Entrevista | “O cinema não existe”: Cristiano Burlan fala sobre seus filmes “Ulisses" e "Nosferatu”
- Vinicius Oliveira

- há 6 dias
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Longas são parte de uma série de adaptações literárias feitas pelo diretor, que concedeu entrevista ao Oxente Pipoca.

Reconhecido por sua filmografia vasta e diversificada, o diretor Cristiano Burlan está em uma nova fase da carreira, marcada por adaptações de seminais obras do cânone literário mundial. Em Ulisses, Burlan traz o protagonista de A Odisseia para as ruas da São Paulo atual, ao passo em que em Nosferatu, exibido na 49ª Mostra de SP, ele se propõe a fazer uma releitura de uma das mais famosas encarnações de Drácula. Eles serão seguidos por uma nova versão de Dom Quixote, ainda sem previsão de estreia.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de entrevistar Burlan, que falou a respeito do seu interesse em reler e até subverter essas obras literárias, além das colaborações com gigantes do nosso cinema como Jean-Claude Bernardet e Helena Ignez e também sobre o aspecto intertextual dos seus filmes, que trazem elementos de outras artes. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Tanto “Ulisses” quanto “Nosferatu” são parte de uma trilogia que se propõe a fazer uma releitura experimental e contemporânea de grandes clássicos da literatura. O que te motivou a fazer essa releitura e por que a escolha por essas obras em específico, além de “Dom Quixote”, que será o terceiro filme da trilogia?
Cristiano Burlan: Eu tenho sempre uma relação controversa e um pouco ruidosa com esses cânones, e o meu maior interesse é criar propor uma provocação antes de mais nada, porque depois de tantos anos, depois de tanto tempo, algumas dessas obras ainda nos falam. Posso citar, por exemplo, Shakespeare, porque ele é atual depois de quase 500 anos. E como eu sou uma pessoa que vem do teatro, então essas obras tem muita influência na dramaturgia também.
Sobre esse conceito de experimental, eu vou discordar gentilmente de você. Eu o acho um pouco limitador, porque o que que é experimental? Alguém que experimenta a forma? Para mim o cinema praticamente não nasceu ainda, ele já tem 100 e poucos anos. Se a gente for comparar à pintura, a literatura, as artes plásticas, ele é praticamente uma arte embrionária e pouco se experimentou nele. A gente está muito preso a um conceito aristotélico em termos narrativos e a um conceito griffithiano em termos de sintaxe cinematográfica. A forma do cinema evoluiu muito pouco, então acho que existem muitas possibilidades.
Eu prefiro mais usar o termo “alguém que experimenta” do que “alguém que é experimental”. Tanto no teatro como no cinema, eu não vejo o sentido se eu não me colocar numa posição de risco. Não seria como trabalhar numa fábrica, reproduzir as coisas. E também acho que tem todo tipo de cinema para todo tipo de público e espectador, e na verdade, acho que o cinema nem existe. Essa frase é do Paulo Emilio Salles Gomes, me foi dita pelo meu amigo Jean-Claude Bernardet, que faleceu há pouco tempo: “"O cinema não existe, [o que existe] são filmes e as relações que se constrói durante a pintura do filme e as relações que constrói do filme com o seu público”.
Sobre a trilogia, ela na verdade se tornou uma tetralogia, porque além do Dom Quixote, que está mais próximo de ser produzido, eu estou trabalhando numa nova versão de Fausto. Fausto vai ser uma personagem feminina, a Faustina, é uma mãe solitária na periferia de São Paulo, migrante do Rio Grande do Norte e reside no filme numa região onde eu trabalho muito. Minha parceira, a Ana Carolina Marinho [atriz em Ulisses e Nosferatu], é do Rio Grande do Norte, e tem uma um grupo de teatro lá na região periférica, o Estopô Balaio, e reside artisticamente há muito tempo lá. Então, tem esse trânsito de linguagem de teatro e cinema e uma necessidade profunda de me colocar em risco, eu e meus próximos, já que eu não faço cinema sozinho.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Ambos os filmes estão entre as últimas performances do saudoso Jean-Claude Bernardet. Como foi o processo de trabalhar com ele? E também com a Helena Ignez em “Nosferatu”, que aliás tem aquele momento metalinguístico da recriação da famosa cena dela em “A Família do Barulho”.
Cristiano Burlan: Antes de mais nada, eles são meus vizinhos e meus amigos. A gente mora aqui no Centro e Jean-Claude fez sete filmes comigo, Helena uns quatro ou cinco, começa a perder a conta. Mas eram parceiros costumazes e, claro, são duas personalidades históricas do cinema brasileiro, pessoas muito vigorosas e exigentes, consigo mesmos e com os outros. O que isso acaba gerando? O trabalho acaba sendo elevado a outros enunciados. Existe uma provocação muito grande e um respeito mútuo também.
Jean-Claude foi meu amigo desde 2011, se não me engano. Eu realizei um filme com ele, que a gente até estava montando junto, onde eu fazia entrevistas, ele me entrevistava também. Existia um respeito muito grande meu por ele e a recíproca era verdadeira. Ele foi consultor de alguns roteiros também, além de ter atuado em alguns filmes meus. E era uma pessoa ímpar, não só um pensador ímpar, um ator ímpar. Ele era um ator não convencional na verdade, não se assumia como ator. Eu perguntava: "Se você não é ator, tá fazendo o filme, o que que você é?" Ele falou: "Sou um bailarino". Então, pedia para ele dançasse para minha câmera.
E Helena é uma atriz ímpar da nossa cultura, uma entidade. Como eu disse para você, ela antes de mais nada é minha amiga e minha vizinha. Ela sempre tenta se colocar nesse lugar de provocadora também, trabalhou com Sganzerla, com Glauber, com Bressane, e é uma realizadora também. Trabalhou em filmes como O Padre e a Moça, era amiga do Orson Welles, atuou em A Grande Feira, do Roberto Pires, um dos filmes mais importantes do cinema baiano e brasileiro. É uma pessoa que fez parte do nosso cinema e do nosso teatro também, acredito que isso nos une.
E sobre essa homenagem, essa piscadela que faço a A Família do Barulho em Nosferatu. Eu acho o Júlio Bressane um diretor fenomenal, até quando ele é menor é superior a tudo que eu vejo. E aí a ideia era fazer essa relação entre a Helena atriz de hoje com a Helena atriz do passado. Eu sou uma pessoa que ensaia pouco, mas conversa, toma muito café, liga para os atores. E os atores falam uma palavra que eu acho muito bonita, “liberdade”. Mas poucos atores utilizaram essa liberdade quando eu a dei. Mas os grandes atores, eles se expandem. E Helena é uma grande atriz, ela tem um profundo domínio do espaço fílmico, chego a dizer que ela tem consciência do valor do plano em que ela está sendo filmada.

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Me chama a atenção como os filmes fazem essa interlocução com outras artes, como as sequências de apresentações musicais e dança em “Nosferatu”. Você próprio já tem uma carreira muito bem estabelecida no teatro, então o que te motiva a explorar essa intertextualidade nos filmes?
Cristiano Burlan: Posso dizer para você que a minha morada é o teatro. Embora eu tenha muita dificuldade em produzir teatro, ele faz parte da minha formação. Então, existe esse transtorno de linguagem, a intertextualidade é um conceito bem apropriado. Ao mesmo tempo, no Nosferatu os textos que eu cito dentro de um espaço fílmico – que aparentemente é um teatro e era um teatro – são de um livro do Bresson, que é um diretor que que de uma certa maneira tentava excluir uma certa teatralidade. Então, o ruído que eu crio ali na cena é porque existe um distanciamento da palavra quando é narrado, e em outros momentos do filme existe quase uma emolduração da palavra.
Nos filmes do Bresson os atores falavam como se tivesse lendo o texto, e ele queria excluir uma certa teatralidade. Mas na verdade eu tento trazer no Nosferatu é uma volta à palavra, não ter medo de se emocionar diante de uma câmera e falando uma palavra. Às vezes, a gente escorrega um pouco nessa busca por um certo um falso naturalismo que a TV trouxe e impregnou o cinema. Eu mesmo já reproduzi isso, um certo realismo social de fundo de quintal impregnado por uma interpretação pseudo-naturalista que muito vem da TV, como se os atores não tivessem a capacidade de ser emissores de uma emoção. Eu também não acredito que o ator é responsável por emitir a emoção. Ele é muito mais um receptor de emoção do que um emissor.
As artes plásticas também tem muita influência para mim, assim como a música. Na Mostra eu também lancei um filme chamado O Espaço Que se Move, que vem de uma fala do Michelangelo Antonioni para o Jack Nicholson depois que eles terminam o Profissão Repórter: “Jack, me desculpe, mas para mim os atores são e sempre serão um espaço que se move". É um é um conceito muito bonito para se pensar num corpo do ator numa voz que preenche um espaço vazio e um papel em branco. Então com certeza as artes plásticas, a música, a literatura e a arquitetura, tudo isso exerce influência em mim.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, nós do Oxente Pipoca gostamos de pedir aos nossos entrevistados que indiquem filmes brasileiros que achem que nosso público deva assistir. Quais seriam suas indicações?
Cristiano Burlan: Indico o trabalho do Aloysio Raulino, que foi um grande diretor e fotógrafo, só dirigiu de longa-metragem o Noites Paraguaias, mas revolucionou o documentário paulista nos anos 1970. Além do Noites, indico também dois curtas dele, Porto de Santos e Lacrimosa.
Eu estou revisitando a obra de um diretor paulista que gosto muito, o Ozualdo Candeias. Cito três filmes dele, A Margem, A Opção ou As Rosas da Estrada – esse tem um título duplo – e a versão dele de Hamlet [A Herança]. Também cito um filme que falei aqui, A Grande Feira, e um do [Paulo César] Saraceni, chamado Porto das Caixas, que tem uma fotografia primorosa do Mário Carneiro. Enfim, o nosso cinema é muito rico, muito diverso, esses foram alguns dos filmes que andei revisitando recentemente.





