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Entrevista | Marcos Pimentel e Bárbara Colen mergulham em um universo “sinistro, sombrio, mas ininterrupto” em O Silêncio das Ostras

  • Foto do escritor: Ana Beatriz Andrade
    Ana Beatriz Andrade
  • 9 de jun.
  • 11 min de leitura

Diretor e atriz conversam sobre a criação do filme, uma ficção profundamente marcada pelos desastres ambientais de Bento Rodrigues e Brumadinho.

Divulgação


O filme O Silêncio das Ostras, primeira obra de ficção do diretor e roteirista Marcos Pimentel, já foi exibido em diversos festivais de cinema e agora, a partir do dia 26 de junho, chega às salas de cinema do Brasil.


O longa acompanha a rotina de uma família em situação de extrema vulnerabilidade que sobrevive da mineração em um vilarejo em Minas Gerais. A narrativa é conduzida pelo olhar de Kaylane (Bárbara Colen/Lavínia Castelari), filha caçula entre quatro irmãos, que mantém uma sensível e única conexão com a natureza e os insetos ao seu redor.


O Oxente Pipoca conversou com o diretor Marcos Pimentel e a atriz Bárbara Colen sobre os bastidores do projeto, os caminhos que levaram à construção do longa e o desafio de traduzir em ficção o impacto de um dos maiores desastres ambientais e humanitários da história do Brasil.


Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Marcos, para começar, gostaria que você falasse sobre a origem do projeto. Como ‘O Silêncio das Ostras’ saiu do papel. E Bárbara, como o projeto chegou até você? 


Marcos Pimentel: Bom, vamos do início. O projeto nasceu da minha vontade, ou melhor, da minha necessidade enquanto mineiro de falar de uma coisa tão forte pra gente e pra todo mundo que nasceu em Minas Gerais, que é a mineração. A gente tem “minas” no nome do estado e a gente cresce permeado pela atividade mineradora em diferentes partes do estado. Eu, enquanto documentarista, que viajo muito pelo estado e vou realizando uma série de projetos diferentes, fica aquela necessidade mesmo de trazer pro papel e apontar a câmera para essa temática que é muito espinhosa. Afinal, as mineradoras são muito poderosas, geram emprego e renda e acabam, por outro lado, modificando a paisagem do estado e não somente isso. Elas interferem nas vidas das pessoas que vivem em torno da atividade mineradora.


Então, o projeto surgiu dessa necessidade e foi construído pela história de um monte de personagens que eu encontrei durante minha trajetória no documentário. É uma obra muito pessoal, tem muito a ver com o que a minha mãe contava pra mim, com outros personagens que eu fiz e com as pessoas que eu cruzei o caminho delas, elas cruzaram o meu caminho e nos atravessamos ao longo de décadas. Eu tentei em um primeiro momento fazer um documentário sobre isso, mas não é fácil você conseguir autorização para entrar nas dependências da mineradora. Levar uma câmera para registrar o que acontece lá dentro e no entorno é sempre uma relação bastante complicada – todo mundo que trabalha no audiovisual em Minas Gerais sabe disso e já experimentou essas tensões em determinados momentos. É como se fosse proibido aproximar-se deles. 


Então, eu fui pro caminho da ficção. Eu construí a minha própria mineradora e a partir disso eu pude contar as histórias que eu queria nesse universo. E que passa também pelas tragédias ambientais e pelos crimes ambientais que o estado experimentou, com Bento Rodrigues, Mariana e Brumadinho. Mas não somente isso. O filme começa muito antes, lá nos anos 80, mostrando o que existia antes até desaguar nas barragens. É algo que vem acontecendo muito antes até a gente chegar nesses tristes episódios da história do estado.


Bárbara Colen: A resposta de como eu cheguei até o projeto foi o Marquinhos. A gente fez um trabalho junto em 2018, um telefilme. E foi muito gostoso, foi um trabalho muito legal de fazer. Logo depois ele marcou um café comigo para falar de um projeto (risos). Ele estava com um argumento, um resumo. Não tinha nem roteiro ainda, mas já fiquei muito emocionada com a história e com muita vontade que se desenvolvesse e tomasse corpo de projeto. Esses projetos são longos, né, Ana? A gente começa uma conversa aqui e vai andando, a gente nunca sabe direito quando vai sair. Mas a gente conseguiu, o Marquinhos foi em frente, conseguimos o edital e fizemos o filme.


Ana Beatriz (Oxente Pipoca): O filme tem um belo trabalho de som e fotografia. O Petrus Cariry assina uma direção de fotografia exemplar. Gostaria que você comentasse sobre o processo criativo de trazer o som quase como um personagem, especialmente na representação da presença da mineradora ao longo do filme.


Marcos Pimentel: Olha, acho que uma das coisas que mais me interessa no cinema é trabalhar sonoramente as histórias. A gente tinha uma história que possibilitava muito isso. Como a Kaylane tem uma personalidade bastante misteriosa e uma forma enigmática de se relacionar com as pessoas e com a paisagem perto dela, com os insetos e com tudo que ela vai encontrando. A gente utilizava isso para trabalhar a atmosfera sonora do filme, fazendo como se existisse um hiperfoco da Kaylane para a questão sonora. Como se ela estivesse escutando mais aquele universo ali – do moinho, das cigarras, a mineradora, o vento e como ele se relaciona com os objetos do local. 


Foi um trabalho incrível. A gente faz uma espécie de biblioteca sonora do universo particular da Kaylane e dos elementos da vila também. O carro de boi, por exemplo, que acaba sendo relacionado com a morte ao longo do filme – ele leva os mantimentos, mas também os corpos. O moinho também tem esse som enigmático e onipresente, além de claro, a mineradora. Essa atividade extrativista que vai arrancando a alma dos lugares. Foi um trabalho incrível da Camila Machado, que fez a captação de som, do Vitor Coroa, que fez a edição de som e do Victor Moraes que fez a mixagem. Foi um trio fantástico que trouxe várias camadas pro filme.


Já na fotografia, o Petrus é um grande amigo desde a época dos curtas. A gente se conhece há 15, quase 20 anos. Nossos filmes sempre eram programados juntos nas salas, por terem uma linguagem próxima. A gente ficou amigo porque os programadores dos festivais de cinema, que sempre programavam os filmes na mesma sessão, já que são filmes que dialogam muito. Então, a gente se aproximou muito. Na época, o Petrus nem fotografava. Eu o procurei, ele topou na mesma hora. Disse que não esperava nunca esse chamado. A gente acabou fazendo uma ponte muito bonita com o Ceará – veio muita gente de lá de produção, de arte… Não necessariamente pelo Petrus, mas por outros motivos e em outros departamentos. Conseguimos realizar uma sessão lá.


Eu acho também muito interessante o trabalho da fotografia com a arte. É uma história que visualmente é muito impactante pelas paisagens do filme, pela mineração, pela devastação e por essas cores ocre da mineração que a gente acaba trazendo pro filme. Além disso, a arte do filme mostra como a Kaylane transforma sua casa, as coisas que ela decide acumular ao longo da vida, os insetos mortos, os bordados… Tudo isso que vai construindo a personalidade enigmática dessa personagem, brilhantemente interpretada pela Babi.

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Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Bárbara, a Kaylane é uma personagem marcada pelo silêncio, mas também pela observação e pela criatividade, além de, claro, uma dor latente por tudo que acontece com ela. Como foi o processo de construir essa subjetividade tão interna?


Bárbara Colen: Em filmes que a gente tem essa possibilidade de imersão, com a Kaylane a gente foi pra Matipó, depois para uma vila dentro de Matipó. Então, a gente já estava em um ambiente que por si era muito de natureza, de silêncio. Todos os trajetos que a gente fez depois pelas cidades do interior também. Eu acho que isso veio de um processo de conexão com o entorno que estava ali  presente. Eu acho que a Kaylane me deu a oportunidade de trabalhar um estado de presença e conexão com tudo – o sol, o vento, os bichinhos. Ela tem uma percepção de tudo que está acontecendo muito amplificada.


Com ela, eu fui aprendendo esse estado de presença. Como estar presente em cada tomada, em cada momento. Tem um aspecto pessoal que eu gosto de falar, né, Marquinhos? É triste, mas é interessante, assim. Quando começou a preparação, eu engravidei e logo tive um aborto. Quando a gente começou a gravar em Motipó eu estava vivendo esse processo de aborto, que é muito doloroso, e Marquinhos estava lá comigo o tempo todo. Foi uma coisa que me trouxe uma conexão muito grande com o processo vida e morte. Então, parecia que a pele estava muito exposta, porque eu estava passando por isso internamente. Mas, eu acho que viver Kaylane foi uma cura interna. Engraçado… as coisas acontecem no tempo delas. Muitas das coisas que estão no filme são coisas pessoais que eu estava vivendo e transmutando. 


Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Embora seja um longa de ficção, ‘O Silêncio das Ostras’ carrega um forte tom documental, algo que vem da sua trajetória no gênero. Inclusive, o filme incorpora imagens de arquivo dos rompimentos das barragens de Bento Rodrigues e Brumadinho. Como foi a decisão de integrar essas imagens reais à narrativa ficcional?


Bárbara Colen: Antes do Marquinhos responder, eu vou só fazer uma observação em sua pergunta. Eu acho que os documentaristas têm um jeito de filmar ficção que é muito especial e muito livre, muito gostoso. Então, aproveitando a deixa da pergunta (risos), existia muito uma vivência no set de criação do momento. Fala sobre, Marquinhos!


Marcos Pimentel: Eu acho que me interessa muito a intuição. Nas artes de maneira geral. Eu acho muito interessante como a gente pôde se permitir ser invadido pelas locações e pelas histórias. Eu lembro que eu falei à Babi: “eu vou te levar pra lama”. A gente ficou conversando sobre o vácuo que matava os insetos. Quando a gente está em área rural, a gente escuta muita coisa – passarinho, inseto, coruja. E na rota da lama, você não escuta nada. Você está em uma área rural, mas que mata os insetos que estão na base da cadeia alimentar. A gente foi trazendo isso pro filme através da arte que reconstruiu vários espaços da lama. Parecia que a gente estava lá, no olho do furacão, sendo que existia um espaço temporal entre a realização do filme e o que aconteceu. 


Além disso, algo fantástico é a população também. Como os atingidos pelos desastres ambientais abraçaram o projeto e abriram esses espaços pra gente. Na escola, foi muito forte, né, Babi? A gente conversou sobre a Kaylane de conhecer mundos fora daquele. É assustador. É a catástrofe ambiental escancarada nas paredes, no teto, no chão. Aquele inseto que apareceu por acaso também, que é estranho, parece uma folha viva andando e ele apareceu ali simplesmente. E olha que a gente tinha uma biblioteca de insetos incrível, até pra colocar um na boca da Babi…


Bárbara Colen: Nesse dia, eu acho que, inclusive, os meninos estavam buscando por um inseto. E de repente, aparece aquele grilo mutante, super verde…


Marcos Pimentel: É muito louco. A gente precisava variar os insetos – esse aqui já apareceu muito, esse aqui fica guardado pra próxima. Tem energias muito misteriosas no fazer cinematográfico e a gente sempre esteve aberto para isso. Isso tem a ver com o processo do documentário também. Eu acho lindo a gente todo dia voltar com o filme que a gente não concebeu. Por mais que haja trabalho sério de campo, de arte, de fotografia, de referências, preparação de elenco… E a Babi que anota tudo, ela faz desenho… Você percebe que um corpo passou por aqui, tem vida, tem história.


Bárbara Colen: A gente ia pro set. Eu lembro muito do dia em que a gente foi pra mineradora e a gente teve muito tempo. Era uma equipe reduzida, sabe, Ana? A gente tinha tempo de descobrir as coisas em cada lugar e descobrir o que a locação trazia para filmarmos. Eu lembro que tinha uma cena, do circo, que a Kaylane chega e fala: “tem alguém aí?” e a coruja respondia na mesma hora que eu fazia a pergunta (risos). Então era isso o tempo todo, uma coisa muito louca de conexões.


Ana Beatriz (Oxente Pipoca): O filme toca em traumas ambientais e humanos ainda muito presentes na memória coletiva do Brasil. Como atriz e como diretor, como foi para vocês lidar com essa dimensão política e emocional da história?


Bárbara Colen: Acho que a gente sabe das coisas, mas ao mesmo tempo não sabe. Uma coisa é você ver imagens da barragem, ter notícias, dados, números de mortes. Outra coisa é você ir até o lugar e ver com os seus próprios olhos aquela destruição. Acho que isso primeiramente é muito forte. Esse dia da escola que comentamos, acho que foi o pior dia no sentido emocional. 


Eu lembro que cheguei no quarto e estava tremendo, estava muito mexida com aquilo tudo. O motorista que me levou, ele tinha atuado como socorrista, no resgate das pessoas. Então, ele me contava coisas do tipo, uma mulher grávida teve o filho dentro do helicóptero – o neném nasceu e a mãe morreu. Era difícil puxar os corpos porque, com a lama tóxica, eles se dissolviam. Ele salvou um tanto de gente só pelo fato de conseguir subir em uma coluna. Dava pra perceber o quanto isso tinha abalado ele. Quando você conversa com as pessoas, a coisa ganha pele, cheiro, ambiente, concretude. É muito duro, foi um processo bem devastador. 


De fato, a gente foi andando até o mar, que também está intoxicado. É um caminho de destruição durante o rio inteiro.


Marcos Pimentel: Eu nunca vou esquecer na minha vida a cena em que gravamos da Kaylane ajudando um homem a sair da lama. O que é a gente reproduzir uma das muitas coisas que aconteceram. Quando eles conversam e ele dizia que só sairia dali se achasse a sua filha ou parte dela. Essa questão de achar o corpo para poder dar conta do luto, para poder ter um velório e cumprir seu ritual de despedida. E isso tudo veio das histórias.


Como demora muito tempo para fazer um projeto de longa-metragem, ideia, financiamento, produção, montagem, festival. O tempo passa e as montanhas desaparecem. Temos muitas ex montanhas no filme. Muitos dos lugares que filmamos não existem mais. É muito duro conviver com isso porque a gente vai registrando montanhas que estão a ponto de morrer. É um processo que não sai da gente. Gravamos um universo sinistro, sombrio, mas também ininterrupto.


Bárbara Colen: Quando eu vi a quantidade de caminhões nas mineradoras, em filas, saindo e voltando com minério por 24 horas… Eu acho que esse volume, você acabar com uma montanha em um processo voraz e ininterrupto, é assustador. Até porque tem a conivência de muita gente, né. Em Minas, se fala muito pouco de tudo que aconteceu e as coisas continuam. Belo Horizonte mesmo estava com toda essa questão da Serra do Curral, fizeram um grande movimento porque caso contrário, BH poderia ficar coberta de poeira. Não é só uma questão de interior. Mesmo na capital, existe uma dificuldade de visibilidade.


Ana Beatriz (Oxente Pipoca): Bom, gente, como de costume do Oxente Pipoca, vou pedir que vocês indiquem três filmes brasileiros para os nossos leitores para finalizarmos a nossa conversa.


Marcos Pimentel: Para mim, assistam todos os filmes que a Babi atua (risos). Ela é uma atriz de águas profundas, não tem mergulho raso com ela não. Acho que vale muito a pena. Eu acho que também vale indicar Mais Pesado é o Céu, do Petrus [Cariry], e eu não consigo também não falar de Mato Seco em Chamas. Que encontro do Adirley [Queirós] e da Joana [Pimenta], um verdadeiro acontecimento. Tudo quanto é potência concentrada em um único filme. Assistam!


Bárbara Colen: Bom… para mim, eu sou apaixonada por Inferninho. Para mim é uma obra prima mesmo. Eu também sou muito apaixonada pelos filmes do Marcelo Gomes também. Recentemente eu vi Cinema, Aspirinas e Urubus e eu fiquei impressionada com a beleza daquele filme. O Marcelo também tem essa coisa da mistura entre documentário e ficção, em que você vê as pessoas entrando em cena de uma maneira tão fluida. É uma aula. 


E tem Baby também que eu vi e fiquei arrebatada. Fiquei muito feliz com esse filme, é muito lindo poder ver o Marcelo Caetano fazendo um filme tão forte. E para puxar para os mineiros, acho que Marte Um, do Gabriel Martins, que tem aquela coisa de ser um filme para todo mundo. Acho que eu fico com esses.


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