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Crítica | Trilha Sonora Para um Golpe de Estado

Foto do escritor: Vinicius OliveiraVinicius Oliveira

Os horrores do colonialismo e imperialismo sob a pulsação inquietante do jazz

Foto: Divulgação


Em fevereiro de 1961, os músicos de jazz Abbey Lincoln e Max Roach invadiram, junto com outros manifestantes, o Conselho de Segurança da ONU para protestar contra o assassinato de Patrice Lumumba, então primeiro-ministro do recém-criado Estado do Congo. Esse, porém, é apenas o ponto de partida (e também clímax) da intrincada tapeçaria tecida pelo diretor belga Johan Grimonprez para denunciar os crimes de seu país natal no Congo e a cumplicidade das potências ocidentais com tais crimes durante a Guerra Fria.


Para tal denúncia, ele adota uma estratégia no mínimo curiosa, entrelaçando a história desses crimes e jogos de poder com o próprio jazz, para muito além das figuras de Lincoln e Roach (que, aliás, pouco aparecem no filme). O título Trilha Sonora Para um Golpe de Estado, aqui, tem um duplo — ou até mesmo triplo — sentido: tanto diz respeito à seleção musical que acompanha o filme quanto ao fato de que os próprios EUA naquele período, se aproveitando da popularidade do jazz a nível nacional e global, enviam alguns dos seus mais famosos músicos do gênero — como Louis Armstrong e Dizzy Gillespie — como “embaixadores” mundo afora, especialmente aos países mais vinculados ao bloco comunista da União Soviética e de Nikita Kruschev. É uma curiosa aula de história e geopolítica que ilustra o poder e influência massivos dos bens culturais.


Quando falo em um “triplo sentido”, me refiro que, mesmo formalmente, Grimonprez conduz seu filme como uma obra de jazz: dinâmica, pulsante, por vezes errática, mas incrivelmente virtuosa. O trabalho de montagem de Rik Chaubet, nesse sentido, é para ser aplaudido, já que ele tem a hercúlea tarefa de conciliar um sem-número de imagens de arquivo, seja das reuniões no Conselho de Segurança da ONU, entrevistas tiradas de outros materiais, trechos de livros e relatórios expostos como textos em tela, gravações feitas no Congo colonial e recém-independente, performances dos artistas de jazz (que incluem, para além dos já citados, Miles Davis, Nina Simone, Thelonius Monk, John Coltrane e muitos outros) e muito mais. É bem verdade que o fluxo incessante de informações e gravações pode chegar a exaurir em determinados momentos, em especial na última hora, mas é notável como Grimonprez e Chaubet conseguem articular fontes tão distintas e diversas para construir um relato contundente — e muitas vezes revoltantes — do que o Ocidente fez às nações africanas, em especial ao Congo naquele período (e que infelizmente continua a fazer), mesmo sob o discurso da “democracia” e da “paz”.

Foto: Divulgação


Apesar de ser um esforço em sua maior parte recompensador, é notório que, em meio ao fluxo narrativo e informacional que conduz o filme, alguns tópicos são subdesenvolvidos ou até se perdem pelo caminho. Por exemplo, a própria ênfase inicial dada no jazz como essa máquina ideológica de “soft power” acaba sendo deixada de lado depois de certo momento, com a trilha de jazz sendo mantida mais num nível circunstancial do que efetivamente diegético. Além do mais, há por vezes uma certa dependência do texto em tela (com as falas, excertos e trechos de materiais escritos e gravações de áudio) que não condiz com a potência das imagens por si só. E, embora não veja como intencional da parte de Grimonprez focar na realidade dos afro-americanos à época para a discussão aqui abordada — para além do envolvimento político de artistas e intelectuais negros dos EUA com a questão africana —, é no mínimo curioso que, ao enfim discutir a morte de Lumumba, o filme opte por centrar na reação justamente deste grupo, quando até aqui vinha apresentando de maneira bem sólida a questão do Congo e os impactos do evento nele ocorridos para o próprio processo de libertação das ex-colônias africanas, dentro de um contexto geopolítico global.


Apesar dessas irregularidades em algumas das suas escolhas formais e narrativas, Trilha Sonora Para um Golpe de Estado é cinema-denúncia feito de maneira inventiva e original, retratando uma história muitas vezes desconhecida aqui no Ocidente (o motivo sabemos bem) e que reflete tantas injustiças e disparidades ocorridas em outros processos históricos, seja na África, Ásia ou nas Américas. Goste-se ou não de jazz, a utilização dele como um fio condutor (ainda que frágil em alguns momentos), seja na forma ou na própria trama, como instrumento de repressão ou de libertação, é o grande diferencial através do qual o documentário emerge e nos impacta com sua mensagem.


3.5/5


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