Um espetáculo cinematográfico que nos alerta para os perigos do fanatismo
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A jornada para se adaptar Duna (1965) para as telas foi árdua e repleta de contratempos. Do filme inacabado de Alejandro Jodorowsky nos anos 1970, passando pela criticada adaptação de David Lynch em 1984 e a minissérie do canal Sci-Fi em 2000, parecia que o livro jamais receberia a versão que merecia. Eis que Denis Villeneuve, consolidado na ficção científica após A Chegada e Blade Runner 2049, recebeu a incumbência de levar a obra mais uma vez ao cinema, dessa vez em duas partes. Se a habitual esterilidade e frieza do diretor foram alvos de algumas críticas, certamente não impediram que o primeiro Duna (2021) fosse um sucesso notável no período pandêmico e ainda ganhasse 6 Óscares, garantindo sem problemas a produção de sua sequência.
Contudo, é curioso notar que, mesmo que seja uma continuação direta do primeiro filme, Duna: Parte Dois se revele distinto em tantos aspectos. Não é que Villeneuve abra mão do seu estilo ou faça concessões aos seus detratores, mas é perceptível aqui como o diretor refina mais certos pontos (em especial as lutas corpo a corpo) e integra mais da estranheza do universo de Duna (que só foi potencializada nos romances subsequentes) para criar um blockbuster que é uma verdadeira anomalia, provando como os arrasa-quarteirões ainda merecem seu espaço no cinema sem precisar se render à produção fordista de estúdios como a Marvel.
Afinal de contas, Duna sempre foi sobre colonialismo, fanatismo religioso e ecologia, nunca escondendo sua crítica feroz ao tropo do salvador branco (e isso já nos anos 1960!). Aqui, Villeneuve intensifica ainda mais sua crítica, trabalhando habilmente a ambiguidade que cerca o protagonista Paul Atreides (Timothée Chalamet) conforme ele e sua mãe Jessica (Rebecca Ferguson) se juntam aos Fremen, o povo nativo do planeta Arrakis/Duna para enfrentar seus inimigos históricos, os Harkonnen, bem como o próprio imperador (Christopher Walken). Retrabalhando as dinâmicas entre os personagens – em especial a relação de Paul com Chani (Zendaya) – e até as aprofundando em certos pontos, o diretor nos mostra o perigo de um messias fabricado que, mesmo que até chegue a lutar contra esse papel, inevitavelmente se mostra mais perigoso do que seus próprios algozes, conforme seu papel messiânico é abraçado pelos fervorosos nativos (mesmo que ele seja, no fim das contas, um estrangeiro).
Em certa medida, a Parte Dois toma o caminho inverso da Parte Um: se esta parecia perder o brilho aos poucos após o ataque dos Harkonnen aos Atreides, culminando num final duramente criticado por seu anticlímax – mesmo que fizesse sentido para a jornada de Paul –, aqui Villeneuve apenas vai intensificando o tom da obra sem perder a mão. O senso de escala descomunal desse universo permanece firme e forte (e não à toa duas das melhores cenas do filme envolvem os monstruosos vermes da areia), mas é na maneira como o filme trabalha o arco do protagonista que ele realmente brilha.
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Nesse sentido, Timothée Chalamet crava de uma vez por todas que é um dos maiores, senão o maior ator de sua geração. Sempre considerei muitas das críticas ao ator e sua suposta “cara de bunda” bastante infundadas, e tendo reassistido o primeiro filme recentemente ficou claro a maneira como ele progressivamente desenvolve as nuances do personagem. Aqui, porém, Chalamet se supera em diversos aspectos, abraçando a dualidade do seu personagem e a maneira como ele constrói uma presença magnética que não apenas conquista os Fremen, mas também a nós espectadores. Em particular, a última hora do filme é talvez o melhor momento da carreira do ator, já que ele assume uma gravidade e poder devidamente assombrosos.
A relação entre ele e Chani é fundamental para que que a história assuma um fundo mais trágico, e um dos melhores acertos do filme é expandir a personagem de Zendaya de um mero interesse amoroso para uma figura com uma agência própria, que serve de consciência e contraponto às decisões de Paul. Diria até que há um quê de Michael e Kay Corleone, de O Poderoso Chefão, na relação dos dois, o que é mais evidente pela forma como Chani encara o homem que ama ao final. Além de Chalamet e Zendaya, o grande destaque do filme fica por conta de Ferguson, que confere um caráter absolutamente maquiavélico à sua Jessica, na maneira como ela tem um papel essencial de difundir a figura messiânica do filho entre os Fremen, como uma espécie de Lady Macbeth sussurrando manipulações aos ouvidos do protagonista e de todos à sua volta, mesmo com as melhores intenções em mente.
O restante do elenco, ainda que não chegue a ter o mesmo peso em tela, certamente abrilhanta: Javier Bardem rouba cada cena com seu fanatismo divertido (até não ser mais divertido); Josh Brolin tem uma reintrodução tardia demais para o meu gosto, mas serve como um importante elo do passado de Paul que guia o personagem em direção ao seu futuro sombrio; e Austin Butler, ainda que possua um bloco de introdução que se estende mais do que precisava, também é outro ladrão de cena que interpreta uma figura psicopata que não poderia estar mais distante do seu Elvis Presley (embora apresente um trabalho de voz tão afetado quanto). Ainda assim, é perceptível que alguns nomes do elenco estão ali mais para serem introduzidos em vista de possíveis sequências, como é o caso de Florence Pugh, Léa Seidoux e Anya Taylor-Joy. Não é exatamente um problema, mas também não deixa de ser uma certa subutilização de três atrizes talentosas.
Duna: Parte Dois traz de volta tudo que funcionou tão bem no primeiro filme – a direção de arte grandiosa, a trilha sonora poderosa de Hans Zimmer, a fotografia de Greig Frasier que revela tanto da magnitude desse mundo. Contudo, incorpora mais das bizarrices que fazem o universo de Duna ser tão único (seja um planeta em preto e branco ou bebidas lisérgicas feitas de sangue de vermes de areia), mostrando que Villeneuve estava disposto a expandir seu estilo para tornar esse blockbuster ainda mais distinto. Com um final que pode parecer triunfante, mas possui grandes contornos de tragédia, o diretor mostra que conseguiu o que parecia impossível: entregar uma adaptação que não apenas faz jus ao impacto que o livro original teve na ficção científica (e até o supera em certos pontos), mas também entregar o seu equivalente no cinema, um espetáculo fílmico que não esconde de nós os lados mais sombrios da humanidade.
Nota: 4,5/5
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