Crítica | A Voz de Deus (Olhar de Cinema 2025)
- Vinicius Oliveira
- há 6 dias
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Ao abordar o universo dos pregadores mirins sem condescendência ou paternalismo, documentário se revela um dos registros mais emblemáticos do fenômeno evangélico contemporâneo.

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Daniel Pentecoste começou como um pregador mirim aos 5 anos. Quando A Voz de Deus se inicia, vemos uma montagem de várias de suas pregações em igrejas Brasil afora, ou dos seus vídeos particulares em casa, até que aquela criança seja revelada para o espectador como um adolescente, meio orgulhoso, envergonhado e nostálgico da carreira que teve – a qual, agora aos 16 anos, não consegue manter com o mesmo sucesso. Os anos passam, Daniel envelhece e outros nomes surgem no meio, como é o caso do coprotagonista, João Vitor Ota, que acompanhamos dos 7 aos 12 anos. Em meio a isso tem-se a eleição e presidência de Bolsonaro, e seus impactos sobre a população evangélica do país.
Em minha entrevista com Calebe Lopes sobre Ataques Psicotrônicos, o diretor comentou como sua formação evangélica (e seus traumas) moldaram aspectos significativos de sua filmografia. Ele lamentou como uma boa parte do audiovisual brasileiro, especialmente os ligados à esquerda, ainda trata os evangélicos com um tom acusatório ou condescendente e paternalista, especialmente em razão dos últimos anos e o entrelaçamento da população evangélica com o bolsonarismo e a extrema-direita. Ignora-se, portanto, as pluralidades desta religião e invisibiliza-se os seus praticantes que não se aliaram ao bolsonarismo nem viram nele o Messias deturpado que foi tanto alardeado.
Toda vez que A Voz de Deus captura os desconfortos de Daniel em razão do avanço do bolsonarismo (que engole, dentre tantas pessoas, o seu pai), vê-se um exemplo de alguém cujo conflito interno é habilmente capturado pelas lentes do diretor Miguel Antunes Ramos. Longe da condescendência e do paternalismo, Miguel traz olhar que de forma alguma é neutro (e que ótimo que não o seja), mas que está antes de tudo interessado em se despir de suas preconcepções, aproximando-se de seus dois personagens principais e suas respectivas famílias para mostrar seus cotidianos e, sobretudo, suas humanidades. Sim, há falhas e muito a se problematizar (para quem não é evangélico, mergulhar no universo dos pregadores mirins pode ser deveras assustador e indigesto), mas a câmera dele se torna tão íntima deste universo e destes personagens que é surpreendente ver o que ela consegue capturar com tamanha naturalidade. Há momentos de riso, de camaradagem, compaixão e de questões genuínas com a própria fé, mas também de dores, hipocrisias e de contradições.

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Com isso, Antunes Ramos consegue criar um documento do que a religião evangélica foi se tornando ao longo dos últimos 15 anos. A decisão de fazer na metade do filme uma “passagem de manto” entre Daniel e João Vitor através da única cena em que os dois estão juntos é uma sacada inteligente, que promove uma troca orgânica entre pontos de vistas e realidades e indica com maior precisão as mudanças dentro desta parcela da população. O mundo evangélico de João Vitor não é o mesmo do de Daniel uma década atrás: em meio às demandas das redes sociais, o crescimento avassalador das teologias da prosperidade e coach, as influências norte-americanas e o já mencionado avanço da extrema-direita, o filme captura a lógica de status em que ser evangélico se tornou e como a religião saiu de uma posição “marginalizada” para ditar os rumos do país, muitas vezes de maneiras horrendas e que envergonham o próprio Evangelho que afirma seguir.
Não é que tais mudanças e fenômenos não pudessem ser capturados por uma câmera mais crítica e já com uma preconcepção formada. Mas os resultados e reflexões finais são ainda mais avassaladores justamente pela forma como Antunes Ramos se aproxima e se entranha nas realidades de Daniel e João Vitor, extraindo algo de muito sincero e genuíno em suas jornadas que, mesmo nessas dimensões particulares, se relaciona a uma visão mais geral dos rumos que o país tomou nos últimos anos. O resultado é um filme que não apenas já se configura como um dos potenciais destaques do festival, mas é um testamento histórico que dá conta de apresentar as muitas nuances do ser evangélico no Brasil.
Nota: 4/5