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Crítica | O Beijo no Asfalto (1981)

Foto do escritor: Vinicius OliveiraVinicius Oliveira

A trágica atemporalidade do moralismo e hipocrisia brasileiros.

Divulgação


Homofobia, machismo, fake news, violência policial... poderia estar falando do Brasil de 2025 (infelizmente), mas falo do de 1981, palco no qual se desenrola O Beijo no Asfalto, segunda adaptação da seminal peça de Nelson Rodrigues, aqui dirigida por Bruno Barreto e roteirizada por Doc Comparato. A premissa, creio eu, é bastante conhecida: um homem é atropelado no Rio de Janeiro e é socorrido por outro homem, Arandir, a quem pede por um beijo antes de um morrer. Concedido o beijo, Arandir se vê condenado e perseguido pela sociedade, em razão das ações amorais de um repórter sensacionalista, Amado Pinheiro, e um delegado truculento, Cunha.


Curiosamente, Bruno Barreto escolhe começar seu filme não pelo beijo em si, mas pelo pós: vemos a polícia chegando na cena do acidente, onde o homem já está morto, e em seguida Amado (Daniel Filho) e Cunha (Oswaldo Loureiro) maquinando o plano que destruirá a reputação de Arandir (Ney Latorraca) em nome da mesquinhez de ambos. Tudo que sabemos de início do beijo parte do relato de Amado para Cunha, ou de Aprígio (Tarcísio Meira), sogro de Arandir, para suas filhas Selminha (Cristiane Torloni) e Dália (Lídia Brondi). Demora para vermos o protagonista ou escutarmos de sua boca seu próprio relato, mas à essa altura é tarde demais: o estrago já está feito e todos têm sua opinião sobre o ocorrido.


Nessa omissão do beijo que dá título ao filme, Bruno constrói uma atmosfera de constante ambiguidade, que diz respeito às ações de Arandir e à sua própria sexualidade, posta em cheque por todos, até mesmo pela sua esposa a partir de certo ponto. Importa menos saber se ele é homossexual e sim como seu ato (de gentileza? De paixão?) é lido por uma sociedade tão preconceituosa e moralista, que contrasta seus valores conservadores com uma sede de sangue animalesca, conforme a vida do personagem é destruída até um culminar trágico e surpreendente. A atuação do saudoso Ney Latorraca é essencial para adquirirmos empatia pelo personagem, que permanece irredutível em suas convicções sobre o que fez e também sobre o que sente por Selminha, mesmo quando esta passa a duvidar dele. Sua moralidade em meio a uma sociedade amoral (e também imoral, conforme os vícios e pecados secretos de outros personagens vêm à tona) é sua força e também sua ruína.


Divulgação


Também se trata de uma atuação que não necessariamente corresponde a um arquétipo social, como evidenciado nas performances de Meira (o patriarcado), Ribeiro (a polícia) e Filho (a imprensa conivente). Tendo sido lançado nos anos finais da ditadura — o período da “lenta e gradual” abertura política, mas ainda de repressões —, O Beijo no Asfalto consegue capturar essa atmosfera ambivalente, onde os progressos feitos por essa sociedade após os ditos “anos de chumbo” não eliminam a carga histórica de preconceitos e violências (especialmente simbólicas) que diariamente moem tantos Arandirs até hoje.


Assistir O Beijo no Asfalto sob a luz do recrudescimento do conservadorismo e do fascismo no Brasil atual só aponta para a genialidade do texto original de Nelson Rodrigues — que, vale lembrar, é de 1961 —, mas também expõe a nossa própria falência e podridão enquanto sociedade. Com um dos melhores e mais emblemáticos planos finais do cinema brasileiro (“Arandir, Arandir, Arandir...”), é uma pequena obra-prima que merece ainda mais reconhecimento, não só por adaptar com êxito uma das peças mais notórias de um dos nossos maiores dramaturgos, mas por (lamentavelmente) dialogar tão com o Brasil de 1961, 1981 ou 2025, mostrando que os piores traços de nossa sociedade seguem firmes e fortes.


Nota: 4.5/5


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