Entrevista | Marcelo Lordello e Marco Ricca falam sobre “Paterno”
- Caio Augusto

- 6 de ago.
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, diretor e ator falam como o filme dialoga com a realidade política e social atual, os desafios da produção e a importância de retratar questões urbanas e humanas de forma autêntica.

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Paterno, novo longa de Marcelo Lordello, estreia nos cinemas de todo o Brasil no dia 07 de agosto. Na trama, Sérgio (Marco Ricca) deseja conquistar a direção da empreiteira da família para realizar um sonho há muito esquecido. Acaba descobrindo um segredo da vida do seu pai que ameaça seus planos, revelando quem ele realmente se tornou.
O Oxente Pipoca entrevistou Marcelo Lordello e Marco Ricca, onde discutiram os desafios e a relevância política de Paterno, que atravessou diferentes governos brasileiros desde sua concepção até a estreia. Eles refletem sobre temas como isolamento, conflito geracional e as tensões do patriarcalismo, além do simbolismo do carro blindado como personagem. Também recomendam filmes nacionais que inspiraram suas trajetórias e dialogam com a obra, convidando o público a uma experiência cinematográfica profunda e reflexiva.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): Ao analisar o contexto do filme, da produção até a realização e agora a exibição nos cinemas, eu percebi que o filme passa por diferentes governos. Então, ele é rodado, se eu não me engano, no governo Temer, e finalizado em pleno governo Bolsonaro. E agora sendo exibido no governo Lula. Como você encara esse intervalo temporal e como ele afeta o filme? Teve algum receio de que o filme pudesse se tornar datado ou se ele se atualizou com o tempo, justamente por tratar alguns temas recorrentes da política brasileira?
Marcelo Lordello: Eu que agradeço o interesse pelo filme. É muito importante a gente ter sites que são dedicados ao cinema nacional e com esse carinho todo especial pro cinema nordestino, que a gente sabe a guerra que é fazer os filmes. Mas a gente também sabe o quanto a gente tem para falar e para mostrar, né? Sendo do Nordeste. Eu vou até mais atrás, assim: esse filme foi concebido no governo Dilma. Aí, esse filme atravessou um golpe. Esse filme atravessou o governo Temer, nesse projeto de destruição do Ministério da Cultura, que foi aprofundado enquanto projeto de anticivilização cultural mesmo, no governo Bolsonaro. E aí atravessamos a pandemia também. Mas, de alguma forma, a gente perseverou, né? Existia, sim, um receio de o filme ficar datado, com alguma marca temporal. Mas algumas coisas estão me fazendo refletir que não.
Essa questão do contexto e das disputas de poder na cidade, enfim, dessa aristocracia que tem grana e a gentrificação de determinados setores, é uma coisa muito recorrente no Brasil, em várias cidades, na verdade, no mundo todo, né? Então, a alta cidade, quando tem muita concentração de capital, isso acaba acontecendo. E aqui não seria diferente. Brasília Teimosa ainda não foi gentrificada, não sei de onde você está falando, mas aqui em Recife a gente tem uma resistência de um bairro que é oriundo de uma ocupação popular, né? Da década de 60, justamente durante a criação de Brasília. As pessoas tentavam tirar essa população de lá e ela resistia, né? Por isso o nome “Brasília”, por causa da época da construção da nova capital nacional, e “Teimosa” porque ela persistia.
A gente, que é local, sabe do interesse dessas grandes incorporadoras no bairro, que é um bairro com uma identidade muito própria, com uma população muito local, que tomou aquele lugar como seu. E a gente conhece os interesses, porque, em termos de geografia, é muito interessante, sabe? Então o capital está de olho lá, sempre. Mas o filme também trata, isso é o pano de fundo, né? Sobre essa crise desse homem de meia-idade e de como o patriarcalismo interferiu na vida dele. De como ele fez parte, ele escolheu fazer parte... Mas o que acontece quando você, sei lá, abandona um sonho? Ou abandona um sonho de liberdade mesmo, desse "covil" que é a família dele para ele? Então, essa junção do contexto com a trajetória desse personagem trágico, eu acho que torna o filme ainda atual, sabe? E eu fico feliz com isso, porque, de alguma forma, ele pode trazer reflexões e debates para o público quando assistir.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): O seu personagem me chama bastante atenção por esse aspecto de isolamento que ele carrega, algo perceptível tanto fisicamente quanto emocionalmente. Isso aparece nas relações dele, sejam pessoais ou profissionais. A direção evidencia muito bem essa característica ao posicioná-lo frequentemente em ambientes reclusos. Gostaria de saber como foi, para você, lidar com esse elemento na construção do personagem. E, também, de que forma esse isolamento influencia na relação dele com os outros personagens em cena?
Marco Ricca: É um cara realmente solitário, obsessivo. Tem lá o seu grande sonho como arquiteto, mas, de fato, é um ser sozinho. Quer dizer, todos nós somos, de certa forma, não é? Ontem mesmo eu estava assistindo a uma reportagem com o Walmor Chagas, olha só, e ele dizia que só se cria na solidão. O ator, os arquitetos... Enfim, esse tipo de projeto ligado ao sonho, às artes plásticas... Se você pensar bem, escrever um livro, por exemplo, tudo isso é muito solitário. E é justamente nessa dor da solidão que acho que esse personagem se encaixa. E você captou isso muito bem. O roteiro e a direção conseguiram, de maneira não discursiva, deixar isso evidente e ainda apoiar o personagem nesse sentido: revelar essa solidão por meio dos espaços fechados, o escritório, a casa, a cadeira, o carro, enfim. A câmera sempre muito próxima da nuca desse personagem cria um efeito visual muito bonito e potente, que conduz e sustenta a narrativa. A câmera realmente contribui muito para isso.
Outro fator importante foi a oportunidade de trabalhar com atores extraordinários. Acredito que você assistiu ao filme e sabe do que estou falando. São atores que conheci ali mesmo, durante as filmagens, muitos deles, acho que a maioria, com exceção do Nelson Vasconcelos, e que colaboraram intensamente com o processo. São intérpretes que, ao primeiro olhar, você já percebe que entenderam o personagem. A contracenação com eles facilitava muito o trabalho. Foi, nesse sentido, uma experiência bastante enriquecedora.
Então, sim, é um personagem profundamente solitário. E, curiosamente, vejo que, de alguma forma, ele também reflete certos aspectos da nossa exposição contemporânea. Estamos cada vez mais visíveis, mais expostos e, talvez, ainda assim, igualmente sozinhos.

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Caio Augusto (Oxente Pipoca): Marcelo, ainda dentro dessa temática da reclusão e do isolamento, há um “personagem” no filme que considero crucial: o carro. Gostaria de saber quais foram suas referências, visuais e conceituais, ao criá-lo. A presença do carro me parece bastante marcante, pois ele funciona como um espaço ambíguo: ao mesmo tempo em que aprisiona, também afasta. Ele estabelece um recorte social bastante evidente. Você utiliza o som de maneira muito precisa para acentuar essa sensação, e o fato de ser um carro blindado reforça ainda mais essa ideia de clausura, proteção e separação. De que forma ele se articula com o personagem do Sérgio e com a proposta geral do filme?
Marcelo Lordello: É muito bom ouvir isso, considerar o carro como um personagem. Para mim, ele funciona como uma extensão do Sérgio, e essa era uma ideia que eu trabalhava bastante com a fotógrafa Bárbara Alves, o editor de som Nicolau Dominguez e o mixador Jean, da França. A proposta era transformar o carro em uma ferramenta narrativa, algo que dialogasse com o personagem em várias camadas visuais e sonoras. O fato de ser um carro blindado reforça essa ideia de isolamento, clausura e recorte social. A decisão de mantê-lo sempre filmado por dentro, sem mostrar seu exterior até o final, foi justamente para acentuar essa sensação de obsessão e prisão.
A edição de som foi fundamental nesse processo. Trabalhamos cuidadosamente para equilibrar os sons internos e externos do carro, criando a sensação de um espaço fechado que, ao mesmo tempo, é invadido pela cidade. Há uma cena em que o som do fechamento da porta parece ser capturado, abafado, e isso reforça essa ideia de confinamento. O carro também tem um papel simbólico na relação entre pai e filho. Em certo momento, o filho assume esse espaço, esse “trono”, mas com um peso diferente. E acho que isso reverbera no público, que muitas vezes sai do filme dizendo: “Como esse filme é tenso, como é angustiante!”. E muito disso vem justamente da forma como esse carro foi concebido como elemento central da narrativa.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): Para finalizar, Marco, gostaria que você falasse um pouco sobre a relação do seu personagem com o filho, especialmente em relação ao conflito geracional que existe entre eles. Também gostaria que comentasse sobre o passado progressista do Sérgio, que o filho tenta resgatar, e como essa dinâmica reflete conflitos familiares comuns na realidade brasileira.
Marco Ricca: Na verdade, é exatamente isso. Ele gosta muito de ver o filho com as mesmas referências que ele tinha na juventude. A música, por exemplo, é muito importante nesse contexto, as escolhas, como as feitas pelo Lorde, refletem esse passado progressista e o posicionamento político da época. Porém, também é recorrente observar, e isso é um fato da burguesia, que, no começo da vida, a burguesia está nas universidades públicas, participa de movimentos estudantis e de ligas sociais, mas com o tempo acaba retornando para sua “toca”, assumindo o conservadorismo. De certa forma, é isso que acontece com o personagem.
Ele é um homem frustrado que, de maneira quase osmótica, transmite essa frustração e tenta, de algum modo, trazer o filho para o mesmo lado. Em vez de dar liberdade, ele o puxa para perto. Essa dinâmica é muito familiar e muito interessante no filme, porque o personagem também teve essa relação com o pai. No decorrer da narrativa, entendemos que o pai dele era uma figura que o cercava bastante, que realizou muitos projetos por encomenda, mas nunca conseguiu fazer aquilo que realmente gostava. Esse pai está se afastando, e a figura matriarcal, forte não só no Nordeste, mas no Brasil inteiro e talvez no mundo, começa a assumir espaço.
O mundo está cada vez mais conservador, e as pessoas tendem a puxar outras para um lado cada vez mais sombrio. Acho que o Sérgio representa isso: um personagem multifacetado que admira e ama o filho. Pelo menos, é essa mensagem que tentamos transmitir. O filho, por sua vez, às vezes parece alheio, usa fones de ouvido, está só ouvindo música, quer apenas entrar na faculdade e demonstra certo constrangimento diante do carro blindado do pai. Isso o incomoda, assim como incomoda o comportamento do filho, que não é aceito pelo pai. O garoto participa de manifestações, está ao lado de um tio mais progressista, que talvez seja uma espécie de mentor ou “grande voz” para ele.
Sérgio se incomoda com o que o filho diz, como se ele estivesse tentando roubar um direito que acredita ser seu — o direito de manter o filho sob sua influência, dentro do conservadorismo que defende. O filme se chama Paterno, e essas relações familiares são realmente fortes e muito marcantes na narrativa. Quando assisti ao filme, me identifiquei com muitas atitudes do personagem. Isso nos leva a refletir sobre como, às vezes, acreditamos estar dando liberdade aos jovens, mas, na verdade, estamos os segurando. Eles estão ali para romper, essa é a função deles: romper com o passado, avançar. Não é preciso “matar o pai”, como diz a psicanálise, para seguir em frente. Essa ideia me incomoda. Acredito que o importante é manter esse diálogo e essa tensão, sem a necessidade de rompimentos radicais.
Caio Augusto (Oxente Pipoca): Por fim, temos uma tradição no Oxente Pipoca de pedir que vocês indiquem algum filme do cinema brasileiro que gostem, além de Paterno, é claro, para que nossa audiência possa assistir e conhecer outras obras.
Marco Ricca: Vou falar sobre filmes que me inspiraram. Sou muito fã do cinema brasileiro; além de atuar como militante e fazer muitos filmes, cresci assistindo a essa produção. Para mim, dois filmes foram fundamentalmente importantes: Bye Bye Brasil, de Cacá Diegues, e Tudo Bem, de Arnaldo Jabor, que, na verdade, é um verdadeiro tratado sobre o sistema político brasileiro e a forma como ele funciona. Esses filmes me marcaram profundamente, tanto cinematograficamente quanto pelo trabalho dos intérpretes. O jazz presente nessas obras é um fenômeno no Brasil. Não apenas ele, mas todo o elenco, Fábio Júnior, Bete Faria, mostram a força desses filmes. Cacá Diegues realmente conseguiu realizar uma obra de grande importância. Tudo Bem foi o segundo que me veio à cabeça, mas sei que há muitos outros.
Marcelo Lordello: Aproveitando o momento, gostaria também de recomendar dois filmes que têm uma relação muito forte com Paterno. O primeiro é São Bernardo, de Leon Hirszman, com Otto Bastos, que para mim foi um estudo de personagem muito profundo e duro, e que me deu coragem para trazer o Sérgio à tela. O segundo é um filme que entrou recentemente em cartaz, depois de anos fora das salas: Iracema, uma Transa Amazônica, de Bodansky e Sena, com Edna Perillo. Para mim, é um dos melhores filmes nacionais, um marco que quebrou paradigmas e foi fundamental como referência e fonte de coragem para meu primeiro filme, Eles Voltam. Como Iracema está em cartaz agora, recomendo que o público faça uma “casadinha”: assistir a Iracema e depois a Paterno.





