Crítica | Aurora (Olhar de Cinema 2025)
- Vinicius Oliveira
- há 23 horas
- 3 min de leitura
Entre memórias, ancestralidade e deslocamento, João Vieira Torres dá materialidade aos fantasmas das mulheres de sua família em obra sensível e primorosa.

“Saudade mata a gente”, canta Djavan, e para quem construiu sua vida longe da família, redefinindo suas noções de lar e de pertencimento, versos como esse batem profundamente após se ver um filme como Aurora. Admito que tenho um grande fraco por obras que falam sobre deslocamentos, sobre voltar às suas origens em um processo que é muito particular, mas que também dá conta de outras dimensões. Por isso, ver o equilíbrio delicado que João Vieira Torres consegue aqui – partindo desta dimensão singular para contar uma história que é tanto sua quanto de outros (ou melhor, de outras – é um dos grandes méritos que ele constrói com seu longa, gestada durante um período de 10 anos.
Desde os primeiros minutos de Aurora, João se coloca como personagem da sua própria história, renegando quaisquer possibilidades de não-interferência que muitos (eu incluído) prezam em documentários. Se os minutos iniciais não exatamente engatam, assumindo até uma estética mais ficcional na textura da imagem, na representação do cotidiano de João com seus companheiros em Paris, ali desde o começo há uma camada fantasmagórica, quase de pesadelo, que faz jus àquilo que o diretor/protagonista toma como ponto de partida para a obra: um sonho com sua mãe que o instiga a procurar saber mais sobre sua falecida avó paterna, a qual dá nome ao filme e era conhecida pelo trabalho de parteira no sertão norte da Bahia.
Mas Aurora, a personagem, é apenas o ponto inicial desse denso emaranhado (tanto material e histórico quanto também espiritual) que João vai desemaranhando à medida que a história dela o leva às histórias das muitas mulheres de sua(s) família(s), incluindo-se as vivas, mas com especial ênfase nas mortas. Se o seu sonho já o alertava de revelações sombrias que ele haveria de fazer, é notório o cuidado com o qual o filme constrói sua guinada em direção a essas revelações, gradativamente expondo as multiplicidades de experiências dessas mulheres nos contextos de sociedades tão patriarcais – seja se conformando à norma, seja se desviando dela e pagando o preço.

Mas apesar do tópico extremamente difícil com o qual trabalha, João nunca busca pesar a mão para explorar as histórias de suas parentes, tampouco transformar em uma vitrine de si mesmo, ainda que sua própria existência – como um homem negro e gay que se viu precisando sair daquele ambiente para poder ser ele próprio – não deixe de dialogar com as histórias às quais vasculha. Ele confere materialidade a esses fantasmas que o assombram desde a infância, e por isso seu trabalho é também um trabalho de arquivo, de olhar os cantos inexplorados dos materiais para sua pesquisa (as fotos de funerais, tão características dos interiores nordestinos, são talvez a sua arma mais poderosa), de desafiar os discursos que foram construídos sobre estas mulheres para corporificar e dar voz a esses fantasmas mesmo décadas depois de terem partido.
E em meio a isso, João faz de Aurora também uma obra sobre retornos. As cenas com seu pai no meio do sertão, onde este demonstra toda a sabedoria e conhecimento sertanejos; a conversa com a prima que não via há décadas e a compaixão que esta indica por ele; a diversidade religiosa e sincrética da sua família, sem olhares condenatórios, mas nem por isso menos reflexivos e provocadores; as fricções ainda existentes com sua mãe devido às relutâncias dela com sua sexualidade; e as lágrimas desta ao final quando escuta a música que traduz o oceano de saudade que a separa de seu filho: múltiplas expressões de afeto, de dores, de feridas, de singelezas que coabitam com brutalidades e que são transmitidos habilmente pela câmera sensível do diretor.
Em determinado momento, João se pergunta: “por que os fantasmas de minha família são todas mulheres?”. Essa pergunta é fundamental para entender porque, mesmo que se coloque na obra e seja ele também parte da história que está contando, João promove um duplo deslocamento: o de retornar ao seu lar e também de se deslocar para o canto do quadro em boa parte de Aurora, exercendo um ato não apenas de olhar, mas de escutar. E cada vez que o filme vê e ouve as mulheres de sua família, mesmo as que não mais vivem, ele cresce abundantemente.
Nota: 4.5/5