Entrevista | "A gente precisa de um filme que fale sobre escutar o próximo”: Daniel Rezende fala sobre “O Filho de Mil Homens”
- Vinicius Oliveira

- há 7 dias
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Em entrevista ao Oxente Pipoca, diretor comentou sobre sua relação pessoal com o projeto e a importância das temáticas que ele discute para o nosso tempo.

Estreia hoje (19) O Filho de Mil Homens, novo filme de Daniel Rezende (Bingo – O Rei das Manhãs, Turma da Mônica – Laços e Lições). Baseado no livro homônimo de Valter Hugo Mãe, o longa-metragem conta a história do pescador Crisóstomo (Rodrigo Santoro) que cresceu isolado da sociedade e sonha em ter um filho. A história não-linear entrelaça a vida de Crisóstomo e do seu filho adotivo Camilo (Miguel Martines) com as de outros personagens que adentram ou moldam suas vidas.
O Oxente Pipoca teve a oportunidade de assistir O Filho de Mil Homens em sua estreia durante a 49ª Mostra de SP, e você pode conferir a crítica dele aqui (bem como a entrevista com Valter Hugo Mãe). Agora, pudemos entrevistar Daniel Rezende, que falou da natureza pessoal do projeto – o primeiro que roteirizou, além de dirigir – e de como ele ressoa numa sociedade cada vez mais individualista. Você pode conferir a entrevista na íntegra abaixo:
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Na primeira exibição do filme na Cinemateca você citou como esse era um projeto bastante pessoal para você e do impacto que o livro original te causou. Depois que entrevistei o Valter Hugo Mãe foi fácil entender, porque a sensibilidade dele é muito marcante. Mas eu queria que você falasse mais do que te atraiu no livro e como foi o processo de trazê-lo para as telas, ainda mais considerando que você também citou que houve desafios nesse processo.
Daniel Rezende: Eu li o livro na pandemia, nunca tinha lido o Valter Hugo Mãe, me recomendaram. Eu comprei e logo no primeiro capítulo fiquei tão arrebatado com esse personagem Crisóstomo, fiquei tão arrebatado com a poética, com a sensibilidade que o Valter escreve, essa prosa poética. Fiquei tão arrebatado por uma visão de um masculino que não age pela força, pela violência, pela imposição, pelo conflito, e sim um masculino que de alguma forma a gente sente a angústia dele, sente o sofrimento e a solidão dele, e eu como homem me compadeci, me vi ali. E durante a leitura do livro fui conhecendo essas personagens todas buscando um lugar no mundo, um lugar de pertencimento, um lugar onde elas são acolhidas pelo que elas são e não pelo que a sociedade desenha para que sejamos.
Eu tenho poucas certezas na vida, mas tinha uma vontade muito grande de que esse fosse o próximo projeto que eu ia encarar como cineasta, como autor. Eu não sabia ainda que eu ia escrever o roteiro quando eu li o livro, achei que fosse só dirigir. E aí durante o processo eu descobri que tinha que transformar esse projeto cada vez mais numa visão muito pessoal da leitura que tive do livro, e olhar para dentro de mim e a minha desconstrução dos meus padrões de masculino, de sociedade, de maneira de entender os conceitos da vida. Era uma coisa que eu já tinha, já estava nesse processo, mas eu tinha que tentar trazer de uma maneira mais sensível, mais poética, mais empática, para o filme.
Então, respondendo à sua pergunta, eu fui atravessado pela sensibilidade do livro e busquei um projeto pro mundo que a gente tá vivendo hoje, que tá indo na contramão do coletivo, tá indo na contramão da escuta, do dar voz a pessoas que não tinham voz antes. Eu falei: "A gente precisa de um filme que fale sobre escutar o próximo, sobre acolher o próximo, sobre entender e enxergar o próximo com menos de com menos julgamento possível”.
Então eu fui atravessado por essa sensação e saí nessa dificílima jornada que era: como adaptar essa poesia do Valter Hugo Mãe para um filme sensorial que também vai hoje na contramão do algoritmo, na contramão do que se faz dramaturgicamente no mundo e no nosso país? Ele é muito diferente do que geralmente a dramaturgia brasileira retrata no cinema. Então, eu saí para fazer aquilo que eu não sabia fazer, que eu não tinha a menor ideia de como fazer. Então, era aí que eu queria ir.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Foi até interessante você falar disso, porque esteticamente falando esse é um filme muito diferente dos seus longas anteriores, tanto em termos de razão de aspecto da tela, a encenação, a fotografia, a direção dos atores, etc. Como foi esse processo de “se distanciar” do seu estilo de direção que você construiu até aqui, pensando no que você julgou mais adequado para adaptar o livro?
Daniel Rezende: Se você olhar até a minha jornada como montador e depois como diretor, verá que eu tenho um certo receio de me repetir. Então, se você olhar os filmes que eu montei – Cidade de Deus, Diários de Motocicleta, A Árvore da Vida, Tropa de Elite, O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias, Ensaio Sobre a Cegueira, são filmes que às vezes mal conversam entre si. Então, eu sempre busco e gosto de fazer aquilo que eu não tenho a menor ideia de como fazer. Se eu já sei como fazer, tenho bem pouco interesse em fazer. Só me instiga aquilo que eu não sei.
Bingo, Ninguém Tá Olhando, Turma da Mônica e as outras séries que eu fiz, elas têm uma coisa em comum: de alguma forma flertavam com o universo pop. Ainda que eu busque filmes com profundidade de dramaturgia, personagem, qualidade de realização, mas sempre buscando uma temática ou uma maneira estética e ou de dramaturgia que converse com o maior número de pessoas. Isso é uma coisa que está em mim, eu gosto de conversar com as pessoas. Bingo é uma biografia dramática, com tons engraçados, mas um drama; Ninguém Tá Olhando é uma comédia existencialista; depois eu fui fazer um universo infanto-juvenil, família, como o da Turma da Mônica. Agora, parti para um para um autor super conceituado, super amado, poético, sensorial, num drama super sensível, isso realmente estava muito além da onde eu poderia imaginar que eu iria como o próximo projeto.
Foi um desafio para mim mesmo, de querer descobrir um Daniel que eu não conhecia, descobrir um artista que ia para um lugar mais autoral ainda, porque eu acho que todo projeto tem a sua autoralidade, ele pode ser o mais comercial possível, mas tem que ter um autor ali que que defina o caminho do filme. Mas eu queria explorar até o meu limite de fazer um filme que tivesse pouco diálogo, em que a carga estivesse no olhar, nas simbologias, nos objetos, nas situações, no ambiente, nas locações.
Era muito difícil mexer com um livro que é tão amado pelos fãs do Valter Hugo Mãe, então eu quis me colocar à prova. Mais do que isso, foi o primeiro projeto que resolvi eu mesmo escrever o roteiro. Eu sempre fui muito próximo dos roteiristas dos outros trabalhos, mas nunca tinha sentado para fazer isso. Então eu me coloquei fora da zona de conforto durante todo o processo.

Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Eu li que o filme foi gravado tanto no litoral do Rio de Janeiro quanto na Chapada Diamantina. Como baiano, não posso deixar de puxar a sardinha pra filmes que foram gravados no meu estado, mas queria que você falasse da escolha por essas locações, especialmente considerando que os ambientes em que o filme se passa são cruciais para o desenrolar dessa narrativa, especialmente na figura ali de Crisóstomo e a relação dele com a natureza que o cerca.
Daniel Rezende: Acho que é uma coisa que parte um pouco do livro, da história original, porque a gente nunca sabe nem onde é, nem quando é. Esse lugar atemporal do não tempo, do não lugar, é, já pertence à história original. Eu queria trazer isso para o filme e é uma coisa que eu gosto, não situar num lugar para que os temas e discussões do filme, as personagens e aquilo que a gente sente com aquelas personagens, no final da história seja em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Tem gente que assiste o filme e fala: "Nossa, mas nessa época era assim". Mas eu falo: "Que época?”, porque na verdade tudo que acontece ali acontece hoje. Tudo o que está na tela tem hoje na casa das pessoas. O que a gente não tem no filme são coisas que marcam a época, então a gente não tem celular no filme, não tem televisão. A moto que o cara chega é uma moto de dois anos atrás, a música que eu escolhi para a avó do Camilo é uma música do Terno, do Tim Bernardes, que é uma música que não tem mais que uma década. Então, confundir o espectador é um artifício, e a gente precisava de um lugar que pudesse nos dar imageticamente tudo isso.
Por incrível que pareça, mesmo com a gente vivendo no Brasil, que tem uma das maiores costas do mundo, a praia de Crisóstomo foi a última locação que a gente encontrou. Era muito difícil achar uma praia que fosse remota o suficiente para que as pessoas não fossem nela, para a gente poder filmar tranquilamente, ao mesmo tempo em que tivesse uma acessibilidade para que você possa chegar com uma equipe de produção que às vezes tem 100 pessoas. Foi muito difícil achar um lugar assim, mas achamos em Búzios.
Quando eu estava escrevendo o roteiro, fui para Portugal porque queria ir na vila em que o Valter Hugo Mãe terminou de escrever o livro. Aí passei por muitas vilas de casa de pedra, muitas vilas de casa branca, e botei na minha cabeça que imageticamente o filme ia até a praia e ia ter pessoas que moram numa vila de casa de pedra, e também pessoas que moram numa vila de casa branca. Isso tudo tinha um conceito, eu queria que a vila parada no tempo representasse essa sociedade que está totalmente permeada pelas crenças limitantes, pelas doutrinas e que nos impedem, nos aprisionam no que a gente sente, no que a gente é, no que a gente deseja. Eu queria que as casas fossem todas meio iguais, ou todas de pedra ou todas de casa branca. Só que em Portugal você tem uma vila de casa de pedra e uma vila de casa branca a cada esquina. Aqui a gente não tem [risos].
Então a gente começou a buscar vila de casa de pedra, e acabamos chegando em Igatu-BA, porque lá tem muitas casas de pedra. Então a gente acabou vendo que ir para Bahia, para a Chapada Diamantina, era aproveitar e trazer o elemento da natureza com quem o personagem do Crisóstomo se relaciona no começo do filme. Ele é muito conectado com a natureza e pouquíssimo conectado com as relações interpessoais. Então era muito importante que a areia, a concha, as ondas, as árvores, as pedras, tudo isso fizesse parte da vida do Crisóstomo. Foi muito importante filmar na Chapada Diamantina e em Búzios, porque realmente viram um personagem do filme.
É essa ambientação que traz o realismo mágico de certa forma, que traz esse lugar que eu não sei onde é, mas é o Brasil. E mais do que isso, de novo voltando para a direção de arte, locação, objetos, tudo no filme tem um significado, e ajuda a gente a entrar nesse universo atemporal mágico, em que a gente sai desse tempo de hoje, do celular, das relações com pouco foco. O filme, de alguma forma, convida o espectador a entrar nesse universo para se jogar e para entrar dentro de cada personagem, então a gente precisa de um outro tempo para conseguir se conectar.
Então, o filme entra num estado contemplativo, meditativo, mas ao mesmo tempo muito participativo do espectador de se engajar para se conectar com essas personagens. E é muito impossível você não se conectar com essas personagens. Porque a gente se enxerga em cada uma delas. Todos nós sentimos angústia, solidão, buscamos pertencimento, passamos por coisas da vida que não tem a ver com a gente mesmo, e buscamos nas relações interpessoais um lugar de crescimento, acolhimento e empatia.
Vinícius Oliveira (Oxente Pipoca): Por fim, Daniel, nós do Oxente Pipoca sempre pedimos aos nossos entrevistados que indiquem filmes nacionais que o nosso público deva assistir. Quais seriam as suas indicações?
Daniel Rezende: Essa safra que a gente está vivendo é uma safra sem igual na história do país. Mas eu vou citar filmes que foram muito sensíveis e que me tocaram nos últimos tempos. Vou citar com certeza Sem Coração, da Nara Normande e do Tião; A Melhor Mãe do Mundo, da Anna Muylaert; Oeste Outra Vez; Malu, Ela e Eu, do Gustavo Moura e com a Andréa Beltrão; O Último Azul; Baby. São filmes que me tocaram, e que a gente tem que ir atrás para ver.
Pensando lá atrás, em filmes que eu trabalhei, você tem O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, que é um filme que eu amo, e também Narradores de Javé, da Eliane Caffé. Estou num momento de filmes que me conectam com o bom da humanidade.





