Crítica | Cyclone (Festival do Rio 2025)
- Guilherme Salomão

- 5 de out.
- 3 min de leitura
Flávia Castro traça retrato mais atual do que nunca sobre sexismo e burocracia quando o assunto é o meio artístico

Foto: Divulgação
Dentre os longas selecionados para a Première Brasil de ficção no Festival do Rio de 2025, Cyclone, da cineasta Flávia Castro - que também aparece na seleção deste ano com As Vitrines, parte da mostra brasileira “Hors Concours” - é um para se observar com atenção. Nele, uma linguagem elegante e moderna conduz uma história sobre as dificuldades de ser mulher e artista numa sociedade patriarcal e burocrática. Um longa-metragem que se passa em 1919, mas não poderia ser mais atual.
Inspirado na história real da escritora Maria de Lourdes Castro Pontes (também conhecida como ‘Miss Cyclone’), Cyclone acompanha uma operária aspirante a dramaturga chamada Dayse (Luiza Mariani). Ela divide seu tempo entre o trabalho numa gráfica - cujo patrão é rígido e debocha de suas aspirações - e a colaboração no Theatro Municipal de São Paulo, onde mantém um caso escondido com o autor Heitor Gamba (Eduardo Moscovis).
Se o patrão da gráfica é aquele que pisa em Dayse, o dramaturgo também não fica distante, mesmo que de uma maneira distinta. O fetiche com suas mãos sujas pelo trabalho como operária é apenas um detalhe de um homem que se nega a dar os devidos créditos à amante quando ela assume o pseudônimo de Cyclone, colaboradora na escrita das peças de Heitor. É como se, para o diretor do teatro, Cyclone fosse apenas um objeto de suas fantasias, destinada a sempre estar em segundo plano, observando nos bastidores o diretor encenando suas peças.
Esse, entretanto, é apenas um dos detalhes da luta de Dayse/Cyclone nessa jornada em busca de quebrar barreiras e se tornar reconhecida por sua dedicação ao teatro. A protagonista de Luiza Mariani conquista uma cobiçada bolsa para estudar teatro em Paris. Porém, com o surgimento de uma gravidez indesejada, seus planos para o futuro passam a estar mais do que nunca ameaçados.
São inúmeras as burocracias que a personagem enfrenta, sendo a principal delas a impossibilidade da viagem para a França em meio à gravidez. A solução que encontra, aconselhada por uma amiga próxima (Karine Teles) assim, é a realização em segredo de um aborto. Quanto a isso, o filme de Castro não parece interessado em um debate moral sobre o tema ou em uma idealização de Cyclone como uma artista incontestável e perfeita.

Foto: Divulgação
Além de, em um diálogo bastante específico e singelo, ela duvidar de si e de seu talento de escrita, os esforços estão todos focados em demonstrar como suas atitudes são incontestáveis, dada a realidade em que a aspirante a artista se encontra aprisionada. Essa é, de fato, a sua única saída e escolha frente às injustiças do sexismo de seu tempo.
O trabalho de Luiza Mariani, dito isso, é cheio de sensibilidade. São interessantes os planos em que a atriz é enquadrada por Flávia Castro sozinha em cena, de frente para a câmera. Nesses instantes, estamos nós, espectadores, testemunhando com proximidade o ímpeto de uma mulher enfrentando e desafiando sozinha - e com firmeza - seus oponentes: homens e suas incansáveis burocracias.
No restante da condução, a diretora brasileira continua com essa assertividade quando o assunto é proximidade e provocação. Apesar de Cyclone, por se passar no Brasil do início do século XX, se encaixar em um exemplar de filme de época, a diretora abre mão de um classicismo de decupagem e encenação em detrimento da câmera na mão, com planos em travellings fechados na ação dos atores em cena. A abertura da diretora para experimentações é outro destaque de seu retrato cuidadoso e imaginativo. No auge da perturbação opressora que vive Cyclone, a trilha sonora é de ruídos intensos e os planos se sobrepõem ou se alternam em cortes desconcertantes pela montagem.
Nessa ideia de um filme de época bastante atual, essa linguagem provocadora e moderna da cineasta é das mais adequadas. Talvez sejam inúmeros os casos de artistas e mulheres que cabem dentro dos planos de Flávia Castro e na bela performance de Luiza Mariani: sonhadores como Dayse, na batalha diária para se tornarem, justamente, Cyclone. No fundo, enfrentar os ciclones e tempestades diárias do sistema sem baixar a guarda é a verdadeira força de um artista.
Um close-up de Luiza Mariani no final é uma coroação e tanto da jornada. Após tantos outros planos semelhantes em que esteve sozinha frente a seus oponentes, o olhar penetrante de quem finalmente venceu é a última imagem que o espectador testemunha ao término do longa.
Nota: 5/5





