é salvo pelo próprio cinema.
Afinal, estamos lidando com um indivíduo de 40 anos que teve grande parte da vida atravessada pelo cinema enquanto força motriz da sua existência. Desse modo, temos momentos de Wesley declamando textos, como em um monólogo bressaneano. Vislumbrando os raios verdes que a vida lhe oferece, como Éric Rohmer. A saturação do que é visto como radical contrariando o banal, como em John Waters. O sentimento afetuoso e tragicômico, como em Inferninho, de Guto Parente. E, claro, a própria essência de Jean-Claude Bernardet, nome ao qual o filme é dedicado, assim como o crítico Marcelo Ikeda, conforme revelam seus realizadores.
O filme se revela também como um potente ponto de discussão sobre as possibilidades expressivas do cinema digital contemporâneo. Ao fazer uso de um simples celular como ferramenta de criação, o gesto de filmar adquire uma dimensão quase ontológica, resgatando algo da essência primordial do cinema: o impulso de registrar, de olhar e de compartilhar o mundo a partir de uma experiência pessoal e sensível. O cinema de bolso proposto por WPC e Fábio Rogério se faz em um lugar onde a precariedade técnica é substituída pela evocação de profundidade estética. O digital expandindo a linguagem.
Wesley imprime seu olhar escopofílico na obra, como um cinéfilo que não apenas observa o mundo, mas o reconstrói a partir de sua própria experiência de ver e ser visto. Sua relação com a câmera é de cumplicidade e confissão. Cada plano, cada respiração e cada desvio de olhar carregam o peso de uma vida que encontrou no ato de filmar um modo de organizar o caos interior e de elaborar o próprio sofrimento, permitindo-se sangrar através de luz e sombra. Ao mesmo tempo em que se coloca diante da lente, Wesley também a devolve ao espectador, convidando-o a partilhar de sua vulnerabilidade e da sua performance. Wesley se filma: o cinema torna-se uma extensão de seus impulsos, um fluxo que percorre o corpo por completo, da respiração ao mais íntimo dos seus músculos.

Coloco WPC nesse lugar de personagem justamente quando penso na contribuição de Fábio Rogério, por se revelar um cineasta que se debruça em uma interação de muito respeito e interesse nas pessoas que filma, como Wesley, Jean-Claude Bernardet, Ivan Valença e Nadir da Mussuca, no modo em que Fábio busca nelas algo que escapa ao olhar banal. Seus filmes parecem tensionar essa perspectiva, trazendo uma certa ambiguidade, permitindo multifacetar seus personagens pela montagem fílmica. A existência de Wesley está profundamente atravessada pela linguagem cinematográfica, e Fábio tem total consciência disso. Quando Wesley expõe sua coleção de DVDs com diversos filmes e se revela eclético, na verdade estamos vendo uma espécie de anatomia de um homem, uma autobiografia da sua forma de olhar para o mundo.
O ritual do cotidiano de Wesley acaba revelando-o como um personagem a emergir com uma força quase indomável, diluindo as fronteiras entre o que é encenado e o que é vivido. Há uma oscilação constante entre a presença e a performance, entre o sujeito que filma e aquele que é filmado; não à toa, Wesley filma seu reflexo em um espelho constantemente, fragmentando-se diante da tela. A ficção e o documentário se contaminam mutuamente, revelando um cinema que não busca a verdade como algo fixo, mas como um estado em permanente construção. Um espaço de revelação e de muitos riscos e vulnerabilidades.
São riscos que me fazem refletir sobre como o meio é a mensagem e como o público pode reagir a cenas de nudez, escatologia, fluidos ou até mesmo se fechar em um moralismo barato. No entanto, o filme parece menos interessado em provocar choque ou desconforto e mais em propor uma naturalidade da vida cotidiana, na qual o corpo, o desejo e a matéria orgânica existem como parte de uma experiência humana integral. Não há erotização gratuita nem gesto escatológico pelo excesso, mas sim uma tentativa de reconciliação com o que é mais elementar: o corpo como casa, o corpo como prova da existência. Ao filmar o que é considerado “impróprio” sob a lente de uma rotina banal, o filme dissolve o tabu e restitui ao espectador um olhar desarmado sobre o que é, afinal, apenas vida. A vida escapa de Wesley e o reencontra, como se o próprio corpo bebesse seu reflexo.
Nota: 4/5





