Entrevista | Marcelo Botta fala sobre “Betânia”
- Ávila Oliveira
- 14 de abr.
- 24 min de leitura
O diretor conversou com exclusividade com o Oxente Pipoca sobre seu primeiro longa-metragem, que acumula participações em festivais nacionais e internacionais.

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Depois do sucesso da exibição no 74º Festival de Berlim, o longa maranhense Betânia passou por mais de 20 festivais em 16 países. A lista inclui eventos de peso no cenário internacional, como os festivais de Guadalajara (México), Leeds (Inglaterra), Toulouse (França), Rio, Mostra de SP, Huelva (Espanha), Taiwan e o Malaysia International Film Festival, onde recebeu o prestigiado troféu New Hope Award. A estatueta abriu as portas do mercado asiático para o longa brasileiro.
Betânia passou por mais três festivais na Índia e outros dois na China após a premiação na Malásia. O filme chega aos cinemas do Maranhão no dia 24 de abril de 2025. O lançamento em todo Brasil será no dia 8 de maio, e você pode conferir a entrevista exclusiva feita pelo Oxente Pipoca com Marcelo Botta, diretor do longa, abaixo:
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Eu acompanhei algumas entrevistas contigo ano passado quando o filme estreou em Berlim, e sei que a ideia deste filme partiu de um documentário que você fez sobre a Dona Maria do Celso, que inspirou a personagem Betânia. E sei que você tem uma afinidade com o gênero documental e também com a comédia pelos seus trabalhos na MTV. Queria começar perguntando o que te motivou nessa jornada, seja na personagem ou no cenário, a dirigir um longa de ficção sobre esse ambiente? Por que você sentiu a vontade de fazer uma ficção a partir daquela realidade?
Marcelo Botta: Voltando lá atrás no meu trabalho, eu participei em 2001, quando eu tinha 16 anos, de um concurso de videoclipe na escola que era para você filmar uma versão sua de um videoclipe de alguma música conhecida. E na época estava estourando o Diário de um Detento dos Racionais. E ninguém queria saber muito de fazer trabalho de vídeo lá na escola que eu estudava em São Carlos, no interior de São Paulo. Então eu falei: "Cara, vamos fazer o clipe do Diário do Detento.” E a gente conseguiu que uma juíza me autorizasse, menor de idade, a ir numa cadeia com a câmera. Lá eu filmei tudo de modo documental, preso sendo libertado, preso saindo, preso chegando, ouvi atrocidades de todo tipo dos presos que eu entrevistei, e fizemos um vídeo que foi até premiado neste concurso da escola.
Então o primeiro trabalho, entre aspas, audiovisual da minha vida, já foi no documentário, e sobre uma coisa um pouco mais densa. Mas eu tive sempre dentro de mim essa coisa da comédia, de ser aquela pessoa que gosta de fazer a piadinha, de fazer uma leitura mais irônica das coisas, então eu gosto tanto de fazer rir, quanto de fazer chorar. Eu acho que para mim o audiovisual não é só contar histórias, eu acho que é a arte de causar emoção, de criar emoções e sensações. Acho ruim quando você assiste uma coisa e fica indiferente. É legal você sentir aquilo. Acho que nesse mundo que a gente vive onde as pessoas estão meio anestesiadas e meio hipnotizadas com essa questão dos algoritmos, das redes sociais e o modo de vida que a gente vive hoje, parece que todo mundo está um pouco letárgico.
A gente está inerte a essas situações que a gente está vivendo de tanta coisa acontecendo, de guerra, de crise climática, de toda essa guerra tarifária, do genocídio que tá acontecendo em Gaza. Parece que todo mundo anda meio anestesiado para não sentir as dores desse momento da humanidade.
E eu acho que o cinema ele tem esse papel de lembrar que a gente é humano, que a gente tem capacidade de sentir, que a gente tem sentimento, que a gente sorri, que a gente sente raiva, que a gente sente saudade, que a gente sente vontade de chorar, que a gente sente todo tipo de emoção, que é o que nos torna humanos. Acho que a inteligência artificial nunca vai ter essa capacidade de chorar e de rir que a gente tem. Então temos que nos apegar no humano.
Então eu tive, como você lembrou, os trabalhos na MTV, dos programas de comédia, mas eu sempre soube que meu sonho era o cinema. E aí quando eu tive a oportunidade de fazer uma série documental para TV, filmando histórias de pessoas inspiradoras de lugares isolados da América do Sul, foi muito bacana. A gente foi para o Atacama, Amazônia, Patagônia, filmamos no Chile, na Argentina, no Peru, na Bolívia, na Colômbia. E o último episódio foi no Brasil, no Maranhão, com a dona Maria do Celso. E foi um episódio que mexeu muito comigo. Eu tenho uma relação com a dona Maria até hoje. Ela fala: "Você é como um filho para mim” e eu sinto uma conexão muito grande com ela e com a família dela. Estive lá em 2018 para filmar, depois eu voltei em 2019, depois eu voltei em 2021, depois eu voltei em 2022, depois eu voltei em 2024.
Quase todo ano, desde que eu filmei com a dona Maria, eu volto e tive a oportunidade de fazer a travessia dos Lençóis diversas vezes, entender, conhecer diferentes povoados. Tive a oportunidade de conhecer Baixa Grande, Canto dos Atins, Ponta do Mangue, Pataca, Lavado, Queimada dos Brito, Queimada dos Paula, Betânia, Ponta Verde, Travosa, são muitos povoados diferentes que existem nos lençóis, são centenas de povoados e eu tive a oportunidade de conhecer uma dezena deles que foram muito importantes para mim, para observar o modo de vida deles. Como a gente vive nesse mundo muito conectado e todo mundo tem as mesmas influências, eu acho que esses lugares mais isolados, eles conseguem preservar um modo de vida e suas culturas de forma mais íntegra do que os lugares que estão mais difusos, onde a coisa já está mais misturada.
Nessa pesquisa a gente descobriu que além da riqueza da paisagem, que é mundialmente conhecida, que é um patrimônio da humanidade os Lençóis Maranhenses, que a grande riqueza dos Lençóis está na cultura do povo de lá. É um lugar onde você tem o Bumba Meu Boi, você tem os cantadores, os compositores que escrevem versos que falam sobre a realidade do povoado e dos Lençóis. Você tem muitos artistas locais, tem as incelenças que são cantadas nos velórios, os rituais que são feitos nos velórios, os rituais que são feitos nas diferentes etapas da a vida. E tudo isso me deixou muito fascinado ali em 2018, quando eu fiz essa imersão dos Lençóis.
3 anos depois a gente já estava naquela situação da pandemia, em 2021. Eu perdi muita gente próxima, realmente foi muito triste para mim, meu sogro, um tio, um primo, meus dois avôs. Eu perdi em um período de poucos meses, cinco pessoas muito próximas e aí veio aquela sensação de que “cara, o mundo vai acabar, vai todo mundo morrer e a gente não fez o filme que a gente queria.”
A gente ficou trabalhando para conseguir pagar as contas e fazer a produtora girar, mas a gente não conseguiu fazer um filme como a gente gostaria de ficção. Tínhamos essa coisa do documentário, fizemos séries de TV, mas não um longa de ficção mais autoral, nessa pegada que mistura os gêneros, drama e comédia, da forma que eu sempre sonhei em fazer. Falei: "Cara, será que o mundo vai acabar? A gente não vai ter nem tempo de fazer esse filme?" E aí eu falei com o meu sócio. Naquela época que não tinha nem Ministério da Cultura, a Ancine estava totalmente paralisada. A gente fez uma loucura de se arriscar e realizar esse filme contando com a equipe que a gente tem, muito foda, muito talentosa, muitas pessoas incríveis que que mergulharam nesse filme sem nem titubear.
Estava todo mundo trancado em casa no lockdown há mais de 2 anos e foi uma oportunidade que as pessoas sentiram de descomprimir, de sair daquele isolamento, daquela coisa claustrofóbica justamente ir para um lugar tão imenso que faz a gente se sentir tão pequenininho que são os Lençóis Maranhenses. Então, as pessoas abraçaram a causa de fazer esse filme de forma coletiva e igualitária, todo mundo ganhou um cachê igual para fazer a filmagem, foi uma coisa muito bonita.
Todos ganharam o mesmo valor por semana, porque era um filme que tinha só os recursos próprios para utilizar e era muito na raça. Então foi muito importante esse sentimento de todo mundo abraçar essa ideia de fazer um filme saindo da pandemia. Um filme que celebrasse a vida, mas mostrando também a morte, porém com uma mensagem de esperança no plano de fundo. Uma mulher de 65 anos que que ousa recomeçar a vida depois dos 65. Acho que é uma mensagem tão forte para todos nós enquanto humanidade que tivemos que enfrentar essa pandemia e agora estamos enfrentando genocídios, crise climática cada vez mais intensa, entre tantas outras coisas. Temos que buscar essa esperança. Por isso para mim o filme ele vem como um impulso. Eu mesmo procurando na vida um sentido, sabe?
Quando tudo está despedaçado, tudo está derretendo. Onde é que a gente encontra algum sentido para continuar lutando para viver? É na comunidade, na força do afeto, da família, da união das pessoas. E na beleza da vida, da natureza, da cultura, da arte, da música. É um filme que celebra a cultura dos Lençóis, e principalmente a cultura do Maranhão.
Eu sou um cara que me considero “emaranhado”, já venho para o Maranhão há muitos anos, e sou encantado com a cultura do Maranhão, a cultura do Nordeste como um todo, na verdade. Eu conheço muito dos estados do Nordeste, mas com o Maranhão eu tive essa relação muito de alma.
E eu estava falando com o meu sócio Gabriel [Di Giacomo] esses dias, que eu tinha uns 9, 10 anos, quando minha irmã mais velha começou a ouvir Bob Marley no último volume, ela tinha uns 14 anos na época. Ela ouvia Bob Marley no último volume o dia inteiro em casa, ela vivia com uma camisetona do Bob. Então ela me influenciou muito ali a ouvir Bob também. Tive oportunidade em 2012 de dirigir um programa com o [Marcelo] Adnet, o Adnet Viaja e a gente fez dois episódios na Jamaica, e pude filmar na Jamaica por uma semana.
E depois num momento muito difícil da minha vida, eu vi uma entrevista do MV Bill falando sobre o Alton Ellis, que é um músico muito importante do Rocksteady, que é o gênero musical que precede a terminologia reggae, ali da década de 60 e 70. E quando eu ouvi o Alton Ellis eu estava numa fase de depressão muito intensa na minha vida, tinha passado por uma série de coisas, estava em um momento muito muito baixo astral mesmo. E o MV Bill falando do Ellis soou como uma luz para mim. Eu conhecia muito do Bob Marley para frente. Aí eu comecei a ouvir o Bob Marley para trás, o que tinha na Jamaica antes.
E aquele momento lá para 2015 e 2016, eu sinto que assim como a Betânia renasceu, com a ideia de começar de novo, na minha vida foi muito importante aquele meu renascimento motivado pela música e pela cultura jamaicana. E rapidamente eu cheguei no Maranhão porque é a Jamaica brasileira. Em algum momento, alguém falou para mim: "Cara, e o Maranhão? Maranhão é a Jamaica brasileira".
Eu comecei a dar uma atenção maior ao Maranhão nas minhas pesquisas e eu falei: "Cara, eu preciso ir para o Maranhão". Foi aí que surgiu todo esse movimento de ir para a dona Maria do Celso, fazer o documentário e a história da dona Maria que me levou a querer fazer o Betânia. Então, a minha irmã ter colocado para o Bob Marley lá quando eu tinha 9 anos foi uma oportunidade que a vida me deu. Muita coisa veio dali. Sou muito grata à minha irmã por me apresentar o Bob Marley.
Eu gosto muito de pesquisar coisas atuais e antigas e tudo isso me deu uma vida, uma alegria de viver naquela época difícil que eu estava. Hoje eu tenho uma vida muito diferente. Eu me casei, eu tenho um filho, eu tenho alegria na vida, eu tenho vontade de viver. Mas naquele momento, 10 anos atrás, eu estava em um momento muito difícil. Eu digo que eu devo tudo que eu tenho ao reggae, a Jamaica mesmo, porque foi a Jamaica que me levou até o Maranhão. Foi a Jamaica que me levou até minha esposa. Eu estava num clube de reggae em São Paulo, que é o Fatiado Discos, num dia desses que estava ainda numa fase um pouco difícil da minha vida. Fui lá sozinho, fui sozinho para o rolê, imagina você ir sozinho para o rolê, você não conhece ninguém, fica ali meio por fora. E aí eu conheci a Mariana, Mariana Cristal, que é minha esposa, diretora de arte do filme Betânia também. Conheci ela no clube de reggae e hoje a gente é casado, a gente tem nosso filho. Até minha esposa e meu filho eu devo ao reggae, porque se eu não tivesse ido atrás do reggae naquele dia, naquele domingo, sozinho no clube de reggae, eu nem ia ter conhecido a mulher da minha vida.
Então, o reggae me salvou de tantas formas, eu penso que a cultura, a arte, ela tem esse poder, de salvar a gente, a arte salva. E eu tive essa oportunidade através da arte jamaicana, de conhecer o sabor da vida e a encontrar a arte do Maranhão. Quando eu cheguei no Maranhão, eu vi que era muito além do reggae, era muito além da Jamaica brasileira. Que o Maranhão ele pulsa a cultura em todos os lados.
Você anda aqui por esses centros históricos e você vê o Tambor de Crioula, o Bumba Meu Boi, a Capoeira, o Cacuriá, são tantas expressões artísticas assim como o reggae também. Isso tudo para mim é muito lindo. O Maranhão é um estado de uma riqueza cultural gigantesca, e eu sentia que ainda assim o Maranhão estava sub-representado na grande tela dos cinemas. Existem autores maranhenses importantíssimos, como Frederico Machado, na história toda do cinema. A gente tem uma juventude vindo aí, George Pedrosa, que fez o curta-metragem Casa de Bonecos, que foi para Roterdã. A gente tem uma série de novas e novos cineastas maranhenses que estão fazendo curtas. Eu acho que vai ter uma onda do cinema maranhense vindo por aí que já está sendo construída.
Mas eu sentia naquele momento que talvez o Maranhão merecesse uma longa-metragem que mostrasse essa força da expressão cultural maranhense e com potencial para viajar ao mundo de festivais internacionais, mas que também pudesse ser um filme popular. Porque ainda existe essa distinção entre o mundo dos filmes de festival de um lado e o mundo do cinema comercial na outra ponta.
E eu tenho essa vontade, de conciliar e de criar um lugar onde os nossos filmes possam ser apreciados no Festival de Berlim, mas também possam ser apreciados por uma família maranhense que vai ver o filme e vive aquela experiência coletiva, porque a gente fala que Betânia é cinema comunitário. Ele foi feito em comunidade.
Se não fossem as pessoas que moram em Santo Amaro do Maranhão e no povoado de Betânia, que pertence ao município de Santo Amaro do Maranhão, se não fossem as pessoas da comunidade, esse filme não existiria. Esse filme fala sobre a comunidade, mas ele foi feito pela comunidade. Por isso a gente fala que é um cinema comunitário, a gente aprendeu uma forma de fazer cinema. O Betânia começou como um filme muito pequenininho, mas ele foi se impondo e apresentando que na verdade é um filme grandioso.
Você olhando parece que é um filme que tem um orçamento gigantesco, mas é porque teve muita gente talentosa e muita gente que abraçou o filme e que foi apoiador, que fez parceria, muita gente local. Um filme com elenco 100% maranhense, que desde o início era uma coisa muito importante para mim.
Tudo isso confluiu no nascimento do filme. Eu voltei lá para quando eu tinha 9 anos de idade, ouvindo Bob Marley, passa por quando eu tinha 15, 16 anos e fiz o documentário inspirado na música do Racionais e toda a minha vivência na comédia. Eu pensava: "Cara, eu gosto dessa mistura de gênero, eu gosto de borrar o limite entre os gêneros, então eu vou tentar fazer isso no cinema".
Então, eu queria fazer um filme que tivesse uma história do Sul Global, mas que trouxesse as histórias do Sul Global mais leves. Muitas vezes os autores colocam só a coisa pesada, só a parte dura da vida da gente que vive na América Latina ou África.
Comecei a pensar, por que que eu tenho tanta dificuldade de achar um filme para assistir? Primeira coisa que eu já estou com um bode completo de filme feito no Hemisfério Norte. Para eu ver um filme estadunidense hoje tem que ser uma coisa muito absurda. É realmente muito difícil para mim, é muito difícil, não tenho nada contra, mas eu já vi demais na minha infância, na nossa infância, na Sessão da Tarde e nas locadoras etc., acho que já vi o suficiente.
Então quando eu tinha poucos, 19, 20 anos, comecei na faculdade, eu vi muito cinema italiano, vi muito muito cinema francês, muito bem, obrigado. Agora, desde meus 30 anos, hoje eu estou com 40, então faz uns 10 anos que eu foquei em assistir o cinema do Sul Global. Me interessa ver filmes da Ásia, do Sudeste Asiático, da África, da América Latina, do Caribe, filmes antigos desses lugares, filmes contemporâneos desses lugares. Eu acho que minha maior paixão é o cinema brasileiro, o que mais me inspira, o que eu mais gosto de ver é o cinema brasileiro contemporâneo. Então é tudo isso que me move.
Com muita desigualdade, mas existe uma cultura, existe uma tradição, existe a música, existe a celebração. A vida não é só o sofrimento. A gente tem a celebração. E eu acho que muitos filmes do Sul Global, eles acabam retratando mais a parte dura da vida. Mas quando é que as pessoas estão celebrando a vida nesses lugares? Elas celebram a vida, cara. Então, eu queria mostrar um filme que fala sobre o Sul Global, mas mostrando para o que o cara do Norte Global também possa se identificar.
Também posso falar: "Caramba, minha mãe também não quer se mudar da cidadezinha que ela mora para morar na capital.” O cara lá de Paris possa pensar que a mãe mora numa cidadezinha pequena, também passa pelo mesmo conflito de tentar convencer a mãe a sair do lugar mais isolado. Tem coisas que são universais, mas é uma história que representa o Sul Global e representa uma brasilidade de uma forma não óbvia. Isso me fascina no Maranhão, ele traz uma brasilidade que não é tão óbvia, porque ela não é tão conhecida.
Mesmo no Brasil, pouquíssima gente conhece o Bumba Meu Boi. Pouquíssima gente de outros estados teve a oportunidade de vir viver o São João de São Luís, que é completamente diferente do São João do Ceará, de Pernambuco, ou da Paraíba. Completamente diferente. É um São João que tem o Cacuriá, que tem o Bumba Meu Boi, tem várias expressões que são muito próprias daqui, então, essa riqueza cultural do Maranhão me fascina muito.
Eu cheguei no Maranhão pelo reggae, depois eu descobri que era muito mais que o reggae, e decidi que tinha que fazer uma busca por algo original. Eu acho que cinema é você se arriscar. Eu não quero fazer filmes que eu me sinta seguro, simplesmente.

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Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Betânia é um filme prosaico. Ele enfatiza a força da oralidade, da história contada sem um registro físico, sem um documento, me lembrou de certa forma o Narradores de Javé, da Eliane Caffé. E queria puxar para um tópico inevitável que são as músicas do filme. Como você fez um registro ou levantamento de todas aquelas toadas e incelenças presentes no filme que estão tão bem encaixadas e ajudam a narrativa a progredir?
Marcelo Botta: Eu sou um cara que adoro história, eu estudo história. Então senti que essa produção tinha a oportunidade de registrar na tela, num filme, parte daquela história que está só na oralidade.
Então quando a dona Maria do Zuca conta a história do povoado, que antes chamava Pau Seco, e veio o padre Carlos Barcelar, que vinha todo ano catequizar e então uma hora ele leu o evangelho e viu aquele lugar tão bonito, com o nome feio, desse Pau Seco, ele abriu a Bíblia aleatoriamente e caiu na página que falava de Betânia, e ela narra isso.
Eu falei: "Cara, dona Maria do Zuca me contando isso, eu preciso colocar isso no filme, eu preciso que as pessoas que assistem à Betânia entendam que esse povoado tem uma história secular e que as pessoas já estão morando aqui há muito tempo. Uma forma de colocar isso no filme, foi criando a cena em que elas estão tomando café junto na casa da Betânia e deixando elas contarem. Então, os moradores de Betânia, que são atores não profissionais e que atuam no filme, obviamente eles atuavam sem um roteiro nesses momentos.
A gente criava situações para parecerem o mais espontânea possível e de fato elas estavam sentadas ali tomando um café e conversando sobre a vida, quando elas começam a cantar “Meu São Benedito”. A equipe estava se preparando para gravar, elas começaram a cantar, aí eu olhei para equipe e falei: "Vamos rodar isso aqui". E a gente rodou aquele presente que elas estavam dando pra gente.
Aquela pérola é um momento musical que, inclusive, onde o filme passou, na Europa e na Índia, essa cena das senhorinhas cantando o “Meu São Benedito”, foi a cena em que as plateias do mundo inteiro se deliciaram.
As pessoas riam com aquele sorriso de brilho no olho, um sorriso que não é sarcástico, um riso honesto e de coração, de lavar a alma. Mesmo o cara lá da Alemanha, ele vê aquela cena e se emociona. Então essas senhoras, elas têm um poder muito grande, dona Maria Lúcia, dona Maria do Zuca, dona Marília, dona Chagas. Além da dona Maria do Celso que é a surpresa no finalzão dos créditos.
Senti que era uma oportunidade de colocar, cumprir uma função histórica também de uma forma legal e não como uma palestrinha ou um livro de história. Não nesse sentido. Não tem intenção de contar a história, mas de registrar de forma divertida. Dentro do filme algumas histórias contam a história do povoado.
E no caso das toadas que a gente colocou no filme, foi uma coisa muito legal, porque é lógico que eu já conhecia bastante o São João daqui de São Luís, que é enorme e tem as toadas clássicas que o povo mais conhece aqui: “Se não existisse o sol, como seria para terra se aquecer?” “O Maranhão, meu tesouro, meu torrão. Fiz essa toada para ti, Maranhão”. Então, a gente tem inúmeras toadas que são muito conhecidas aqui na ilha.
Só quando a gente aprofundou a pesquisa, eu descobri que existia o boi da Betânia e que ele estava adormecido desde que o Canário Velho faleceu, o seu Chagas. Há uns 3 anos antes da filmagem, o seu Chagas, que era o principal Canário, faleceu. E desde que ele faleceu, o boi estava adormecido. Foi muito interessante que a gente entrou na casa do Marquita, que é um dos cantadores, com o Misael Pereira, e eles começaram a cantar toadas escritas por eles que contavam diversas histórias, inclusive a história do seu Chagas. Se você reparar, o filme começa com Marquita cantando: "É, Canário Velho, que deixou tristeza, faz parte da natureza, mas eu te chamo". Ele está falando do seu Chagas. E tem o trecho: "Aqui na Betânia, canário não canta só em cima daquela serra, já canta dois curió". Ele está contando a história da Betânia. E só nesse verso ele resume o filme. O filme fala: ninguém faz nada sozinho.
E é louco que no documentário que eu fiz que inspira o filme, a dona Maria do Celso já falava assim: "Ninguém faz nada por si só. Eu luto por muitos. Eu não luto só por mim, não.” E aí o Marquita vem 3 anos depois e me canta isso, sabe? Eles estão dizendo a mesma coisa. O ciclo fechando direitinho.
O Tião Carvalho trouxe toda a musicalidade dele, as toadas dele também. Então, quando juntou a musicalidade do Tião Carvalho com as toadas do Misael e do Marquita, fez uma força e aí juntou as incelenças cantadas pela Dona Maria Do Zuca, Dona Chagas, Dona Lúcia, Dona Marly. As incelenças são as músicas cantadas nos velórios dos Lençóis.
O caderno da Dona Maria do Zuca que aparece no filme tem letras de incelenças que são cantadas por elas. Então, aquilo encaixou bem no filme é a música daquele lugar. A gente na pesquisa só teve o trabalho de identificar e falar: "Olha, tem essas incelenças, qual que tem mais a ver com o roteiro? Ele tem 10 toadas, qual que tem mais a ver com a história?”. A gente percebeu que a música poderia cumprir uma função, como você disse, de mover a história para frente. De não ser só uma trilha sonora ali. Ela é parte da narrativa. É um filme muito musical, a gente conta que ele tem mais de 60 momentos musicais no filme. As músicas estão sempre ajudando a dar ritmo, mas elas também estão ajudando a contar a história.
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Vamos comentar agora sobre o atual cenário do cinema brasileiro. O Brasil e o mundo estão tomando mais conhecimento da riqueza e da diversidade do cinema muito graças às políticas públicas de incentivo, aos editais etc. Mas me revolta ver que o cinema brasileiro ainda é sufocado pelas produções internacionais no mercado. Semana passada estreou um filme estadunidense medíocre baseado num joguinho e devorou todas as salas de cinema do Brasil e isso ainda me irrita muito. O que você acha que ainda falta para o cinema brasileiro ganhar o espaço à altura dos filmes importados e um volume maior na distribuição?
Marcelo Botta: Políticas de Estado, o cinema deveria ser política de Estado. Eu acho que a cota de tela tem que ser maior, mais bem empregada e acho que o valor do ingresso tem que ser diferente. O filme brasileiro teria que ser mais barato. Então, o que a gente tem conseguido agora com Betânia para o lançamento dia 24 de abril no Maranhão e 8 de maio, lançamento nacional, estamos tentando negociar com os cinemas, principalmente aqui no Maranhão, que se chegue num valor bacana que todo mundo possa pagar meia. Então, aqui no cinema que a gente vai estrear, as pessoas vão poder pagar meia, meia entrada para todo mundo.
Então, o sujeito chega lá, na boca do caixa e vê o filme estadunidense, custando o mesmo preço que o filme brasileiro, e ainda por causa da história colonial do Brasil, existe o pensamento de achar que o que vem de fora é melhor. E pensam, se tá o mesmo valor eu vou ver o de fora que vale mais a pena, é um pensamento triste, mas existente.
Mas como você combate isso? Deixa o cinema brasileiro mais barato, ter subsídio, além da cota de tela, ter subsídio e taxar os filmes americanos. Não está tendo guerra cambial aí no comercial? Vamos taxar os filmes americano. Como é que a Coreia do Sul fortaleceu a indústria deles? Quando perceberam que o Missão Impossível lá atrás, tinha dado mais dinheiro do que a indústria automobilística da Coreia inteira naquela época, né?
Eles fizeram a conta e pensaram: "Cara, isso aqui é mercado, isso aqui é indústria, isso aqui, além de cultura, soft power, isso aqui é economia. Isso aqui move a economia. Hoje a indústria audiovisual coreana é gigante. Então, acho que a gente tem exemplos no mundo. A Coreia era como o Brasil, a taxa de filmes coreanos não ocupava as telas de cinema lá, era igual do Brasil entre, 20%, 15%, 10%, como também é maioria dos países do mundo. Estava vendo agora os dados da Espanha, e não foge muito. Os filmes espanhóis vistos na Espanha são 14%, 13%, 12%, entendeu? Na maioria dos países é assim que é. Hoje se não me engano na Coreia acho que 80% dos filmes são coreanos. Então assim, o estadunidense vai ter que disputar ali aqueles 20% do público que sobrou de sala da Coreia com o filme europeu, ou da América Latina, porque 80% é filme local.
Eu acho até que o Brasil tem uma capacidade de originalidade, de inventividade, de originalidade maior que a Coreia. Olha o tamanho do Brasil. Olha a diversidade cultural desse país. A gente teria o potencial de fazer o que a Coreia fez numa escala muito maior, até pelo tamanho do Brasil. O Brasil é maior em termos de quantidade de pessoas, de território e tem mais diversidade cultural, acho que tem mais potencial para criar um cinema original, diferente. Então, a gente tendo essa política de estado que é cota de tela e achar um preço do ingresso, né, que seja o filme brasileiro chegue lá no caixa aí e seja meia entrada para todo mundo, imagina se tivesse essa lei: Filme nacional, todo mundo paga meia. Isso é uma lei que faria toda a diferença. O filme brasileiro teria um subsídio que o ingresso ficaria pelo menos 30% a 40% mais barato. E o financiamento. Investir no financiamento de filmes de uma forma também que você falou a importância dos editais que estão sendo descentralizados, isso é fundamental.
Mas a gente percebe que tem produtora em São Paulo, por exemplo, que sempre acabam ganhando os editais, eles vão para aquelas produtoras de sempre. Então, é legal poder distribuir nacionalmente, a gente tem que cada vez mais fazer isso, ter editais regionais e fortalecer, sair desse eixo do Rio-São Paulo, mas o dinheiro que ainda tem para São Paulo, se você for ver, sempre cai na mão das mesmas produtoras.
Deveria ter uma limitante dizendo: a produtora já tá no nível 4, 5 da Ancine, ele não pode acessar aquela linha. Aquela linha é só para produtor nível 1, 2, 3. Isso existe. Mas é um pouquinho de dinheiro que vai para as produtoras de nível 1, 2, 3 e o grosso do dinheiro vai para as produtoras as mesmas de sempre. Isso deveria mudar também, para que haja uma pluralidade maior.
As produtoras que já que já pegam edital em São Paulo, principalmente, são produtoras antigas e gigantescas que que tem uma estrutura muito grande e cara, legal, eles também precisam continuar produzindo, mas eu acho que é necessário que haja mais linhas para produtores nível 1, 2, 3, entende? E ter linhas específicas para os níveis 4 e 5, sinto que ainda precisa acontecer essa mudança.
Não é papel do governo investir no cinema apenas para representar culturalmente o Brasil, é uma indústria que gera emprego, que gera renda, que move a economia. Então tem essa parte da gente se unir e mostrar para esse centrão aí que manda no Brasil que é importante investir no audiovisual em termos econômicos. Não é falácia, é real, os números estão aí.
Quando você vê um filme que dá bilheteria, o dinheiro que ele move, o tanto de recurso que ele promove… um filme que dá mais de 4 milhões de espectadores como O Auto da Compadecida 2, o tanto de gente que ele leva pro cinema… então cada R$ 1 investido no cinema, ele volta, ele volta multiplicado pra economia brasileira.
É parte da política de estado e que a gente tem que cobrar, não adianta achar que vai se auto-regular sozinho, tem que ter lei, tem que ter leis mais incisivas. E o preço mais acessível para o cinema nacional, assim o pai ou a mãe de família quando forem levar seus filhos ao cinema poderem sentir a diferença.
Agora, aí passa por uma questão de nós realizadores, cada um faz o filme que quer, não tô aqui para falar que devem fazer o filme assim ou assado, né? Mas nós realizadores, produtores, também podemos buscar produzir mais filmes que tenham essa capacidade de dialogar com a família brasileira. Existem filmes que não vão dialogar por natureza, é óbvio, é classificação indicativa, é um filme que tem muita cena de sexo, ele vai ser 18+, é óbvio que uma família não vai ver esse filme.
O pai e a mãe podem ver, mas os filhos pequenos não vão ver. Então já dá uma travada. A maioria dos filmes brasileiros autorais não funcionam muito para a família inteira. Ele vai funcionar para os 16+, alguns até por 18+. E isso também é super legal, são ideias originais, está cheio de filme ótimo em festival, eu adoro, eu sou público deles.
Mas assim, é importante ter os filmes que façam carreira de festival e que levem a família brasileira para o cinema coletivamente. Quais filmes brasileiros fizeram carreira de festival e levaram as pessoas coletivamente para o cinema? Filmes que você possa tanto sozinho quanto com a sua mãe, seu pai, sua avó, suas tias, seus filhos, seus sobrinhos, seus primos.... São poucos filmes que chegam nesse lugar conciliatório de fazer carreira internacional de festival e de ser filme de público.
A gente teve o Ainda Estou Aqui, um ótimo filme, com um momento político bem marcado e com um cineasta já renomado. Então, é possível. Só que a gente não pode ter um filme desse, com essas características, a cada 20 anos, é para ser bem mais frequente.
A gente tem que ter todo tipo de filme sendo feito. Isso é muito importante. Mas quanto mais frequência tiver na produção desses filmes que tem potencial de ser filme de festival e ao mesmo tempo filme comercial, acho que aí a gente vai fazer o brasileiro entender que o cinema nacional é constante e impositivo. Aqui no Maranhão, o Betânia é um assunto popular, ele é filme comercial, é um filme que pode ser visto pela família inteira, ele promove debates e reflexões dentro da família.
Mas que não é por isso que ele se torne um filme puritano, ele mostra a tragédia climática, ele mostra o conflito de gerações – uma menina lésbica em conflito com a mãe – mas ele é feito do jeito que a família toda pode ver junto e refletir junto e sair do filme todo mundo mais fortalecido, mais unido, mais ciente, menos hipócrita, aceitando mais as diferenças.
O cinema também pode ser esse lugar das pessoas celebrarem a vida juntos e depois refletirem sobre o filme juntos. Acho que é filme ele tem que ser vivido e digerido ao longo de dias, meses ali, você ficar lembrando dele, comentando as discussões.
É um desafio conseguir fazer esse tipo de filme, ser apreciado pelo público de Berlim, mas também ser visto pela sua família. E acho que quanto mais filmes brasileiros chegarem nesse lugar de ser comercial e ser “arte” ao mesmo tempo, mais vai quebrar esse pensamento atrasado de: "Ah, o Brasil só faz filme desse tipo ou daquele tipo". O público brasileiro vai entender: "Não, o Brasil faz filme bom". Brasileiro faz filme bom.
Eu sei que é difícil. O mundo nos empurra para você escolher, ou você vai fazer algo comercial ou você vai fazer algo para cinéfilo. A gente é empurrado, porque na hora que você vai financiar um filme, eles querem te encaixar para um lado ou para outro. O sistema quer que você caia numa ponta ou na outra. Ou você faz filme de festival, que no Brasil vai dar 3.000 pessoas no cinema, ou você faz filme comercial que não vai ter ressonância nenhuma fora do Brasil. Só vai ter público aqui, comédia comercial que faz público aqui, mas fora do Brasil ninguém não ouviu falar desse filme. Então é difícil chegar neste lugar comum, mas acho que é esse tipo de filme que também vai ajudar a gente a mudar esse cenário.
Ávila Oliveira (Oxente Pipoca): Para finalizar, queria que você indicasse alguns filmes brasileiros que você tenha como favoritos, ou que te influenciaram, ou que você gostaria de recomendar para que mais pessoas conheçam.
Marcelo Botta: Vou recomendar alguns dos mais recentes que acho que preenchem todos esses requisitos. Saudade Fez Morada Aqui Dentro (2022). Filme lindo e me identifiquei muito com a forma como o Haroldo dirigiu o filme e como conseguiram achar o tom de atuação, a sensibilidade. E mostra um Brasil também rural e inspirador, e é um filme que pode ser visto pela família. Ele é um filme que fez carreira em festivais, mas que é acessível para todos os públicos, e atualmente está na Netflix e acho que merecia ser mais visto e comentado.
A Vizinhança do Tigre (2014), do Affonso Uchoa, acho que está disponível no Mubi. É um filme que consegue construir essa linha ténue entre a ficção e o documentário de uma forma muito legal. Você fica o tempo todo se perguntando o que é documentário e o que é ficção. Eu acho inteligente a forma pouco óbvia como ele que ele cria a linguagem é um filme muito inspirador.
E Estranho Caminho (2024), do Guto Parente, também está no Mubi. Eu conheci o Guto aqui no Guarnicê, em junho do ano passado, mas só depois eu fui ver o filme e putz, adorei a narrativa, achei um filme que também desafia o óbvio, e tem uma linguagem muito inovadora.
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