As diretoras conversam com exclusividade com o Oxente, Pipoca? sobre a produção feminina que coloca o afeto no centro da narrativa
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O filme Um Dia Antes de Todos os Outros, dirigido por Fernanda Bond e Valentina Homem, narra a história de Marlí (Clarissa Pinheiro), uma empregada doméstica e cuidadora que descobre que o apartamento onde trabalha, de Dona Iara (Elvira Helena), foi vendido, tornando aquele seu último dia no local. Marlí, embora atônita com a urgência da mudança, está ansiosa para retornar à sua terra natal, Olinda. No entanto, ela não esperava que sua filha, Sofia (Marianna Bittencourt), não estivesse disposta a deixar o Rio de Janeiro.
Em entrevista exclusiva para o Oxente, Pipoca?, as diretoras Fernanda Bond e Valentina Homem falaram sobre sua parceria artística de longa data, o processo de idealização do filme e a complexidade de trazer à tela três gerações de mulheres muito diferentes, mas que se unem pelo afeto.
Quando perguntada sobre o processo de criação e desenvolvimento do filme, Valentina ressalta que Um Dia Antes de Todos os Outros teve uma idealização diferente da tradicional. “Existia um projeto anterior, que era um projeto que o Jô Bilac, que é co-roteirista do filme, tinha me chamado para fazer a adaptação de uma peça dele.”, explicou. “O Jô escreveu um roteiro, a Nathalie, que é outra produtora junto comigo, conseguiu captar um certo dinheiro, um dinheiro muito pequeno, e o tempo foi passando, a gente não conseguiu captar mais, e chegamos a um determinado momento que a gente tinha ali 85 mil reais captados, que não dava para fazer o filme original, e aí a gente ou devolveria esse dinheiro ou a gente faria alguma coisa com ele. Era mais ou menos ali nos anos de 2019 e 2020, ou seja, o Brasil estava vivendo um caos político. Logo depois da pandemia, estava tudo muito difícil.”
Foi diante do desafio de fazer um longa-metragem com o dinheiro arrecadado que Valentina entrou em contato com Fernanda Bond para participar do projeto, compartilhando a direção e o roteiro do filme. Fernanda enfatiza que essa inversão de etapas do processo foi importante na hora de preparar a narrativa, já que o filme se passaria em um único dia e em uma única locação.
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Sobre a parceria entre as duas diretoras, Fernanda diz que a similaridade de ideias sempre marcou a relação. “Eu posso dizer que no meu caso com a Val, não é a primeira vez que a gente colabora. Isso é uma coisa que já vem de muito tempo. A gente entende que queremos falar sobre coisas parecidas, que as coisas que nos afetam desde sempre são muito próximas. Então isso já facilita.”
Fernanda e Valentina também ressaltam que destacar as diferenças entre as personagens, mas uni-las através do afeto, sempre foi a premissa do filme. “É um filme que quer falar das relações de cuidado, de ausência de cuidado entre mulheres, mas que o afeto seja o foco central. Então a gente quer que as relações, as questões, as complexidades de classe, de raça que são tão características do nosso país e que são tão profundamente determinantes para as relações de cuidado no nosso país e para a terceirização do cuidado, a gente quer falar sobre tudo isso, mas a gente quer que o afeto esteja, de certa forma, no primeiro plano.”, explica Valentina.
Sobre a criação de um senso de linguagem visual, as diretoras explicam que a complexidade da imagem e de criar um senso estético para o filme vem também do próprio modo de fazer. Fernanda comenta sobre a cena final do filme, pessoalmente a mais emblemática. “A gente privilegiou a fluidez da câmera, das atrizes, porque você poderia aprisionar as atrizes e falar assim: olha, fica aqui nesse chiva aqui do chão, se não me saia daí, vamos marcar o foco, mas a gente queria que a coisa fosse se os corpos estivessem de fato soltos no espaço e que a câmera fosse considerada um corpo câmera também.”
Nesse mesmo sentido, Valentina complementa: “Desde sempre tínhamos em mente o plano sequência. Por mais que o filme não seja montado com os planos sequências, a gente acabou misturando planos. Inclusive na mesma cena que a gente acabou refazendo outro dia, a gente juntou, mas foi todo filmado em plano sequência e muito próximo das atrizes. Acho que isso era uma coisa importante, que é isso que a Fê falou, de ser uma câmera que tá dentro da cena, que não é uma câmera observadora, que chega perto da pele. Acho que isso tem a ver com o afeto, com esse lugar do cuidado. Então a câmera lá também tá ali dentro dessa dinâmica.”
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Um Dia Antes de Todos os Outros conta com uma equipe majoritariamente feminina, do elenco até a produção executiva. Para Valentina e Fernanda, isso já é uma grande diferença, especialmente pela falta de costume com esse tipo de dinâmica. O ambiente do set costuma ter uma lógica masculina e ser liderado, em grande parte, por homens.
“Foi muito bom trabalhar só com mulheres, e era realmente uma coisa diferente. Porque, se vocês forem pensar, a unidade de cinema é sempre o contrário. Mulheres são exceção fora da cena – atores e atrizes até que é mais –, mas pensando em termos de equipe, imagina o diretor de fotografia, a própria ideia da direção, o roteiro e tudo, se você for botar em números, ainda é uma coisa muito masculina”, fala Fernanda.
“Dava essa sensação mesmo de um clima diferente no set. Todo mundo tá muito à vontade e, ao mesmo tempo, colaborando. Acho que tem uma coisa da colaboração, por ser uma equipe muito pequena, e também não ter as hierarquias tão definidas como costuma ser um set de cinema. Todo mundo fazendo tudo. Enfim, enquanto diretora, também fazia milhões de outras coisas, então acho que isso dá uma quebrada.”, ri Valentina.
“E não foi um pré-requisito [apenas contratar mulheres]”, acrescentou Fernanda. “Acabou que isso aconteceu, e eu acho que isso sem dúvida impactou, porque os olhares são diferentes. Também tivemos na pós-produção a inclusão de homens na equipe que foram absolutamente incríveis.”
Ao final da entrevista, quando perguntadas sobre os avanços da presença feminina no cinema brasileiro, o que já foi conquistado e o que ainda precisava ser alcançado para a construção de um cinema mais feminino e diverso, a resposta das duas foi unânime.
“As políticas afirmativas são super importantes para isso, não só para ter mais espaço para as mulheres e olhar feminino, mas também para todas as outras pessoas historicamente marginalizadas. Ainda assim, acho que é um caminho bem longo. Os números, não só no Brasil, como no mundo, mostram que em todas as etapas da cadeia produtiva e de distribuição dos filmes, os homens são 60, 70, 80%. Chegam nos principais festivais de cinema e, de 50 filmes, tem 5% de mulheres; às vezes não chega nem a 10%. É uma longa batalha, uma trajetória que ainda tem muito a ser conquistada.”
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