Uma carta de amor à obra prima máxima que revolucionou a TV
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A HBO só começou a fazer séries dramáticas em 1997 e já chegou com o pé na porta: Oz, que narrava a vida de homens em uma prisão de segurança máxima. A audiência estava acostumada com os programas da TV aberta, onde o bandido era sempre o vilão que se dava mal no fim do episódio. Aqui não. O foco era naqueles personagens, violentos e amorais, mas com traços de humanidade, e pelo menos alguns, ainda se aproximavam mais do estereótipo do “mocinho” habitual, um personagem pelo qual o telespectador pudesse se identificar. O que já muda com a próxima aposta dramática do canal. A HBO abriu a porta para tramas mais complexas e notou que havia uma audiência para isso, então quando a CBS, ABC, NBC e FOX, negaram Família Soprano, David Chase enxergou na HBO uma bela oportunidade para contar sua história, e Chris Albrecht, o então CEO do canal, aprovou o roteiro do piloto com o apoio de sua executiva Carolyn Strauss e juntos aceitaram embarcar nesta jornada com Chase que mudaria o rumo da televisão para sempre, não só nos Estados Unidos.
David Chase já trabalhava na TV aberta como roteirista, mas foi na HBO que encorajaram sua liberdade artística. Ele não esconde de ninguém que Livia Soprano, papel imortalizado por Nancy Marchand, a mãe de Tony, é inspirada pela sua própria mãe e os problemas que tinha com ela, assim como Nova Jersey, lugar onde a trama era ambientada, que foi onde ele cresceu com seus descendentes italianos e é essa pessoalidade que faz de Família Soprano tão brilhante. Ele escrevia o que conhecia, e incentivava seu time de roteiristas a fazer o mesmo. A série era diferente dos filmes clássicos de máfia como O Poderoso Chefão ou Os Bons Companheiros e havia dúvidas se o público “compraria” a história de um mafioso na terapia, mesmo que todos os envolvidos soubessem da qualidade da produção. O piloto teve uma audiência de 3,45 milhões de telespectadores, gigante para os padrões da HBO e o sucesso com a crítica também foi imediato. Mas ali, no 5º episódio, intitulado “College” houve a primeira rusga entre Chase e o canal. No episódio, Tony levava Meadow para uma visita na faculdade, quando encontra um homem que o traiu pelo caminho e não perde a oportunidade de matá-lo. Albrecht achou que o público rejeitaria um protagonista que matasse violentamente alguém à sangue frio e pediu que Chase não colocasse isso no episódio ou “amenizasse” de alguma forma. Chase não aceitou e disse que o público não respeitaria Tony se ele não fizesse aquilo. Depois de muita discussão, Albrecht aceitou a visão de Chase, viu que ele estava certo e nunca mais se meteu nas decisões criativas.
David Simon, o criador de A Escuta, uma das percursoras de Família Soprano disse “o público sempre vai querer sorvete, mas é necessário comer vegetais também”. É isto o que David Chase vinha fazendo com sua obra. Desfiando os limites e deixando as pessoas desconfortáveis, dando a elas a oportunidade de pensar sobre aquilo, sem necessariamente dizer a elas como deviam se sentir em relação a determinado acontecimento. Muitos não eram fáceis de se assistir, a maioria, na verdade, mas eram necessários para o desenvolvimento daqueles personagens, e por mais violento que fosse, não soava gratuito. James Gandolfini foi diretamente afetado por Tony Soprano e todo o mar de complexidade que o envolvia. Um gênio que incorporou aquele homem tão violento, capaz das maiores atrocidades e capaz de ser um pai amoroso, mas ainda assim os fatos se misturavam, claro. Tony não se resumia a uma coisa ou outra, graças a escrita singular de David Chase e a performance irretocável de Gandolfini, temos o melhor personagem da história da televisão. Sem ele não existiriam Don Draper, Walter White e tantos outros anti-heróis que vieram depois.
Família Soprano chegou quebrando barreiras e mostrando que havia uma audiência interessada em acompanhar protagonistas moralmente ambíguos, que o “mocinho” nem sempre precisava vencer no final, porque simplesmente não existem mocinhos aqui. Acompanhamos uma gama de pessoas que nem sempre vão escolher o caminho certo e isso é fascinante, porque absolutamente ninguém é bom o tempo todo, e uma hora você vai se identificar com algumas daquelas pessoas. Pode não se identificar com os crimes que elas cometem, mas elas são muito mais do que isso. De Paulie a Carmela, de Christopher a Janice, de Adriana a Dra. Melfi, os personagens guiam a trama e não o contrário. Eles são tão bem construídos, que há um fator de imprevisibilidade que deixa tudo mais incrível, como nas decisões que eles tomam, nós não sabemos qual será, mas fará sentido com o personagem. Como Melfi escolher não dizer a Tony sobre seu estuprador ou Christopher entregar Adriana para a morte e ainda assim, não sabíamos se Tony perdoaria. Queríamos? Sim, mas faz muito mais sentido como aconteceu. Não oferecer saídas fáceis é um dos maiores trunfos da série porque a vida não é fácil.
Quando eu comecei a assistir achava que seria algo mais tradicional da máfia, como nos filmes do gênero. Mas já no primeiro episódio fui pego de surpresa. Era sobre a máfia, mas eu não esperava a terapia. Obviamente eu tinha ouvido falar assim que adentrei no mundo das séries e eu sabia que tinha que assistir, mas só comecei ali por meados de 2012. Eu não tinha a cabeça que tenho hoje, mas tinha noção que estava vendo algo fora do comum. Mesmo já tendo começado assistido séries que exigiam mais mentalmente como Lost ou Breaking Bad, sabia que Família Soprano era um grau acima e agora eu estava entendendo como ela havia influenciado tudo que vinha depois. Quanto mais os episódios passavam, mais eu estava fisgado por aquele mundo tão fascinante criado por Chase. Tão honesto, violento, cru, ao mesmo tempo que tinha uma veia humorística tão forte. Conseguir fazer humor em momentos sombrios de uma maneira equilibrada e genuína é para poucos, mas Chase e seu brilhante time de roteiristas fizeram com maestria por seis temporadas. E é claro que aproveitei cada episódio, mas havia uma curiosidade gigante de como se encerraria a melhor série de todos os tempos? Não dá para ter um final fechado. Chase escolheu reverberar sua arte. A polêmica tela preta gera discussões até hoje, do que afinal aconteceu com Tony naquela lanchonete. Eu, óbvio, assim que vi já tirei minhas conclusões e sempre que alguém termina, conversas acaloradas tomam conta onde cada um compartilha sua visão. Se isso não é a força da arte e de uma história bem contada, eu não sei o que é.
Família Soprano elevou a televisão como uma forma de arte. Se antes, apesar de algumas ótimas produções, a mídia ainda era diminuída, agora ela se igualava ao cinema como uma alternativa de contar histórias de uma forma mais longa e mais aprofundada. Ainda há quem queira diminuir a tv, o que pessoalmente eu acho uma tremenda imbecilidade. Depois de Família Soprano, já tivemos provas suficientes que o telespectador não deve ser subestimado e a TV não existiria como existe hoje sem ela, mesmo que nenhuma recente ainda chegue aos seus pés em termos de qualidade. Não que não tivemos excelentes produções há pouco tempo, mas é que há uma superioridade evidente. Mais do que assistir séries, eu amo também descobrir e estudar sobre o processo criativo delas, então o recém-lançado documentário “Um de Nós: David Chase e a Família Soprano” foi um verdadeiro presente para mim como fã. Mesmo eu já tendo livros sobre, é sempre bom saber mais, é inspirador ver como aquelas pessoas trabalharam duro para levar aquele produto às telas dando o melhor de si. Em dois episódios de pouco mais de 1h cada, se fala sobre tudo, dá uma sensação de completo, mas você ainda quer mais, porque a série também foi assim. Nunca vai ser demais falar sobre Família Soprano e seu legado, sempre há algo mais a ser dito.
Quem me conhece pelo menos um pouco, sabe do meu amor por Lost e como eu sempre digo que é minha série favorita, por mexer comigo de uma forma diferente, por ter sido a primeira que acompanhei, enfim, inúmeras razões, mas hoje não é sobre Lost. Quando me perguntam a melhor série de todos os tempos, não penso duas vezes em afirmar que é Família Soprano. É uma distinção emocional, mas que se aproxima porque Tony e sua turma estão em segundo lugar no meu coração. Eu diria que envelheceu como o mais fino dos vinhos, mas eram comuns comentários de jovens que tiveram o primeiro contato com a série agora se chocar com as atitudes dos personagens, o texto e a acusavam de “machismo, racismo, etc.”. É evidente que isso está presente, como um chefe da máfia poderia ser um defensor dos direitos humanos ou do politicamente correto? Teria um mínimo de coerência? Isso não quer dizer que a série é, mas seus personagens são porque é o que faz sentido naquele universo em que eles vivem. Recentemente houve uma discussão sobre aviso de gatilhos em livros no Twitter/X, poucos dias antes do banimento da rede social do país. Há pontos de vistas válidos de ambos os lados, mas em séries, particularmente não me agradam. O intuito de algumas séries não é só chocar o público, mas deixar que eles lidem com aquele desconforto, com sensações que nem sempre são agradáveis, porque a vida não vai ser sempre um sorvete, como disse David Simon. Família Soprano é arte e arte pode ser desconfortável, desafiadora, gerar discussões e não dá para fazer História sem incomodar, por isso, mesmo com a absurda quantidade de séries hoje em dia e outras que vieram depois, com qualidades acima da média, também não conseguiram superar a maior de todos os tempos e eu duvido muito que alguma ainda vá.
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